A PALAVRA DE SARNEY

CHARGE DE REP ( ARGENTINA)

Ex-presidentes raramente saem do ostracismo que eles mesmo elegem para se preservar e não macular a história de suas experiências. Mesmo quando o país vive momentos delicados ou conturbados, em geral preferem não se expor, afastam-se. E, se abrem raras exceções, é porque falaram mais alto os deveres do passado, que os convencem a trazer uma palavra, não para agravar o que já é grave, mas advertir, contemporizar ou sanear. Semana passada, José Sarney saiu do silêncio do claustro maranhense, para lamentar que o Brasil vive hoje um ódio real, sob o risco de sucumbir num clima de intolerâncias em vastas relações, algo que começa por ameaçar os poderes constituídos; esses mesmos poderes onde a construção da harmonia devia ser o primeiro entre os deveres. Note-se que o ódio já vai escapando dos limites da política e dos governantes, mas avança, em muitos casos, até sobre a organização familiar, como se sabe; tudo de que não precisamos para o Brasil soçobrar de vez.

O país tem se odiado. Nomeia a intolerância para a vaga do diálogo. A figura do atual presidente da República, polêmica por natureza, é bem um exemplo. Nas ondas odiosas, muitas vezes dele para com os adversários, e destes para com ele, elimina-se a crítica construtiva, que cede espaço ao achincalhe e aos deboches nas redes sociais, com uma virulência jamais vista. O ódio está em tempo de disseminação nas asas da tecnologia a serviço da comunicação. Muitas vezes, com palavras pouco pensadas e imagens impróprias, Lula cuida de provocar e ampliar as agressões de que têm sido vítimas ele, sua mulher, seu governo.

(Não se pode dizer que os outros poderes, sobretudo o Judiciário, tenham operado para a pacificação dos humores; pelo contrário. Sob muitas togas da última instância escondem-se raiva, perseguição política, humilhação e ofensa a direitos elementares, que nascem do ódio ou ajudam a produzi-lo em larga escala).

Seja como for, venha de onde vier, nada justifica essa odiosidade imperante, que fez Sarney interromper o silêncio, e, com a autoridade de seus 90 anos, depois de ter sido quase tudo neste país, chamar atenção para um perigo que avulta, como advertiu em sucinta carta enviada ao Correio Braziliense. Fernando Henrique e Michel Temer talvez devessem fazer o mesmo, porque não lhes falta autoridade – diria até que sobra dever – para tanto. Antes que o mal prospere para o desastre. A propósito dos ex, Jânio Quadros já havia lamentado, no passado, que, diante de maus exemplos, o povo acaba preferindo odiar; esquece de aprender a amar.

Na carta em referência, ele lembra que a História traz lições para mostrar que o ódio não vale a pena. Peregrinou na conhecida erudição, para lembrar que a intolerância extremada é incompatível com os melhores sentimentos, espécie de enfermidade psicótica que só poderia agradar a um Carl Schmitt, um dos inspiradores da eliminação de judeus nos tempos do nazismo. Personalidade nefasta, defensor da violência nas relações com os adversários, em contraste com espíritos superiores, pois estes, como Dostoievski, Shakespeare e Calderón de La Barca, escandalizavam-se com o ódio. Sarney os cita; nem precisava ir tão longe, pois Guimarães Rosa, que tanto admira, já colocou na boca do jagunço Riobaldo Tatarana que é da vocação do ódio sempre sair em busca de outros ódios. Costuma ser endêmico.

Pior quando infelicita a política. Foi por causa de contrariedades ao extremo que a política, em outros anos, manchou sua crônica com sangue. Algo que o ex-presidente e todos nós pedimos a Deus que não se repita. Como se deu no ápice dos velhos litígios de Arnon de Mello e Silvestre Péricles, que trouxeram de sua Alagoas para a Câmara dos Deputados, em 1963, a aversão incontrolável, sob tiros, mas ambos saindo ilesos, morrendo um inocente. Trinta anos antes, na esquina de Rio Branco com Ouvidor, Gilberto Amado derrubou, com um tiro certeiro, seu rival Aníbal Teófilo. Neste JB, em 1977, o general Lopes Bragança, direitista que odiava demais, não negou que havia um plano para assassinar João Goulart em Belo Horizonte, alvejado com arma de precisão. Sarney tem razão, quando, neste momento, há suspeitas de plano sinistro de eliminação fria de presidente e ministros. Para que aqueles desastres se repitam basta qualquer imprevisto, um mero detalhe.

Por todas as razões, porque os políticos cada vez menos se toleram, e porque temos um passado para mostrar que o ódio leva a grandes infelicitações, o ex-presidente veio no momento certo para falar, na hora em que o ar é de tempestade vizinha e ameaçadora. Não perdeu a oportunidade, para não ter de repetir o profeta Isaías: “ai de mim, porque me calei!”.

WILSON CID ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)

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