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Todos os deportados são brasileiros – como eu e você, que agora me lê
O comentário, deixemos a cargo das palavras de Clarice Lispector:
“Esta história acontece em estado de emergência e de calamidade pública.”[1]
É assustadora a fotografia dos brasileiros deportados, chegando a Manaus algemados e acorrentados. Retrato sem retoques da retomada anacrônica — e por isso mesmo ainda mais bárbara — do princípio norte-americano das relações internacionais, tal como formulado pelo presidente Theodor Roosevelt Jr. (1901-1909), “The Big Stick Diplomacy”. A simples expressão é um exemplo único de desfaçatez intelectual; afinal, como entender uma “diplomacia” do grande porrete?
Em outras palavras, trata-se da lei do mais forte, imposta na cara dura: vilania à flor da pele, sem dissimulação, tampouco olhares oblíquos. Longas negociações? Por que perder tempo? Basta decretar estado de emergência e enviar tropas federais. Acordos e concessões? Nunca! São instrumentos dos fracos, isto é, dos que não podem impor seus caprichos e suas arbitrariedades.
Não será outra a orientação do governo de Donald Trump nos próximos 4 anos.
Brasileiro que nem eu…
Indignado com a imagem-epígrafe, gravei um vídeo-desabafo.
Não foram poucas as pessoas que sugeriram que muito provavelmente esses deportados seriam bolsonaristas e que, se pudessem, teriam votado em seu algoz, Donald Trump. Portanto, em tese, mereceriam a punição recebida.
Esqueçamos qualquer condenação de ordem moral; resistamos à tentação de invocar uma pretensa superioridade política. Deixe de lado esse baixo astral, erga a cabeça e enfrente o mal lendo “Dois poemas acreanos”, de Mário de Andrade.
I – Descobrimento
Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De sopetão senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.
Não vê que me lembrei que lá no norte, meu Deus! muito longe de mim,
Na escuridão ativa da noite que caiu,
Um homem pálido, magro de cabelo escorrendo nos olhos
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.
Esse homem é brasileiro que nem eu…
Antonio Candido escreveu sua obra-prima, “Formação da literatura brasileira (Momentos decisivos)” precisamente para refletir sobre o processo que leva à materialização desse sentimento comum, forjado à roda de leituras que engendram uma tradição própria — passo a passo, dentro da noite veloz.
O horror da cena que motiva este artigo talvez ofereça uma oportunidade ímpar, qual seja, resgatar a vivência plasmada nos versos do autor de Macunaíma. Todos os deportados são brasileiros — como eu e você, que agora me lê.
Em outro poema, igualmente imprescindível para pensar o dilema-Brasil, Carlos Drummond de Andrade lançou uma dessas tantas “perguntas sem resposta”; aliás, título de poema de Machado de Assis. Refiro-me ao cáustico “Hino Nacional”. Sua última estrofe reverbera como uma promessa-ameaça, veneno-remédio que tememos enfrentar.
Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?
Já passou da hora de tentarmos responder afirmativamente à questão-desafio: “E acaso existirão os brasileiros?”
JOÃO CÉSAR DE CASTRO ROCHA ” BLOG ICL NOTÍCIAS” ( BRASIL)
(That is the question — como você sabe.)
[1] Clarice Lispector. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990, p. 22.