
Simonal entendeu como poucos a pilantragem das relações culturais entre as nações ditas centrais
Vou botar pra quebrar
Em algum momento, creio, assistimos ao vídeo do lendário encontro entre Wilson Simonal e Sarah Vaughan, não é mesmo? Reunião inesquecível ocorrida na Rede Tupi, no programa de Flávio Cavalcanti, em setembro de 1970.
(Nossos comerciais, por favor!)
Agora, se você não conhece o registro, guarda teu lugar na fila, não vacila e aproveita para apreciar o dueto.
Este vídeo tem 6:04 e nos primeiros três minutos algo fascinante acontece: um giro linguístico de grande alcance.
Explico.
Melhor: estou ainda aqui pensando enquanto escrevo – ao correr da pena, portanto.
Recorde-se o óbvio: o programa de televisão era no Brasil. Vale dizer, e começamos a aquilatar a ousadia de Wilson Simonal, a questão não era se o artista brasileiro era capaz de lançar mão de um inglês imaginário, mas, no fundo, o fato decisivo, e nada imprevisível, era que a excepcional cantora norte-americana, com toda certeza, não somente não saberia arriscar nada em português, como também teria muito pouco interesse em sequer tentar aprender o idioma.
(Did you say Portuguese?! O verso de Belchior adquire colorido inédito: “Desesperadamente, eu grito em português”. Quem escutará? Quem entenderá?)
Ora, mas como assim?
Exatamente o que disse – e não se esqueça que hoje é dia de sopa.
Wilson Simonal entendeu como poucos a pilantragem das relações culturais entre as nações ditas centrais, hegemônicas, e o resto do mundo periférico, não hegemônico. Basta observar o risco desse bordado para inverter parodicamente os papeis. Simonal, nesse embalo, botava pra quebrar.
(Um pouco mais de tempo de programa e faria Sarah Vaughan “repeat with me”: sacundim, sacundá.)
Volto aos 3 minutos iniciais do vídeo – sua metade, isto é. Simonal simula uma entrevista com Vaughan. Coreografia bem ensaiada, destaca-se a linguagem corporal do artista brasileiro: à vontade com o inglês que não falava. No palco, Simonal é poliglota e domina a linguagem universal do show business.
(“I am speaking English!” Poderia dizer “I am eating English!”, e acertaria no alvo.[1])
No programa, Simonal não é periférico, nem cogitaria ser não hegemônico; pelo contrário, ocupa o centro das atenções com a confiança de quem está em casa. Em sua casa.
(“Y sabes lo que comúnmente se dice, que ‘debajo de mi manto, al rey mato’.”)
Na Rede Tupi, o anfitrião não é sequer o apresentador do programa, Flávio Cavalcanti, mas Wilson Simonal. Não pode haver dúvida: naquele domingo, 20 de setembro de 1970, Sarah Vaughan era a convidada.
(Ilustre. Ilustríssima. Mas convidada.)
Como avaliar a radicalidade da brincadeira malandra de Simonal com Vaughan? A melhor forma de principiar nossa conversa consiste em assistir a um vídeo muito menos conhecido, no qual a “entrevista” é antecedida por outro dueto. Todos vimos o vídeo de quase 7 minutos – creio. No entanto, a versão completa, com aproximadamente 23 minutos, é ainda mais relevante para a discussão que proponho.
Você conhece a regra: só quem viu, que pode contar.
Não deixe também de procurar o indispensável documentário de Cláudio Manuel, Simonal – Ninguém sabe o duro que dei, lançado em 2009.
Volte aqui na próxima semana: analisarei a “entrevista” de Wilson Simonal com Sarah Vaughan. E, claro, falaremos dos duetos.
(Para virar cinza, a brasa desses dois extraordinários artistas demorava.)
[1] Ver o vídeo na minutagem 2:35: https://www.youtube.com/watch?v=UjSb2_LLGjk
JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA ” BLOG ICL NOTÍCIAS” ( BRASIL)