TOM ZÉ: A FABRICAÇÃO “DO LÁ DE FORA”: O AVESSO DO AVESSO É O MODELO COLONIAL TIMTIM POR TIMTIM

O documentário Fabricando Tom Zé, dirigido por Décio Mattos Jr., foi lançado em 2007 e obteve um merecidíssimo destaque. Eleito pelo júri popular “Melhor Documentário” na 30ª Mostra Internacional de São Paulo, assim como no Festival Internacional do Rio de Janeiro de 2006. Menção Honrosa foi concedida no Festival de Cinema Brasileiro em Paris, entre outros reconhecimentos e participações em festivais de prestígio.

O filme reconstrói a riquíssima trajetória de Tom Zé, que completou 70 anos em 2006. Décio Mattos Jr. lançou mão de notável artifício narrativo na condução do documentário, registrando a turnê do artista na Europa em 2005, signo inequívoco de sua consagração, e, ao mesmo tempo, resgatando as circunstâncias complexas do ostracismo vivido pelo criador mais inquieto e imprevisível do grupo reunido em torno da Tropicália.

Neste artigo, concentro-me num aspecto apenas do filme; aspecto esse que sempre volta à tona em ocasiões como a recente celebração da excepcional performance de Fernanda Torres em “Ainda estou aqui“, de Walter Salles.

(Enquanto revisava este texto, o horror!, o horror!: não se permitiu que Milton Nascimento compartilhasse o espaço das “estrelas” na cerimônia do Grammy. Debulhar o trigo, mas não se fartar de pão?)

No documentário há um momento particularmente tocante. Estamos próximos ao final do filme: faltam 15 minutos para seu fecho. Na sequência imediatamente anterior recuperou-se um instante difícil, muito difícil, na vida do artista, que permaneceu por longos anos num quase anonimato que parecia haver encerrado sua carreira. A radicalidade de suas experimentações não encontrava residência na terra nada especial do mercado fonográfico cada dia mais industrializado. O jardineiro de sons estava definitivamente fora de lugar com suas ideias dissonantes e atonais.

(Nunca, porém, fora do tempo, que a música transcende, embora nele reverbere.)

As palavras de Tom Zé não perderam atualidade; pelo contrário, num mundo cada vez mais globalizado, porém cada vez menos planetário, ganharam contundência:

“Eu digo que é uma história de povo navegador. Eu tinha uma garrafa jogada ao mar pedindo socorro. Essa garrafa eram os meus discos. Um deles, ‘Estudando Samba’, o mais radical…” [1]

Foi justamente essa mensagem que, caso do acaso bem marcado em cartas de tarô, chegou às mãos de David Byrne.

O amigo de lá de fora

A força da mediação estrangeira — exterior, alienígena, heterocentrada, “as you wish” — numa cultura que jamais superou de todo o complexo colonial é revelado, igualmente sem mediações ou ressalvas, no depoimento cristalino de Kid Vinil:

“As gravadoras também não davam o menor respaldo, não davam, sabe, uma estrutura para que ele conseguisse sobreviver e ele conseguisse fazer o trabalho dele. Até que no fim a Warner acabou até descartando… (…). Mas foi legal essa coisa de ele ter reaparecido e ressurgido de uma maneira muito melhor, sabe, reconhecido lá fora. Sabe, de lá para cá.” [2]

Eis o eterno retorno da “Canção do exílio”, poema máximo do Romantismo brasileiro, publicado nos Primeiros Cantos (1846), de Gonçalves Dias. Em seus versos, o poeta plasmou uma experiência existencial decisiva: o exílio como forma privilegiada de descoberta da pátria distante.

(Os exemplos são legião! Oswald de Andrade finalizou a concepção da Poesia Pau-Brasil na França, em sua imersão nas vanguardas europeias; Gilberto Freyre estruturou Casa-grande & Senzala numa longa permanência nos Estados Unidos; Sergio Buarque de Holanda esboçou Raízes do Brasil enquanto trabalhava na Alemanha como jornalista. E tantos outros casos. Legião — de fato.)

Na América Latina, infelizmente, só mesmo na canção de Belchior um tango argentino sempre cai bem melhor do que o blues; na verdade, por força deste destino de exílio, na mais completa tradução de Kid Vinil, há “uma maneira muito melhor” de ser legitimado: “lá fora. Isto é, do centro para as margens, claro está. Foi assim também com Astor Piazzolla, não é? Inicialmente considerado um “traidor” do tango, um destruidor do gênero nacional por excelência, foi preciso tempo, mas sobretudo a consagração no exterior, “lá fora”, para que o músico fosse plenamente acolhido em seu país de origem — “de lá para cá”.

A agudeza da observação de Kid Vinil associa Tom Zé, David Byrne e Gonçalves Dias em chave inesperada.

A “Canção do exílio” é estruturado poeticamente com base na oposição adverbial entre o “cá” e o “lá”. Poema escrito em 1843, quando Gonçalves Dias estudava em Coimbra e mal passava dos 20 anos. O “cá” corresponde à terra do exílio, Portugal; o “lá” à pátria distante, o Brasil. À distância, paradoxalmente, o poeta aprecia, de modo inédito, a potência da terra natal. No entanto, aqui, Gonçalves Dias, e esse ponto vale por um tratado, é o sujeito da ação; cabe a ele fabricar o objeto da reflexão: a canção do exílio.

No caso da relação entre David Byrne e o então olvidado Tom Zé tudo mudou de figura — tudo vai mal, tudo. O artista brasileiro é menos o sujeito da ação de superação do seu próprio ostracismo do que o objeto avaliado e finalmente elogiado “lá de fora”, pelo músico estrangeiro. A declaração de Byrne é constrangedora: ao revelar seu fascínio com a genialidade de Tom Zé, seus amigos brasileiros, intrigados, perguntavam sem pudor aparente: “Tom Zé? Mas por que Tom Zé?”

(Alguns se renderam ao artista depois da chancela de “lá para cá” — o avesso do avesso é o modelo colonial tintim por tintim.)

Espero ter confundido você nesta primeira tentativa de explicação — nem que seja um pouco. Na próxima coluna, sigo nessa toada, tentando entender o momento mais agônico do documentário: uma cena tensa, na qual Tom Zé esteve a um triz de abandonar as palavras.

(Encontro marcado? Aproveite a semana para rever o filme.)

[1] Ver a partir de 1:16:03. Recomendo assistir à sequência na íntegra. Doloroso como permanece na ordem do dia o desabafo do artista.
[2] Idem, ver a partir de 1:15:20.

JOÂO CEZAR DE CASTRO ROCHA BLOG ” ICL NOTÍCIAS” ( BRASIL)

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