Quando começou a conspiração do impeachment, Fernando Henrique Cardoso aderiu de forma relutante – embora defendesse a prisão de Lula mais tarde – com a sabedoria de um cientista social: golpes dessa natureza todo mundo sabe como começa, mas ninguém sabe como acaba.
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Conforme demonstramos no “Xadrez do segundo tempo do golpe da ultra direita”, um conjunto forte de indícios aponta para o início de uma nova rodada de conspiração, visando a desestabilização do regime ou, no mínimo, sangrar as instituições até deixá-las sem ação.
É o que aconteceu na conspiração do impeachment – que analiso em meu novo livro “A Conspiração Lava Jato”.
Vamos entender as semelhanças entre os dois processos – o do impeachment e o de agora.
Peça 1 – a conspiração do impeachment
A ideia seria sangrar o governo Lula, ou até levá-lo ao impeachment, em favor do aliado político do mercado, o PSDB de José Serra e Aécio Neves,
Um dos passos preparatórios relevantes foi a anulação de personagens que poderiam ser um obstáculo ao avanço da conspiração.
O primeiro alvo foi o delegado Paulo Lacerda, que chefia a ABIN (Agência Brasileira de Inteligência) de Lula.
Até Lacerda, desde a gestão Romeu Tuma, a PF se transformou em um ninho de arapongas, espionando políticos, articulando-se politicamente.
Lacerda tinha duas funções estratégicas. A primeira, na condição de diretor da ABIN, monitorar as ações dos conspiradores. A segunda, na condição de liderança incontestável da Polícia Federal, conter o ímpeto de um grupo hegemônico de delegados.
Nos anos 90 e início de 2.000, com a criação do Sisbin (Sistema Brasileiro de Inteligência) e a introdução de programas de qualidade total, houve um salto na PF e no Ministério Público Federal – ambos liderados, respectivamente, por Paulo Lacerda e Cláudio Fontelles.
A Operação Satiagraha marcou o início de uma atuação mais atrevida da PF. A reação veio através de uma série de factóides, plantados pelo STF e pelo senador Demóstenes Torres – um ex-procurador ligado ao bicheiro Carlinhos Cachoeira.
Houve falsas denúncias de grampos no Supremo e o famoso grampo sem áudio – uma conversa entre o Ministro Gilmar Mendes e o senador Demóstenes Torres, ambos se elogiando, supostamente grampeados. Nos arquivos do GGN há inúmeras reportagens desmentindo o factoide.
A jogada maior foi em uma falsa denúncia de grampo no Supremo.
Na época, o assessor de informática da presidência do STF era Jairo Martins, o principal araponga de Cachoeira. Em uma sala do STF, aparelhos descobriram sinais eletrônicos que vinham de fora para dentro. Imediatamente a revista Veja – dirigida por Eurípides Alcântara -, soltou uma matéria falsa, juntando declarações de Ministros sobre suspeitas de espionagem, usando o mesmo método agora repetido pela Folha.
No mesmo sábado em que saiu a matéria, vários ministros desmentiram declarações atribuídas a eles pela revista. E Lacerda desmentiu que a ABIN possuísse aparelhos de grampo.
O tiro final que derrubou Lacerda foi do então Ministro da Defesa, Nelson Jobim, que garantiu que a ABIN adquirira equipamentos de grampo. Lacerda negou. Foi aberta uma CPI e, quando depôs, Jobim apresentou as supostas provas.
Aqui mesmo, um professor da USP mandou uma pesquisa que fizera na Internet. A página mostrada por Jobim não passava da página de um site da fabricante de equipamentos de escuta, reproduzindo inclusive erros de digitação do próprio site. Lembro-me da manchete da matéria que fizemos: “Jobim mentiu”.
Mas o governo Lula não acordou. Com base na falsa denúncia, Lula demitiu Lacerda. Na época, incumbiu Dilma Rousseff e Tarso Genro de dar explicações aos três jornalistas que estavam na linha de frente da defesa de Lacerda: Mino Carta, Paulo Henrique Amorim e eu.
Posteriormente, Dilma me contou que recebeu um telefonema desesperado do ex-Ministro Márcio Thomaz Bastos, para que não tirasse ABIN, porque senão deixaria o governo exposto a conspiração e desmontaria o profissionalismo da PF, abrindo espaço para a atuação dos grupos de delegados que atuavam politicamente em favor do PSDB.
Lacerda caiu e, nos anos seguintes, a PF se transformaria em um dos dois pilares da conspiração do impeachment – inclusive com delegados fazendo campanha abertamente para Aécio Neves.
Caindo Dilma, assumiu o vice-presidente Michel Temer escancarando as estatais e os grandes negócios da República aos grupos vencedores.
Peça 2 – a nova conspiração
Agora, se repetem com enorme coincidência, todos os passos da conspiração anterior, mas de uma maneira bastante amadora.
O novo pacto político
Na década de 2010, o pacto do mercado-mídia era com o PSDB, José Serra e Aécio Neves. Agora, é com Tarcísio de Freitas.
Com a privatização da Sabesp, Tarcísio conquistou o mercado. Sem o menor receio, montou a operação de privatização mais nebulosa da história, um escândalo que superou até a venda das refinarias da Petrobras.
Tarcísio demonstrou que, para o desfecho dessas articulações, é fundamental a presença de uma autoridade maior sem medo de futuros indiciamentos por corrupção. Nem Paulo Guedes, nem Bolsonaro, com sua falta de limites, ousaram tanto.
A maneira como montou a operação, comprando deputados da Assembleia Legislativa, os vereadores da Câmara Municipal, cooptando tribunais e Ministério Público Estadual, confiando na blindagem da mídia e do mercado, era a peça que faltava para se acreditar em uma futura venda das grandes estatais, se eleito presidente da República.
Mostramos no Xadrez que o alvo final dessa manobra seria a perspectiva de futura privatização da Petrobras, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal.
No editorial de hoje, a Folha deixou claro o jogo – e seu profundo amadorismo -, ao antecipar os objetivos finais da armação contra Moraes:
A derrubada das âncoras
Nos anos 2010, a âncora era Paulo Lacerda.
Depois do desastre Bolsonaro, o Supremo caiu em si sobre a loucura de conspirar contra as instituições e contra a democracia. Hoje em dia, a figura central da luta anti-conspiração é o Ministro Alexandre de Moraes.
A importância de Moraes se deve ao fato de ser o principal obstáculo à conspiração e à guerra cibernética – campo amplamente dominado pelo bolsonarismo.
A arma utilizada foi o vazamento das conversas dele com seu assessor – provavelmente pela Polícia Civil de Tarcísio de Freitas. E o momento escolhido foi o do aparecimento de sinais positivos na economia e da saída próxima do grande instrumento de desestabilização econômica: o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Aliás, na sexta-feira, momento em que se aceleraram as medidas para sua substituição, Campos Neto voltou a prever alta na Selic – mesmo com a provável queda dos juros nos EUA.
Para dar dimensão política à manobra de desestabilização de Moraes, as duas repercussões-chave foram de Tarcísio de Freitas e… Nelson Jobim de novo, agora na condição de membro do Conselho do BTG-Pactual.
O aparecimento de Jobim mostrou as impressões digitais do provável grande articulador da repercussão: André Esteves, do BTG Pactual, banco que convidou Jobim para membro do Conselho de Administração, está por trás da privatização da Sabesp e do lançamento da candidatura de Tarcísio à presidência.
O tiro na água
Só não se deram conta que os tempos são outros.
- No campo da mídia, só entraram no jogo a Folha-UOL, o Estadão e novos veículos de ultra-direita. Ainda como principal grupo da mídia do país, a Globo não entrou na conspirata. O grande cartel da ANJ (Associação Nacional dos Jornais) não foi reeditado.
- Ao contrário de 2008, o STF fechou-se unanimemente em defesa de Moraes, mas agora contra o golpe.
- Nenhuma figura de expressão aderiu ao golpe. Baluartes do golpismo anterior, como Ives Gandra e Janaína Paschoal, não apoiaram.
- Ao perceber que ficou sozinho na jogada, Jobim recuou, dizendo ter sido mal interpretado. Não foi. Há entrevistas gravadas em que ele compara a atuação de Moraes à da Lava Jato e sustenta que jamais houve conspiração bolsonarista, que 8 de janeiro foi uma mera baderna.
- Mesmo assim, expôs André Esteves. A partir de agora, haverá uma atenção redobrada da opinião pública – e do Supremo – sobre sua atuação.
Em todo caso, é apenas o primeiro lance.
Peça 3 – os novos tempos
Quando começou a conspiração do impeachment, Fernando Henrique Cardoso aderiu de forma relutante – embora defendesse a prisão de Lula mais tarde – com a sabedoria de um cientista social: golpes dessa natureza todo mundo sabe como começa, mas ninguém sabe como acaba.
Agora, surge o fator Pablo Marçal, tornando o cenário muito mais nebuloso.
Se não for parado, o que poderá ocorrer?
- Passará a disputar a liderança da ultradireita com Bolsonaro. Até agora, Bolsonaro ocupou espaço devido à falta de competidores. Marçal tem muito mais esperteza e appeal do que a hidra de Lerna do bolsonarismo – a cabeça e o micro-cérebro do pai e as cabecinhas com algum cérebro dos Bolsonarinhos filhos.
- Saindo candidato, Marçal matará a tentativa mídia-mercado de vestir Tarcísio de Freitas como uma versão bolso-moderada da terceira via. Sem o apoio maciço do bolsonarismo, Tarcísio será apenas um arremedo, com menos appeal, de um Luciano Huck. Para segurar a boiada, terá que se transmudar para Tarcísio-Hulck, sem garantia de retomar o eleitorado conservador de Marçal.
- Por outro lado, sua falta de limites e suspeitas de vinculações com o submundo das redes sociais e econômicas acende um farol vermelho de atenção.
Para contrabalançar a influência massacrante da BBBF – bala, bíblia, boi e Faria Lima – o governo Lula tenta se cercar de outros grupos influentes, como a J&F. Da mesma maneira, aliás, que se aliou às empreiteiras no período pré-Lava Jato.
Não se tenha dúvidas de que a próxima investida será sobre a parceria Alexandre Silveira-J&F. A maneira de contrabalançar seria avançar nas investigações sobre o cartel da Faria Lima.
A próxima etapa do jogo está apenas sendo ensaiada. Há muito jogo pela
frente.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)
frente.