O SUICÍDIO DE GETÚLIO VARGAS

CAPA DA REVISTA CARETA

A trajetória política de Vargas, atravessando períodos democráticos e autoritários, só pode ser compreendida à luz das transformações econômicas e sociais que o país vivenciava

Na madrugada de 24 de agosto de 1954, o Brasil despertou para uma notícia que abalaria profundamente suas estruturas políticas e sociais: o suicídio do presidente Getúlio Vargas. Setenta anos após esse evento traumático, torna-se crucial revisitar esse momento histórico com um enfoque nas experiências dos trabalhadores e das classes populares, explorando como as políticas varguistas moldaram as lutas sociais e o cotidiano no Brasil.

A trajetória política de Getúlio Vargas, atravessando períodos democráticos e autoritários, só pode ser plenamente compreendida à luz das transformações econômicas e sociais que o país vivenciava. O acelerado processo de industrialização e urbanização gerou novas demandas e conflitos sociais, aos quais o governo Vargas respondeu com uma política trabalhista que buscava equilibrar a concessão de direitos com o controle e a disciplina do movimento operário.

As mudanças implementadas durante a era Vargas não podem ser vistas como simples imposições vindas de cima, mas sim como resultados de um complexo processo de negociações e lutas entre diferentes grupos sociais. Os trabalhadores não foram apenas receptores passivos das políticas estatais, mas agentes ativos na construção de seus direitos e na formação de sua identidade de classe.

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), instituída em 1943, é muitas vezes destacada como o grande legado varguista. Contudo, uma análise mais profunda revela que essa legislação foi fruto de um longo processo de reivindicações e lutas dos trabalhadores, muitas vezes silenciadas pela narrativa oficial. A historiadora Angela de Castro Gomes observa que a CLT não foi uma simples concessão do Estado, mas uma resposta às pressões sociais dos movimentos de trabalhadores.

Ainda que tenha representado avanços em termos de direitos trabalhistas, o governo de Getúlio Vargas manteve uma postura ambígua em relação aos sindicatos. Se por um lado reconhecia a importância dessas organizações, por outro buscava subordiná-las ao controle estatal, criando uma estrutura sindical atrelada ao Ministério do Trabalho. Essa política de cooptação e controle deixou marcas profundas na organização dos trabalhadores brasileiros.

O modelo econômico varguista, centrado na substituição de importações e no fortalecimento da indústria nacional, teve efeitos significativos na estrutura social do país. O historiador Francisco Foot Hardman argumenta que esse processo não foi homogêneo nem isento de contradições, gerando desigualdades regionais e setoriais que perduram até os dias atuais.

A política nacionalista de Getúlio Vargas, especialmente em seu segundo governo (1951-1954), gerou tensões com setores conservadores e com o capital estrangeiro. A criação da Petrobras e a defesa do monopólio estatal do petróleo são exemplos emblemáticos dessa orientação. No entanto, é preciso questionar até que ponto esse nacionalismo efetivamente beneficiou as camadas populares ou serviu aos interesses de uma burguesia nacional emergente.

O populismo varguista, frequentemente criticado por seu caráter manipulador, requer uma análise mais nuançada. O historiador Jorge Ferreira demonstra que a relação entre Getúlio Vargas e as massas não pode ser reduzida a uma simples manipulação, mas deve ser compreendida como um complexo jogo de negociações e disputas simbólicas, no qual ambos os lados tinham agência e interesses próprios.

A repressão aos movimentos de esquerda, particularmente durante o Estado Novo (1937-1945), é um aspecto sombrio do legado varguista que não pode ser ignorado. A perseguição a comunistas, anarquistas e outros grupos dissidentes revela o caráter autoritário de seu governo, mesmo quando se apresentava como defensor dos trabalhadores. Esta contradição expõe a complexidade do período e a necessidade de uma análise que ultrapasse categorias simplistas.

O suicídio de Getúlio Vargas em 1954 não deve ser compreendido apenas como um ato individual, mas como o desfecho de uma crise política e social mais ampla. A carta-testamento deixada por ele, com sua retórica nacionalista e popular, teve um impacto profundo na memória coletiva brasileira, contribuindo para a construção de um mito que persiste até hoje. É fundamental analisar criticamente como essa mitificação moldou a política brasileira nas décadas subsequentes.

A herança varguista no campo do trabalho é marcada por complexidades e contradições. Se por um lado estabeleceu direitos fundamentais, por outro, criou estruturas que limitaram a autonomia dos trabalhadores. O sociólogo Ricardo Antunes argumenta que é necessário superar a visão dicotômica entre “direitos” e “tutela” para compreender as nuances dessa legislação trabalhista e seu impacto na formação da classe trabalhadora brasileira.

É também indispensável considerar como as políticas varguistas afetaram diferentes segmentos da classe trabalhadora. As mulheres trabalhadoras, por exemplo, enfrentaram desafios específicos, muitas vezes negligenciados pela historiografia tradicional. A legislação trabalhista, apesar de seus avanços, também reforçou certos papéis de gênero e não abordou de forma adequada as demandas específicas das mulheres no mercado de trabalho.

Igualmente, é preciso analisar como as políticas varguistas impactaram os trabalhadores rurais, que foram largamente excluídos dos benefícios da legislação trabalhista urbana. Essa exclusão contribuiu para a manutenção de estruturas de poder no campo e para o aprofundamento das desigualdades regionais no Brasil.

A política educacional do período Vargas também merece uma atenção crítica. Embora tenha havido avanços na expansão do ensino público, o sistema educacional permaneceu profundamente desigual, refletindo e reproduzindo as hierarquias sociais existentes. A educação profissional, em particular, foi orientada para atender às demandas da industrialização, muitas vezes em detrimento de uma formação mais ampla e crítica.

Nos dias atuais, em um contexto de globalização e reestruturação produtiva, o legado varguista é constantemente questionado. As reformas trabalhistas recentes reacenderam o debate sobre a pertinência da CLT no século XXI. No entanto, é crucial que essa discussão não perca de vista as conquistas históricas dos trabalhadores e o papel central do trabalho na sociedade brasileira.

A figura de Getúlio Vargas continua a gerar polêmicas e interpretações divergentes. Para alguns, ele encarna o arquétipo do líder populista que soube manipular as massas; para outros, foi o estadista que lançou as bases da modernização brasileira. Uma abordagem crítica deve evitar tanto a demonização quanto a glorificação, buscando compreender Getúlio Vargas e seu governo dentro do contexto histórico específico em que atuaram, sem perder de vista as contradições e complexidades do período.

O estudo do período varguista oferece importantes lições para o presente. A tensão entre autoritarismo e democracia, a relação entre Estado e movimentos sociais, e os dilemas do desenvolvimento econômico são questões que permanecem relevantes na política brasileira contemporânea. Compreender criticamente esse período é essencial para enfrentar os desafios atuais e pensar em alternativas para o futuro.

É imperativo reconhecer que o legado varguista não se limita às instituições e leis criadas durante seu governo, mas se estende à própria formação da identidade nacional brasileira. A ideia de um Estado forte e interventor, capaz de mediar conflitos sociais e promover o desenvolvimento, permanece uma referência importante no imaginário político brasileiro, com implicações tanto positivas quanto negativas.

Ao revisitar os 70 anos do suicídio de Getúlio Vargas, somos convidados a refletir não apenas sobre o passado, mas sobre o futuro que desejamos construir. O legado varguista, com suas contradições e complexidades, continua a influenciar o debate político e social no Brasil. Cabe a nós, no presente, reinterpretar criticamente essa herança, buscando caminhos para uma sociedade mais justa e democrática.

A análise crítica do legado de Getúlio Vargas nos lembra da importância de uma abordagem historiográfica que privilegie a experiência e a agência dos trabalhadores e das classes populares. Somente assim poderemos compreender verdadeiramente as complexidades do passado e suas implicações para o presente e o futuro do Brasil.

ERIK CHICONELLI GOMES “!PORTAL A TERRA É REDONDA” ( BRASIL)

*Erik Chiconelli Gomes é pós-doutorando na Faculdade de Direito na USP.

Referências


ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 2015.

FERREIRA, Jorge. O imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular 1945-1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

FOOT HARDMAN, Francisco. Nem pátria, nem patrão! Memória operária, cultura e literatura no Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2002.

GOMES, Angela de Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.

GOMES, Angela de Castro; SILVA, Fernando Teixeira da (Orgs.). A Justiça do Trabalho e sua história: os direitos dos trabalhadores no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2013.

GOMES, Erik Chiconelli. Conselho Nacional do Trabalho: primórdios. Campinas: Editora Lacier, 2024.

NEGRO, Antonio Luigi; GOMES, Flávio. Além de senzalas e fábricas: uma história social do trabalho. Tempo Social, v. 18, n. 1, p. 217-240, 2006.

FRENCH, John D. Afogados em leis: a CLT e a cultura política dos trabalhadores brasileiros. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001.

WEINSTEIN, Barbara. For Social Peace in Brazil: Industrialists and the Remaking of the Working Class in São Paulo, 1920-1964. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1996.

WOLFE, Joel. Working Women, Working Men: São Paulo and the Rise of Brazil’s Industrial Working Class, 1900–1955. Durham: Duke University Press, 1993.


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