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CHARGE DE NANDO MOTTA ( BRASIL)
A República corrente não é parlamentarista. A legitimidade política maior, aferida pelo voto direto, divide-se entre a AR e o PR. Mas, por razões diversas, as duas instituições estão em crise.
Gémeas, malas, despedimentos, arruaça. Mas poderia dizer-se que, como noutros países, incluindo a Itália pré-Meloni ou o Japão, a sociedade e a economia progridem mesmo sem o estado, ou contra ele.
Infelizmente, aqui não é assim. A ainda excessiva dependência estatal dos portugueses faz com que as crises políticas sejam amplificadas na vida comum.
E a perceção tradicional de que a política, a “Grande Porca” de Bordalo, alberga demasiados desvios, ou pouco progresso, contribui sempre para a abstenção elevada, mesmo saneados os defuntos das listas eleitorais. Ou para a cada vez maior dificuldade de maiorias absolutas de um só partido. Ou para o sonho de um salvador que resgate tudo e todos, sem se apropriar do povo que salva.
Em poucas palavras, o Portugal político volta a caminhar entre o ceticismo e o sebastianismo.
Os recentes escândalos no Chega e no BE mostram que nenhuma franja do hemiciclo está imune à erosão, sobretudo porque as lideranças nunca tiram consequências suficientes dos desastres internos.
Num dos casos, a situação é ainda mais patética porque, desconhecendo a Constituição (art. 160) e a Lei (Estatuto dos Deputados, art. 8º e 11º), ninguém quer admitir que é possível a um deputado continuar em funções, apesar do processo judicial preliminar, sem uma decisão parlamentar de suspensão. Esta devia ser vista com mais atenção e mais urgência, em vez dos apelos a meras pressões políticas, sem resultados provados.
Por outro lado, tudo se agrava com as ameaças à integridade de membros não suspensos. Compreende-se a indignação do cidadão comum, mas o eleito precisa de ser exemplar, e desculpar-se quando erra. Dir-se-á que estamos ainda longe das cenas maciças de pancadaria, por exemplo nos parlamentos asiáticos, mas convém não baixarmos os patamares do civismo.
Pode dizer-se que a deterioração da vida institucional é mero reflexo do aumento estatístico do crime violento/grave, 22% de 2022 até maio do ano passado, já aqui referido (outra coisa é a diminuição, também contabilizada, da delinquência geral), ou o facto de, em 2022, aparecermos atrás de Espanha no leque europeu dos assassínios (quinta melhor posição da UE, apesar disso).
Mas também essas nuvens não desculpam as tempestades recentes.
Do observatório executivo, e face à borrasca, Montenegro deve olhar com conforto para a última sondagem da Pitagórica, PNS perceber que tem de construir pontes, como qualquer bom pai de família, e Gouveia e Melo consultar os detalhes da vitória presidencial do general do exército na reserva Petr Pavel, na sofisticada República Checa, em 28 de janeiro de 2023.
Das suas cabinas no Titanic, talvez consigam avistar o icebergue e alterar a rota comum.
PS (o próprio) – A insuficiência de dados sobre a criminalidade na UE é geral. Há países que não reportam, e há larga desatualização estatística. Mesmo assim, sabemos que o homicídio subiu 4,4% em 2021.
A melhor defesa é a defesa
Assim como não há liberdades efetivas sem garantias, nenhum país cresce sem defesa contra as agressões.
Só estados policiescos, com exércitos de ordem pública, possuem gastos ilegítimos, ou secretos, na repressão.
Os outros precisam de considerar a defesa como um bem natural, que tem de ser tão bem tratado como a habitação, o ambiente, a indústria, a educação ou a saúde.
A exigência de mais despesas militares não é metafísica. Está ordenada e quantificada na LPM. Do que necessitamos é de um acordo político para adaptar essa Lei à realidade. Mesmo alterando-a radicalmente, ou substituindo-a.
Rapidamente.
O diabo dos detalhes
Apesar da ameaça russa evidente a um Estado que possui largo território aeronaval, Lisboa tem responsabilidades imediatas de equilíbrio orçamental.
A contribuição portuguesa para a NATO, a aumentar significativamente, poderia excetuar-nos dos pactos europeus sobre estabilidade?
Ou pode Portugal pagar com serviços (empenhando forças e meios que outros não possuem) em vez de prestações financeiras diretas?
É certo que não há nenhuma decisão da Aliança sobre o aumento de 5%.
Mas convém que todos os partidos digam claramente o que pensam “dos 2% mais cedo”.
E que se responsabilizem pelas consequências.
Trump, os EUA e a Europa: quem precisa de quem?
Um diplomata disse, em 2022, que a UE é menor do que a soma das suas partes.
E tem um PIB próximo do americano (15,2% do total mundial, contra 15,5%), quando era 1/3 mais pequeno, em 2000.
A UE tem mais 100 milhões de habitantes do que os Estados Unidos, e dois dos membros europeus da NATO são potências nucleares modernas.
Além disso, a balança comercial entre EUA e Bruxelas é favorável aos europeus.
Trump precisa dessa Europa. E, bluff à parte, teme-a.
Mas só, como diz Tusk, se estiver unida e missionada.
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NUNO ROGÉRIO ” REVISTA SÁBADO” ( PORTUGAL)
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