Marçal vem praticando violência moral e verbal inaudita na campanha. A exerceu contra Boulos, Tábata, Datena e Nunes.
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Medida pelo metro da democracia formal e da civilidade, a cadeirada de Datena em Pablo Marçal é deplorável, recriminável. O problema é que medir os eventos da campanha eleitoral de São Paulo por esse metro não é funcional. Marçal introduziu na campanha outro metro: do xingamento, da desqualificação, da agressão e da violência.
A justiça eleitoral, a imprensa, os mediadores dos debates e os outros candidatos, por razões diversas, aceitaram o metro introduzido por Marçal. Naturalizaram seu discurso fascista, mesmo que involuntariamente. Se medirmos a ação de Datena por esse metro, a cadeirada foi previsível, necessária e escusável. Violência física e violência verbal e moral são tipos diferentes de violência. Em muitos casos, a violência moral e verbal é bem pior do que a violência física. A violência moral e verbal se reveste de caráter simbólico perdurável e um de seus efeitos mais dolorosos é que ela degrada a dignidade humana.
Marçal vem praticando violência moral e verbal inaudita na campanha. A exerceu contra Boulos, Tábata, Datena e Nunes. Depois de violentar a dignidade humana de Datena, o desafiou para a briga e o desprezou como se o oponente fosse uma pessoa covarde e sem coragem. A reação de Datena foi a reação de uma vítima humilhada perante a agressão insuportável de um opressor.
Marçal foi o agressor e Datena foi a vítima. Não pode haver dúvida a esse respeito. A reação de Datena foi natural, impulsiva, reativa, contra uma violência que investiu para destruir a sua honra e a sua dignidade. Datena só quis restabelecer a sua honra e sua dignidade. Mas na medida em que essa reação – a cadeirada – foi uma reação natural de força que ocorreu no contexto de uma disputa política, ela também foi imantada por uma dimensão política.
Cientistas políticos, analistas e jornalistas recorrem a uma meia verdade para equiparar a violência moral e simbólica de Marçal com a violência física de Datena, afirmando que a política é a arte de resolver conflitos sem recurso à violência. A verdade dita por Clausewitz de que “a guerra é a continuidade da política por outros meios” continua válida até hoje e continuará no futuro até onde se pode conceber que o ser humano continuará sendo o que foi e o que é.
A inversão da afirmação de Clausewitz, de que “a política é a continuidade da guerra por outros meios” também continua inabalável para quem encara a política com realismo. Maquiavel já tinha ensinado esses fundamentos da política, da guerra, do poder e do Estado. O Estado da democracia civilizada exerce diariamente variadas formas de violência contra grupos sociais vulneráveis.
A democracia tem, entre outras, duas grandes clivagens. Existe a democracia civilizada dos jornalistas, dos cientistas políticos, dos jornalistas, dos juristas, dos partidos, dos gabinetes, dos parlamentos, dos palácios e dos bem-viventes. E existe a democracia profana das periferias, das ruas, dos botecos, das redes sociais que são um transbordamento das ruas, dos 46,3 mil mortos por violência em 2023, dos 30 mil mortos no trânsito no mesmo ano, das dezenas de milhares de jovens pobres e negros presos sem julgamento, dos feminicídios crescentes, do racismo estrutural, dos roubos, dos assaltos, dos golpes, dos moradores de rua, dos pobres…
Essas duas democracias não se encontram. A democracia civilizada não consegue integrar a democracia profana. A afasta. Quer apenas os votos. Datena e Marçal, cada um a seu modo, focam na democracia profana. Datena quer ser a voz indignada dessa democracia. Marçal quer fascistizar esses deserdados do sistema.
Marçal não está apenas fazendo uma campanha para a prefeitura. Ele está fazendo propaganda protofascista, totalitária. Os elementos totalitários apontados por Hannah Arendt e outros estão aí no discurso de Marçal: uso da mentira como método, estímulo ao ódio e à violência, desqualificação dos adversários/inimigos como seres inferiores condenados pela história ou por qualquer outra providência, desprezo às leis e às instituições…
Alguns dizem que Marçal só quer ganhar dinheiro na internet. Ele quer as duas coisas: um regime fascista e ganhar dinheiro. Afinal de contas, os nazistas se apossaram das riquezas dos judeus, de obras de arte, ouro, prata e tudo o que podiam saquear. Não era só ideologia. Marçal, Bolsonaro, Trump, Bukele e outros são expressões, com vieses diferentes, do mesmo fascismo. Marçal foi conhecer as atrocidades que Bukele pratica contra os jovens e os pobres em El Salvador.
Bukele fez uma visita ao parlamento, em fevereiro de 2020, um ano depois de eleito, com um grupo de soldados armados. Colocou o Parlamento de joelhos para impor a sua vontade. Trump patrocinou a invasão do Congresso por hordas violentas. Bolsonaro está por trás das invasões das sedes dos três poderes em Brasília. Marçal tem as mesmas ambições de poder, violência e dinheiro.
O presidente salvadorenho mandou encarcerar milhares de jovens sem julgamento. Aqui a extrema-direita quer tomar conta do STF. Já pregou o enforcamento de Alexandre de Moraes. O farão se os acontecimentos o permitirem. Como conter esses fascistas? Alexandre de Moraes é criticado por, supostamente, violar regras jurídicas e constitucionais. O certo é que não se detém o fascismo apenas com formalismos jurídicos.
A cadeirada de Datena, independentemente de sua intenção e até de sua ideologia e do que ele pensa sobre democracia, foi uma cadeirada antifascista. Ela foi imantada por um poder simbólico. Nesse sentido, os antifascistas e aqueles que prezam a democracia, expropriaram Datena do ato da cadeirada. Esse ato já não pertence ao apresentador.
Trata-se de um ato de defesa da democracia. Um ato de contenção do fascismo. O mesmo fascismo de Marçal que vinha desferindo cadeiradas contra a democracia, contra o Estado de Direito, contra uma disputa política em termos aceitáveis, contra o eleitorado, contra a cidadania. A democracia profana, que não alimenta grandes ilusões pela institucionalidade da democracia formal e civilizada, se apropriou do poder simbólico da cadeirada para defender essa mesma democracia formal e civilizada claudicante. É sempre assim: os civilizados e bem-viventes dos palácios e gabinetes, dependem da fúria da plebe para se salvarem e continuarem com o seu elitismo excludente. Dolorosamente, a plebe depende da manutenção da democracia formal e civilizada para não perder mais do que perde todos os dias. Terá fim esse vai e vem exasperante algum dia em favor de algo melhor e mais justo?
ALDO FORNAZIERI ” JORNAL GGN” / ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)
Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política e autor de Liderança e Poder.