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Milei deveria colocar as barbas que não tem de molho: muitos norte-americanos foram enganados pela pilantragem sem charme
Antes de começar
Na semana passada havia prometido analisar o encontro entre Sarah Vaughan, diva máxima do jazz mundial, e Wilson Simonal, o rei da pilantragem, movimento da década de 1960, que o artista liderou junto com Carlos Imperial. Porém, o acaso fez uma surpresa e preciso esmiuçar outra pilantragem; mas essa sem graça nem malandragem carioca.
(Desfaçatez apenas — desonestidade em estado de dicionário.)
Pirâmide-Milei
O caricato anarcocapitalista, libertário radical, Javier Milei, figura de circo nos salões políticos de Washington, com suas danças amestradas, coreografadas sob medida para a hilaridade gringa, desta vez passou dos limites e tornou-se um puro e simples partícipe num esquema de pirâmide que evoca o célebre esquema Ponzi. Tudo começou com uma postagem na sexta-feira, dia 14 de fevereiro.
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O crime mora mesmo nos detalhes. O apoio integral ao projeto é incontestável. O próprio nome da falcatrua, vivalalibertadproject.com, remete ao infame ¡Viva la libertad, carajo!, que vive na boca dos bolslonaristas mais desinibidos. Aliás, como a sutileza não é predicado da extrema direita, o lema retorna triunfal em garrafais letras maiúsculas no final da postagem, com enfáticos três pontos de exclamação — para que não houvesse dúvidas sobre o entusiasmo com a iniciativa do clonador serial do falecido cão Conan.
É pouco?
Não!
Produzir provas contra si é dado estrutural da extrema direita. O presidente da República — repito: o presidente da República — em sua conta adicionou o link do “Contrato” para que se pudesse ler a postagem e de imediato, no calor da hora, adquirir a criptomoeda.
(Conveniente, não é mesmo?)
O esquema chega a ser primário. Veja-se a segunda imagem.
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As maiores compras da criptomoeda foram feitas logo após sua criação e, sobretudo, simultaneamente ao anúncio do presidente Milei: aproximadamente 12 milhões de dólares em 4 minutos. Isto é, compraram a criptomoeda na bacia das águas, mas, exatamente por isso, seu valor explodiu, refletindo o “interesse espontâneo” do mercado. Logo, seu valor, num curto espaço de tempo decolou mais rapidamente do que os foguetes de Elon Musk.
Um gráfico expressivo tudo esclarece. Estamos diante de conhecido crime nesse meio: os criadores de uma criptomoeda compram grande quantidade de ativos para valorizar o produto, que será vendido assim que seu valor tiver sido artificialmente inflacionado. Após a transação, seu valor cai bruscamente, levando os investidores à perda total de seus recursos.
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A criptomoeda da pirâmide-Milei subiu, mas depois desceu ainda mais celeremente as 1800 colinas do mercado financeiro volátil, demasiadamente volátil, do blockchain. Os “sortudos” que compraram nos 4 minutos iniciais fizeram fortuna num piscar de olhos; todos os outros ficaram a ver navios nas intempéries do oceano digital. A rapidez vertiginosa do processo desconcerta.
Não se esqueça: camarão que dorme a onda leva, porém, nesse universo, o dia é sempre do caçador. Arma em punho, metralhadora giratória em ação, a pirâmide-Milei fez do X sua trincheira de resistência. Depois de apagar a postagem criminosa, tentou se justificar.
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A divulgação da criptomoeda foi feita com alarde: tremor sem temor algum. A digital do delito é insofismável: o “contrato” veiculado na mensagem. Se “no estaba interiorizado de los pormenores del proyecto”, por que difundiu a fraude com sua usual veemência? O último parágrafo, transferindo a culpa “a las ratas de la casta política” e rematando com a promessa de “sacarlos a patadas en el culo” é um sintoma definitivo do adoecimento provocado pela dissonância cognitiva coletiva, sem a qual a extrema direita definha como peixe fora da água.
(A criptomoeda da pirâmide-Milei não é um líquido aquário no qual se deseja mergulhar.)
O recurso ao recurso do bode expiatório talvez já tenha sido usado tantas vezes que agora perdeu um tanto de sua eficácia. A notícia circulou o mundo e as manchetes são tão explícitas quanto o fetiche sexual da extrema direita em todo o mundo.
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Javier Milei deveria colocar as barbas que não tem de molho: muitos norte-americanos foram enganados pela pilantragem sem charme e não é difícil imaginar que neste momento equipes de advogados nos Estados Unidos começam a calcular as polpudas indenizações que exigirão também do Estado argentino, pois nada menos do que sua figura máxima foi o maluco beleza propaganda da criptomoeda.
Para além da caricatura
O estelionato só foi possível pelo apoio dado por Javier Milei ao projeto. Explico: sem o endosso presidencial, a febre do ouro digital sequer teria principiado. De todo modo, esqueçamos o traço evidentemente caricatural das postagens alucinadas do presidente-pirâmide. O decisivo é que se entenda o dado estrutural dessa nova fraude. Em outras palavras, a obsessão da extrema direita com a criptomoeda tem duas faces.
De um lado, trata-se da imagem de um mundo sem qualquer tipo de regulação, numa visão delirante de um mercado, não “apenas” livre, porém libertário. No Brasil, na midiosfera extremista, há uma série de personagens excêntricos que defendem a criptomoeda como um autêntico universo paralelo de liberdade absoluta. O neoliberalismo predador encontrou na promessa dessa Terra de Marlboro o ideal de um futuro distópico. Por isso, um Nayib Bukele tornou a criptomoeda a moeda corrente em El Salvador, Donald e Melania Trump lançaram suas próprias criptomoedas, assim como a família Bolsonaro ou partidários do ex-presidente investem nesse mercado.
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De outro lado, e eis a questão das questões, a criptomoeda pode ser vista como a metonímia da extrema direita enquanto metonímia da fraude que move seu processo. Para tudo dizê-lo: o avanço transnacional da extrema direita é o autêntico esquema Ponzi do século 21.
(Você se recorda como o “modelo de negócio” inventado por Charles Ponzi na década de 1920 foi mantido sob controle? Regulação, caro Watson, regulação.)
JOÃO CÉSAR DE CASTRO ROCHA ” BLOB ICL NOTÍCIAS” ( BRASIL)