O regime fascista sempre pesa sobre a língua e a própria linguagem, como pesa originalmente sobre o psiquismo disponível ao passado simplificado do fascista
Uma das realizações de regimes fascistas efetivamente operando em seu mundo é a produção daquilo que George Orwel chamou de novaliíngua em Admirável mundo novo. O regime fascista sempre pesa sobre a língua e a própria linguagem, como pesa originalmente sobre o psiquismo disponível ao passado simplificado do fascista. Ele completa e torna densa a relação de cisão e de poder existente entre a linguagem e a realidade social. Fixada por violência e pelas balas e bombas do poder, no fascismo a ideologia tende a se tornar o real, fazendo efeito mesmo como outra coisa sobre o sonho, dando à linguagem a concretude da pedra, a que se atira sobre o inimigo e a que esmaga e paralisa a possibilidade de circulação da diferença.
Atirar pedras, espancar, torturar ou fazer barulho, ou bater panelas…, para assustar o inimigo evocando um estado de guerra primitiva, imaginária ou real, são traços e operações de poder arqueológicos, que deixaram a marca de horror que pressupunham na própria linguagem do futuro, reduzindo o sabido voo do espírito ao ato material sobre o corpo do outro. São traços do passado distante que podem voltar, como memória da forma, do ato e da coisa, e não do sentido, trabalho do pensamento que não existe lá, ou aqui.
O passo final das clivagens fascistas, das suas certezas que legitimam a violência e o extermínio, a tortura e o escárnio dos adversários políticos, seus gozos de massa, de sua falsa identidade de uma superioridade qualquer, de sua vida prática que busca a ação e que recusa fortemente qualquer conhecimento meditado, criativo ou crítico de algum modo é uma ampla curvatura descendente no plano da linguagem, o carregamento excitado das palavras que tende ao concreto de seu valor, o desprezo aberto por outras palavras que devem ser recusadas, negadas, o deslocamento do plano do léxico e da semântica para outro centro gravitacional cuja natureza política é interessada, imensamente triste, melancolia da história, mesmo que excitada em seu presente absoluto.
“A partir de 1939, o carro de corrida foi substituído pelo tanque, e o motorista de automóvel foi substituído pelo Panzerfahrer [motorista de tanques]. (…) Durante doze anos, o conceito e o vocabulário do heroísmo estiveram entre os termos prediletos, usados com maior intensidade e seletividade, visando a uma coragem belicista, a uma atitude arrojada de destemor diante de qualquer morte em combate. Não foi em vão que uma das palavras prediletas da linguagem nazista foi o adjetivo kämpferisch [combativo, agressivo, beligerante], que era novo e pouco usado, típico dos estetas neorromânticos. Kriegerisch [guerreiro] tinha um significado muito limitado, fazia pensar somente em assuntos de Krieg [guerra]. Era também um adjetivo claro e franco, que denunciava a vontade de brigar, a disposição agressiva e a sede de conquista. Kämpefersch é outra coisa! Reflete de maneira mais generalizada uma atitude de ânimo e de vontade que em qualquer circunstância visa a autoafirmação por meio de defesa e ataque, e não aceita renúncia. O abuso da palavra kämpferisch corresponde ao uso excessivo, errado e próprio do conceito de heroísmo. (…) Desde o primeiro dia de guerra até a queda do Terceiro Reich, todo heroísmo em terra, ar e mar usou uniforme militar. Na primeira guerra ainda existia um heroísmo civil por tráz da linha do front. E agora? Até quando haveria um heroísmo ali? Por quanto tempo ainda haveria vida civil?”[i]
Em seu estudo sobre a degradação e a produção de linguagem própria do nazismo alemão e seu regime o primeiro ponto que Victor Klemperer destaca e recorda é a busca de uma fusão da ideia de belicosidade comum e desabrida, agressividade na vida, com a política ampla da transformação de tudo o que existe e vive no mundo em “guerra”. Configurando uma construção em que a guerra deve se tornar total, interna aos sujeitos,ato de subjetivação e de ser, e o horizonte de todo o mundo externo existente, da cultura, o mundo do nazismo era a substituição da vida civil pela vida como batalha sem sobreviventes. “O carro de corrida foi substituído pelo tanque, e o motorista pelo panzerfahrer”. Kämpefersch.
Assim do velho mundo esportivo e de espetáculo técnico, ligado à cultura liberal, o mundo cotidiano do elogio da competição e do desempenho – desempenho de mercado, e de guerra, “cujo princípio é o mesmo” dizia, simplesmente, Marcuse -, do prazer da vulgaridade agressiva cotidiana e comum na vida moderna, sublimada na forma da própria técnica, o bólide do carro de corrida, objeto fálico de um gozo que voa rápido e vai na frente, ultrapassando a cultura que o segue irremediavelmente como empuxo e como vácuo, o progresso, a cultura nazista definitivamente tira o peso da façanha individual, desrealizando-a, e a esquece, poderíamos dizer, concentrando todas as intensidades inteiramente na língua da façanha técnica de Estado, das divisões panzer maciças e pesadas, dos tanques que ocupavam imenso espaço concreto no mundo, reais corpos lentos do sentido mas totalitários na torção que fazem do próprio espaço com sua presença, ocupantes imensos de espaço vital também na própria língua.
O deslocamento é expressivo, habita os significantes e os sintagmas da vida, configurando uma espetacular regressão tópica, temporal e formal no interior da própria linguagem: do indivíduo, da competição, da técnica e do mercado, como sonho comum do mundo liberal burguês, à massa social fundida ao Estado, a ocupação concreta do espaço, a tecnologia bélica e a guerra, como espírito comum do tempo.
A restrição e a alteração da vida imaginária, e do universo de palavras disponíveis era uma realidade política clara do fascismo, e do aberto aventuroso do mundo excitado do brilho individual e burguês, chegávamos ao fechado, invasivo, bélico, destrutivo e pesado como o Estado do tanque de guerra alemão, ou italiano. Renuncia-se a vida do espírito, que a senhorita valorizava…”, diz Klemperer a uma amiga em plena ascensão do nazismo, nova convertida que justifica tudo.
Semântica e léxico sociais estavam alterados, na direção da restrição, comunhão orgânica e do peso, além da belicosidade como cultura. Panzerfahrer. Kämpefersch. Era o espírito do tempo, de uma solução – ou dissolução – em violência da crise aguda do capitalismo da época, que falava, encarcerando e aproximando as palavras da luta desabusada e direta e do bando em busca de confusão e sacrifício, mais baixo e comum. O bando que renunciou à linguagem.
Em seu estudo sobre a ideia do ur fascismo, das condições de irresponsabilidade, transcendência e ativação da violência presentes em todo movimento histórico de tipo fascista, Umberto Eco também anotou algo a respeito da vida das palavras em um regime de ordem e progresso muito autoritário, centralizado no líder do Estado:
“Em 1942, aos dez anos, eu ganhei o primeiro prêmio do Ludi Juvenelis (concurso de livre participação forçada para jovens fascistas italianos, a saber: todo jovem italiano). Havia discorrido com virtuosismo retórico sobre o tema: ‘Devemos morrer pela glória de Mussolini e do destino imortal da Itália?’ Minha resposta foi sim. Eu era um garoto esperto. Depois, em 1943, eu descobri o significado da palavra ‘liberdade’. Naquela época, ‘liberdade’ ainda significava ‘libertação’. (…) Na manhã de 27 de julho de 1943 foi-me dito que, de acordo com as comunicações lidas no rádio, o fascismo havia caído e Mussolini havia sido preso. Minha mãe mandou-me comprar o jornal. Eu fui à banca mais próxima e vi que os jornais estavam lá, mas os nomes eram diferentes. Além disso, após um breve olhar pelas manchetes, percebi que cada jornal dizia coisas diferentes. Comprei um ao acaso e li uma mensagem impressa na primeira página assinada por cinco ou seis partidos políticos, como Democratas Cristãos, Partido Comunista, Partido Socialista, Partido da Ação, Partido Liberal. Até aquele momento de minha vida eu acreditava que havia apenas um partido para cada país e que, na Itália, havia apenas o Partido Nacional Fascista. Eu estava descobrindo que no meu país poderiam existir jogos políticos diferentes, simultaneamente. Não só: como era um garoto esperto, logo percebi que era impossível que tantos partidos houvessem surgido de um dia para o outro. Entendi que eles já existiam como organizações clandestinas. A mensagem celebrava o fim da ditadura e o retorno da liberdade: liberdade de expressão, de imprensa, de associação política. Estas palavras, ‘liberdade’, ‘ditadura’ – Deus meu – foi a primeira vez na minha vida que as li. Em virtude dessas novas palavras eu tinha renascido como um homem ocidental livre.”[ii]
O menino do interior da Itália – como Fellini recorda também em Amarcord – vive, em julho de 1943, um rápido movimento avesso àquele do espírito pesado que tomou o mundo moderno muito fixado de Klemperer.
Após passar a sua vida sob o regime fascista de Mussolini o menino sabe escrever bem, aliás muito bem, sobre a submissão da vida à pátria e ao líder controlador. Palavras e pensamentos convergem unidas, na criança, para o poder. Ele sabe participar corretamente da convocação livremente forçada de todo garoto fascista, ou seja todo menino italiano, para reproduzir e aumentar o poder do Estado e seu guia. Ele sabe ser esperto e mobilizar a língua de algum modo, como sempre saberia, para reconhecer e ser reconhecido pelo regime que o formou, que o formou tanto quanto a própria mãe, evocada por um segundo no relato, um fio de continuidade de si mesmo em um mundo que se revolucionava e se abria em um cenário histórico de possibilidades.
No entanto, o futuro linguista e romancista pós-moderno desconhecia completamente o significado de certas palavras da própria língua quando públicas e políticas, e não sabia do movimento da vida de amplos aspectos da história, imagens da vida, que se elidiam em conjunto com o esvaziamento da vida das palavras banidas. Toda uma semântica da vida social lhe fora realmente ocultada, subtraída, toda uma matéria de sonho lhe fora duplamente recalcada, em seu mundo fascista quase por natureza das coisas. Toda uma estrutura da emergência mesmo do sentido lhe era desconhecida. Ocupada por outra ordem de sonhar, e natureza de desejo, que nomeava tudo de um outro lugar, livre forçado, em que ser italiano era idêntico a ser fascista, a vida dos conceitos básicos da política moderna, e suas palavras, lhe eram exotéricas.
Suas energias de vida foram condensadas no sistema de sentido das coisas políticas em que crianças de dez anos deviam escrever nas escolas de toda a Itália sobre o valor de se morrer pela pátria, concentrada na figura do líder que a enuncia com o próprio corpo. Outra vez, os sentidos fortemente restritos, muito menos do que uma capacidade de sonhar, aproximavam abertamente a subjetividade da capacidade de morrer, e de matar… O sonho fixo das palavras que emanam do corpo do líder e do projeto político extenso na cultura dissipa nuvens mais amplas de sentido, de praias e de passagens da dinâmica política, de imagens, de direitos, de experiências, mas também do próprio nome dos direitos perdidos e já não mais sonhados. Essa destruição, forçada livre, também constituía uma prisão na própria ordem das palavras, como deixa claro o menino linguista.
Para além da violência direta, o sistema político que estreita os espaços entre a esfera pública e o braço excitado de quem espanca, atira, tortura e mata, o fascista queria imprimir no campo da representação pública um conjunto de palavras aproximadas da coisa mesma que representam, enquanto também extirpa, como um cirurgião carniceiro do simbólico, mundos e mais mundos de possibilidades de sentido e de experiência, que desfalecem em conjunto com a morte programada do outro na cultura. A cultura programática da morte e do extermínio, é cultura da morte de palavras, e com elas, de sentidos.
Liberdade de expressão, de imprensa, de associação política, múltiplos partidos, um espaço público concebido como plural, de múltiplos jogos simultâneos e ocorrendo em múltiplas temporalidades sociais. Foi neste espaço de outra forma que o menino fascista foi lançado subitamente. Tudo deve ter sido vertiginoso, uma onda de erotismo na cultura, que trouxe de volta palavras e modos de viver que estavam sobre ocupação fascista. Sim, pois sabemos desde Sade que a grande maquinaria necessária do gozo sádico, sua catedral de posse e tortura, é apenas assessório, necessário, para o controle e o uso absoluto do corpo do outro: as palavras coincidem com a máquina de tortura que coincidem com o gozo fascista. Qual terá sido o choque de uma certa ideia de liberdade, no sentido da possibilidade da vida se mover em variados pontos e sistemas de sentido, partidos políticos e zonas de linguagem, versus o termo, também inexistente no sistema da restrição social da força fascista, “ditadura”?
De um lado, Eco descreve uma descompressão social, uma explosão de sistemas de vida e de linguagem, outras apostas sobre o campo político, outros desejos, articulados à ideia de um campo social livre. Outra produção de vida, outras palavras. O peso do líder Estado, do seu desejo de morte restritiva do nome das coisas que existissem sem ele, de seu tanque de guerra universal do sentido, de sua cultura do insulto, da belicosidade e da organicidade– vimos bem em Amarcord, com sinal de liberdade e ridículo a posteriori – de um senso de historicidade em que muitos agentes disputam o sentido das coisas humanas, que deviam ganhar um ponto em dialética, o que implica na sua real abertura para a história. Ditadura, liberdade.
Podemos intuir bem no relato como a cultura fascista é o negativo realizado de um espaço de vida entendido como multiplicidade, da pluralidade mínima dos direitos liberais coordenados pela sociedade de classes, ao que poderia chegar a ser ainda a pluralidade máxima “de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”, de um virtual socialismo democrático realizado. Assim, de fato, o cinema italiano do pós guerra era popular, livre, aberto à rua, humanista e revolucionário. Se sua real esperança socialista foi barrada no processo de redemocratização visando ao mercado mundial – o que levou Pasolini ao final dos anos de 1960 a falar em um novo fascismo, fascismo de consumo –sua força de experiência e valor desejante de humanidade de fato revolucionou o mundo do cinema, e o cinema mundial, nos anos de 1950 e 1960. Eco nos dá a medida de ressubjetivação da expansão forte do mundo das palavras, seu rápido desdobramento do plano da cultura em seus novos termos, que representam práticas do público e do político, o mesmo fenômeno de expansão humanista democrático e formal maravilhoso que vemos a vida no cinema italiano do pós-guerra. O menininho viveu a mesma emoção e expansão da vida que vemos, a própria forma, em um filme de Rosselini ou de Sica, que contavam aquela mesma história. Um cinema que se expandiu com tal força e de tal forma que criou, a partir da sua expansão antifascista, todo os cinemas nacionais e modernos do mundo, a partir dos anos de 1950 e 1960.
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Vejamos o impacto mais forte desta diferença, entre a cultura da concentração e do peso, organizada para a guerra, e a cultura da. multiplicidade, organizada para a ideia de fundo moderna de alguma liberdade. Sonhos podem nos dizer ainda melhor a natureza dessa relação política, de choque, sobre o corpo simbólico de uma pessoa em uma cultura que se restringe à violência política que a cerca. As camadas políticas e concretamente sociais, históricas, que sempre habitam o sonhar humano – como já nos diziam Roger Bastide e também Theodor Adorno, e como Freud foi o primeiro a mostrar, na série de sonhos políticos de A interpretação dos sonhos,conhecida como os seus sonhos romanos – nessa hora histórica limite se representam ainda com maior nitidez.
Porque o sonho é o limite simples da resistência, a fonte da mobilidade psíquica, o único resto da ideia de liberdade, o que o fascista visa é de fato dominá-lo, paralisá-lo, reconfigurá-lo mesmo como forma: de sua negociação civilizatória fundamental, da metáfora, da distância e da poesia do sonhar, do exílio humano sonhado em sentido, à ação direta de descarga e de recusa da existência do outro. Kämpefersch. Um dos alemães antinazistas, que eram obrigados a viver sobre Hitler, sonhou em 1934:
“A SA instala arames farpados nas janelas dos hospitais. Jurei para mim mesmo que não admitia isso em minha seção, caso chegassem com seu arame farpado. Mas acabo permitindo que o façam e fico ali, a caricatura de um médico, enquanto eles quebram os vidros e transformam um quarto de hospital em campo de concentração com arames farpados. Mesmo assim, sou demitido. Porém, sou chamada de volta para cuidar de Hitler, pois sou o único no mundo que pode fazê-lo: fico tão envergonhado de meu orgulho que começo a chorar.”[iii]
O sistema fascista de linguagem, de cultura, é um sistema de ações. Um sistema de ocupações ativas de sentido do espaço da vida simbólica pública, das subjetivações e, no limite, dos próprios sonhos. O mais íntimo, e aquilo que resiste, como dor, a toda violência. Toda mentira e toda linguagem fascista é uma ocupação de choque do real, uma mudança de sentido das coisas do mundo: arames farpados nas janelas do hospital, o hospital torna-se o campo de concentração, revela toda a agressividade e política que ele costuma ocultar e sublimar na ordem do mundo liberal. O campo do simbólico, espaço de movimento e vida do próprio sonho, é invadido pela coisa mesma de uma cultura que se torna farpada e violência em expressão. A coisa penetra o espaço do símbolo. Ao final é o próprio Hitler que faz exigências ao sonhador, porque de fato é o fascista que faz exigência simplesmente a tudo.
A cultura da mentira fascista é cultura de inversão do valor e dos sentidos das próprias coisas, uma ação invasiva e violenta para que as coisas mudem de nome, não sejam mais o que são. Não por liberdade elas devem alterar sua substância, não por erotismo ou por criação. Mas por desejo do poder. Para que hospitais se tornem prisões, e “profissionais liberais”, ou homens públicos sirvam ao poder real, se alinhem com o seu desejo, se tornem “médicos de Hitler”. A mentira pública sistemática do poder busca com insistência a invasão ativa dos espaços concretos, a destruição das fronteiras significantes da democracia sempre claudicante, de modo a degradar a natureza dos objetos existentes, das coisas e seus sentidos, a favor de seu núcleo de força, produtor puro de poder. Como veremos, os próprios limites significantes das palavras entram em crise. Elas estão de fato sendo dissolvidas, para ganhar nova configuração desde a estrutura do desejo fascista, que penetra o mundo, que mais quebra os cristais das palavras do que respeita algum pensamento que possa de fato atravessá-las. Mentira é ação, ocupação, e a ocupação das coisas e desde o espaço da política vai gerar a nova cultura da mentira, com seus novos termos: novalíngua.
O exemplo de quem sonha é dramático. Ele encena o terror político cultural frente o espaço social que se torna o peso da máquina de produção fascista. Como o tanque e a belicosidade que tomaram a cultura, o hospital se tornava também máquina de guerra, e o sujeito liberal de alguma personalidade democrática sente a invasão completa de seu espaço subjetivo pelas mesmas formas pesadas. Ele ainda resiste, mas se sabe tomado de assalto pela ordem da violência, que é prática, que ganhou força na cultura e que é sonho. A resistência pessoal e subjetiva está no limite, na fronteira, contra a transformação do próprio sonho traumatizado, não há como barrar, no sonho e na vida, a transformação do hospital em campo de concentração SA. Antes de ser expulso do espaço da violência, desejo de negá-lo, antes de ser demitido, o sonhador se torna uma caricatura de um médico: o movimento da ocupação do mundo e de si mesmo pelo terror é o movimento da desrealização de si próprio. O eu e suas ilusões na ordem liberal se tornam progressivamente irrelevantes, praticamente de papel. O circuito da linguagem do poder se apropriou do espaço público, e vem do todo, do continente das coisas e símbolos, intensamente para dentro do sujeito, que se desestrutura com ele, como um veneno psico-ideológico, como espaço coisa, real, contra o próprio sonho. Sua mentira é eficaz porque ela é ação real, real poder. Poder de deformar as próprias coisas. Ela mente sobre o hospital, mas também não mente mais, porque o hospital não é mais um hospital, é uma prisão e um campo de violências fascista. Como a cultura. E o sujeito que sonha? Ele não é um fascista enquanto ainda se aterroriza, reconhece a violência e o absurdo, e oscila diante do risco da própria adaptação totalitária.
A subjetividade está sitiada, pela conversão exigida pela cultura da mentira e da violência, que vem dos horizontes do mundo, o sujeito terá que decidir, entre a verdade da própria negatividade e a conversão à máquina de guerra, agressividade, desprezo e poder. Ele se tornará médico de Hitler? Pela pressão identificatória do todo, e pelo princípio de conservação, seu desejo será esmagado pela força de vida e de morte, o terror da mentira, muito ativas no poder fascista? Ele será convertido ao desejo simbólico do poder, pela ação de mentiras públicas, ameaça concreta e poder de Estado? O sonho faz a pergunta política de raiz. A pergunta do eu diante da identificação com o elemento totalitário do todo.
Nos sonhos, aquele homem na fronteira de toda violência histórica sobre si próprio jurou que não. Mas ao fim do sonho, após ser expatriado da cultura do poder, por ainda saber o que é um hospital e o que é uma prisão, ele é convocado, ele precisa se colocar diretamente, frente a frente com Hitler. Há desejo e há trauma nessa relação. É assim que se enfrenta a cultura fascista, de frente e negativamente. Ele terá que olhar para a realidade do poder, porque ela já não é mais recusável, de nenhum modo. O limite trágico e agonístico do fascismo e da subjetividade está colocado aí: ele é o único no mundo que pode salvar Hitler, ou seja, do ponto de vista político, aceitar a sua máquina de violência e de mentira. E como médico, que é o único que pode salvar o ditador, ele é também aquele que pode deixa-lo morrer… Ao converter totalmente a cultura em guerra o fascista exige de cada um uma decisão de vida e morte diante dele próprio.
Este é o maior horror, o paradoxo final de quem vê a vida como violência e desprezo pelo outro: apenas a guerra liquida, ou tranforma, quem faz da vida uma guerra real. Uma guerra com a forma do fascismo, que implica negá-lo na raiz e sempre. Uma guerra para fora da guerra fria do sonho fascista. Outra formação. O sonho mostra o quanto é difícil este trabalho social em si mesmo.
O sonho do médico alemão não nazista põe em ação no espaço da própria subjetividade aquela tragédia cultural política ridícula de aprisionamento do mundo, vivida e compreendida por Victor Klemperer. “Por quanto tempo ainda haveria vida civil? A Doutrina da guerra total se voltava contra os seus criadores de maneira terrível: tudo é espetáculo bélico, o heroísmo militar pode ser encontrado em qualquer fábrica, em qualquer porão. Crianças, mulheres e idosos morrem a mesma morte heroica, como se estivessem em campo de batalha, com frequência usando o mesmo uniforme desenhado para jovens soldados no front.”[iv] A vida civil se tornara a norma da vida limite da paixão autoritária, agressiva e bélica. De fato, Hannah Arendt lembrava a degradação odiosa de toda a vida pública europeia em um ar tóxico de desconfiança, de desprezo generalizado, que, após a catástrofe absoluta do mal do imperialismo nacionalista da Primeira Guerra Mundial, tomou a Europa, e preparou o terreno profundo para a ascensão do totalitarismo fascista. E os homens mobilizados, paramentados, uniformizados, invadidos pela estrutura de desejos do próprio mundo do poder não morriam mais ao seu modo, como dizia Freud no seu grande comentário metapsicológico aos efeitos da primeira guerra mundial sobre todos[v], mas morriam ao modo do desejo do poder. A vida civil tornou-se apenas o inferno de sua própria supressão. E generalização da cultura da inimizade. O motorista do tanque de guerra, a agressividade e belicosidade comum, que andavam nas ruas e nas cervejarias, o hospital como prisão e a morte em estado de guerra permanente. A morte da cultura, e a morte como cultura.
Charlotte Beradt prossegue na leitura do sonho do médico, paradigmático da degradação subjetiva e incorporação ao poder, conversão ao poder, que prossegue sendo sonhado pelo sonhador atormentado: “O médico acordou totalmente acabado, como acontece frequentemente quando se chora em sonho. Durante a madrugada, pensou sobre o sonho e encontrou sua causa premente, também muito esclarecedora para o quadro geral: na véspera, um de seus assistentes fora trabalhar na clínica com um uniforme da SA, e ele, apesar de revoltado, não protestou.”
Aí está a invasão e a degradação do espaço civil pelo desejo e pela linguagem, pelo espírito, fascista. O jovem médico nazista, com seu uniforme paramilitar, já ocupa, com acinte e arrogância, certamente desafiador e agressivo, o espaço neutro, o espaço social liberal e sua ordem de valores, o espaço da vida médica, que, em teoria, não deveria ser cercado pela política. Não de modo saturado, uniformizado, tendente a transfiguração da vida ao partido, e das relações à luta constante e universal pelo poder. Por quanto tempo ainda haveria vida civil?
Do ponto de vista do fascista, como preconiza a ocupação total do espaço, também o tempo está esgotado: por nenhum tempo mais deve haver vida civil despolitizada da luta total, da política do ódio, que deve ocupar cada hospital. Prossegue, Beradt:
“Dorme de novo e sonha: ‘Estou em um campo de concentração, mas todos os prisioneiros passam muito bem, participando de jantares e assistindo peças teatrais. Penso que é muito exagerado o que se ouve sobre os campos e então me olho no espelho: uso o uniforme de um médico de campo de concentração e botas altas especiais, que cintilam de tão brilhantes. Encosto-me no arame farpado e começo a chorar de novo.’// Esse médico precisa da palavra caricatura para definir a si mesmo – e é isso o que ele é, uma caricatura traçada precisa e friamente por um lápis em seu interior, no esforço de conciliar o inconciliável. No primeiro sonho, ele vê o perigo que existe no silenciar e a relação entre a inação e o crime. No segundo sonho, sob o lema ‘Tudo é falso’, ele se tornou cúmplice das forças que odeia: sua imagem no espelho contradiz a imagem que ele quer ter de si mesmo, no entanto suas botas altas brilham de forma tentadora. Cheio de vergonha, ele se conduz, em ambos os sonhos, a uma categoria em que não quer estar: ao mesmo tempo realiza, cheio de orgulho, o desejo de ser incluído. // O médico conta ainda que, no primeiro sonho, ele se ocupara obstinadamente da palavra Stacheldraht [arame farpado] (elemento que desempenha um papel tão proeminente em seus dois sonhos; primeiro ele pensou em Krachelstaat, depois em Drachelstaat [palavras inexistentes em alemão, mas que giram ao redor de Staat, ou seja, Estado…], mas, apesar de toda a desconstrução joycena da palavra, não pensou em Drachensaat [literalmente ‘semente de dragão’, expressão que significa ‘pomo da discordia’; é o ‘ovo da serpente’ de Bergman], palavra à qual, segundo ele, queria chegar, para mostrar as perigosas consequências que arames farpados e cacos de vidro poderiam ter para deficientes visuais. // Como se sabe, a história da SA e dos cacos de vidro aconteceu muitos anos depois, em 1938, na Noite dos Cristais. Esse evento contou com detalhes que pareciam ter sido tirados do sonho do ofatalmologista: quando os membros da SA destruíram as vitrines de todas as lojas judaicas, eles também quebraram, no oeste de Berlim, os vidros da pequena loja de um cego, que foi tirado de sua cama e obrigado a caminhar de pijama sobre os cacos. Aqui se vê mais uma vez que esses sonhos se mantinham na esfera do possível, ou melhor, do impossível, que estava prestes a se tronar realidade.”[vi]
O médico invadido e aterrorizado pelo nazismo em seu próprios sonhos, em uma política da intimidade e do inconsciente, projetava um saber histórico sobre o próprio porvir da coisa fascista. Por que ela é formula fixada da história, transfiguração da razão histórica em ordem da natureza, dizia Hannah Arendt, e assim pode ser prevista em detalhes. Como os campos de concentração eram planejamento máximo, em detalhes. Charlotte Beradt conclui, o sonho do médico é um trabalho de uma memória do futuro.
Uma memória do futuro, um desejo e uma fé, impulso máximo de dominar a contingência e determinar todos os parâmetros possíveis de realidade, transformá-la pela força, “pelos poderes universais do inferno” dizia o ditador latino-americano, com seu próprio tipo de fascismo, figurado no sonho, pesadelo, de Terra em transe. Uma memória determinada, fixada à pedra, paus, balas e bomba atômica, do futuro. Exatamente a imagem, a memória do futuro, como quem não sabe mais se sonha, delira ou vive o pesadelo, que Wilfred Bion formou pela primeira vez para a psicanálise, ao relembrar em um romance do fim da vida a experiência alucinada de ter dirigido um tanque de guerra inglês, máquina de proteção e de destruição de massas ao mesmo tempo, do heroísmo excitado dos estados capitalistas modernos imperiais, em um campo de extermínio de dois milhões de jovens mortos, nas planícies da Bélgica no coração da Primeira Guerra Mundial. Talvez não por acaso, Walter Benjamin insistisse tanto, em seus escritos visionários e de estilo pensamento forte, que o sonho antifascista deveria ser por natureza uma inquirição dialética do passado, aliás, como quis Freud, e não qualquer ordem de determinação de futuro.
TALES AB” SABER ” PORTAL A TERRA É REDONDA” ( BRASIL)
*Tales Ab´Sáber é professor do Departamento de Filosofia da Unifesp. Autor, entre outros livros de O soldado antropofágico: escravidão e não-pensamento no Brasil (Hedra). [https://amzn.to/4ay2e2g]
Uma versão anterior deste estudo foi publicada em Michel Temer e o fascismo comum, São Paulo: Hedra, 2017.
Notas
[i] Victor Klemperer, LTI, a linguagem do terceiro reich, São Paulo: Contraponto, 2009, p. 42.
[ii] Umberto Eco, “Ur Fascismo (O Fascismo Eterno)”, https://groups.google.com/forum/#!topic/livros_online/NFN0ye-94xA
[iii] Charlotte Beradt, Sonhos no terceiro reich, São Paulo: Três Estrelas, 2017, p. 78.
[iv] Victor Klemperer, op. cit..
[v] Além do princípio do prazer, 1920.
[vi] Charlotte Berardt, op. cit., p. 79, 80.