UMA ENTREVISTA COM DELFIM NETTO

“Morreu na madrugada desta segunda-feira, 12/8, aos 96 anos, o economista Antonio Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda e ex-deputado federal”

Todos queriam ouvir o que Antonio Delfim Netto tinha a dizer. Governo, oposição, políticos e economistas de matizes diversas raras vezes ousaram desprezar o que ele escrevia, durante muitos anos, em suas colunas nos jornais “Folha de S. Paulo” e “Valor Econômico”, e na revista “Carta Capital”. O ex-ministro da Fazenda do governo do general Emílio Garrastazu Médici, época do “Milagre Econômico” e apogeu da ditadura militar, apoiou os dois primeiros governos Lula e, com ressalvas, o governo e meio de Dilma Rousseff. 

Em 2013, no primeiro governo Dilma, Delfim concedeu uma alentada entrevista a este colunista, para a Revista OAB-CAASP, quando falou em “esquizofrenia” em torno da inflação, das projeções para o PIB, da política de juros e da atuação do Banco Central, então sob o comando de Alexandre Tombini.

Sim, foi um colaborador destacado da ditatura, mas isso não apaga seu talento como economista. Delfim nunca rendeu-se ao financismo e sua morte, nesta segunda-feira (12), deixa uma lacuna. 

Reproduzo a seguir a entrevista que fiz com Delfim Netto durante o Governo Dilma, em que ele rema contra a corrente ortodoxa da época, cuja semelhança com a de hoje é nítida. 

Afinal, a economia brasileira vai bem ou vai mal?

Antonio Delfim Netto – Na verdade, o Brasil vai muito bem. O Brasil mudou. Desde a Constituição de 1988 as instituições estão muito mais sólidas, o país vem desenvolvendo instituições adequadas a um crescimento razoável. O Brasil está mais justo.

Em 2012, crescemos muito pouco, mas nos últimos 16-17 anos temos crescido em torno de 3% ou 4% ao ano, mas com uma mudança muito importante na distribuição da renda. A distribuição de renda tem melhorado, tem aumentado a igualdade de oportunidades de tal modo que se está criando um país mais decente.

O PIB de 0,9% em 2012 de fato é decepcionante. Mas, diante de um cenário mundial em que a Europa está em recessão, os Estados Unidos estão estagnados, o desempenho do PIB brasileiro configura uma catástrofe?

Para as nossas necessidades e possibilidades, seguramente é um crescimento baixo, mas que vai ser superado – eu estou convencido. O mais importante não é o crescimento no ano, mas sim que entre o terceiro e o quarto trimestres de 2012 tenhamos crescido 0,8%-0,9%. Isso significa que o Brasil já está crescendo alguma coisa entre 3% e 3,5% de modo anualizado. Então, estamos recuperando o crescimento. E consolidando a ideia de que esse crescimento tem de ser feito com inclusão social.

É correto afirmar que  “a inflação está de volta”, em tom alarmista?

Por óbvio, é um exagero. Eu acho o seguinte: inflação está mais alta do que a gente gostaria. O objetivo no Brasil é 4,5%, ela está rodando em torno de 6% e deve terminar o ano abaixo de 6%. Não é uma inflação para se bater palmas, mas não existe a menor possibilidade de se perder o controle sobre ela.

Essa inflação, também, é produto de um certo comportamento esquizofrênico do governo. O governo tem uma política social em que, por exemplo, ele aumenta o salário mínimo com uma fórmula extravagante – como no ano passado, 14%. Tem de haver uma relação entre produtividade e salário. A produtividade não subiu, então você tem tensões de custo produzidas por isso.

O governo faz distribuição de renda, o que é muito saudável do ponto de vista da sociedade, mas quem produz também reduz seu investimento. Ou seja, diminuiu-se a taxa de crescimento. Isso também exerce pressão inflacionária. Com a outra mão, o governo tenta controlar a inflação por meio de política monetária, e não ataca alguns problemas estruturais que existem, como o desequilíbrio fundamental no mercado de trabalho.

É preciso verificar o seguinte: não há a menor hipótese de se perder o controle dessa inflação. O governo continua com instrumentos que tem para controlá-la, acho que tem agido corretamente, não está se precipitando. 

Existe, obviamente, um cabo de guerra entre o mercado financeiro e o governo.  Há quem diga que “para o governo readquirir credibilidade, é preciso aumentar a taxa de juros”. Que o mercado financeiro deseje isso é perfeitamente compreensível. Como ele tem um poder de transmissão dessas ideias muito grande, criam-se ansiedades como esta, de que estaríamos a ponto de perder o controle. Nada. A política fiscal brasileira é bastante virtuosa. Temos um déficit fiscal de 2,5% – um dos menores do mundo.

Além do pessoal do mercado financeiro, há o pessoal das próximas eleições, não?

Esse é um processo legítimo, e um processo legítimo é uma delícia. Se você olhar, o Fernando (Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República) diz que foi ele quem criou o Brasil. O Lula (Luiz Inácio Lula da Silva, ex-presidente da República) diz que ele sim criou o Brasil. É natural. Só que antes do Fernando havia 450 anos, e antes do Lula havia 460.

A gente não pode levar a sério esse embate político, porque as pessoas que estão falando certas coisas sabem que essas coisas não são verdade. O mais surpreendente é eles acharem que os outros são tolos. 

Em termos econômicos, o governo Lula foi uma continuidade do governo Fernando Henrique?

É preciso que se entenda o seguinte: o ponto de inflexão do Brasil foi a Constituição de 1988. O Brasil está se tornando um país constitucionalmente sólido, institucionalmente forte.  O Plano Real só foi possível por conta dos avanços constitucionais. Não há nada que surja do nada. O governo Itamar Franco aceitou a ideia de fazer o Plano Real, contribuiu, se esforçou, aumentou as reservas internacionais. O Fernando, quando ministro da Fazenda, reuniu um grupo de economistas muito competentes e fez um plano brilhante de estabilização, que pode ser olhado de dois lados – do controle da inflação e do estímulo ao crescimento. Do ponto de vista da inflação, é um dos planos mais brilhantes do mundo. Do ponto de vista do crescimento é diferente: ele nunca foi completado, na verdade. A Lei de Responsabilidade Fiscal é outro mérito do governo do Fernando, contra a qual o PT lutou, diga-se.

Quando o Lula entrou, no fundo, aperfeiçoou a política do Fernando Henrique, e mudou a direção. A preocupação do Lula com a construção de uma sociedade socialmente mais justa produziu esse resultado que estamos vendo.

Quando eclodiu a crise de 2008, o senhor elogiou muito o presidente Lula por ter incentivado o crédito e o consumo naquela hora. O senhor exerceu alguma influência sobre Lula naquele momento?

Imagine se alguém precisa soprar alguma coisa para o Lula! O Lula, na verdade, é uma inteligência absolutamente privilegiada. Ele é um diamante bruto – e eu acho ótimo que não tenha sido lapidado, caso contrário ele teria restrições que não tem.

A administração Lula foi de muito boa qualidade, ajudada pelo que já vinha sendo construído, ajudada pelo vento externo favorável. Também acho que a Dilma (Dilma Rousseff, presidente da República) vai se sair muito bem. Ela é uma tecnocrata que leu os mesmos livros que a gente, trabalhadora, e está enfrentando problemas que ninguém ousava enfrentar. Basta ver seu primeiro movimento, que foi a mudança na Caderneta de Poupança, depois o ataque aos juros, o ataque ao custo da energia elétrica, o ataque à questão dos portos. Ela está tentando aumentar a competitividade. Estamos num processo de mudança da estrutura econômica do país.

Mas o nível de investimento não sobe, o “espírito animal” do empresariado não desperta. Por quê?

Eu acho que agora o governo entendeu. Os últimos discursos da Dilma revelam uma mudança radical, demonstram o entendimento claro de que é preciso ampliar o investimento público, de que o governo pode definir o que deseja em matéria de infraestrutura. “Eu quero uma estrada que seja uma Autoban alemã, que dure 25 anos e que atenda ao aumento da demanda” – aí, que se faça um leilão de boa qualidade, em que o governo fixa o que deseja e o mercado fixa a taxa de retorno. Qual era o equívoco? Era que o governo queria fixar a qualidade da obra e a taxa de retorno. Esses pontos estão ligados por uma curva – se você fixa um ponto, a curva lhe dá o outro. Se você fixar os dois, só por divina coincidência eles estarão em cima da mesma curva.

Os investidores estrangeiros – não os da especulação, mas os da produção – estão abandonando o Brasil?

Que nada. Estão aí, entrando à vontade, cobrindo déficits em contas correntes gigantescas. O que aconteceu no exterior é uma coisa muito simples. O Brasil era o queridinho quando a Bolsa brasileira dava 25% por ano. Agora quem são os queridinhos? México, Peru, Colômbia, pois a Bolsa deles está dando 20% por ano, e a brasileira menos 4%. 

Esse investimento na Bolsa, a não ser quando se trata de um lançamento de capital, é simplesmente transferência de ativos, não é investimento. O investimento físico, na verdade, está crescendo no Brasil. O que houve foi que o setor industrial murchou. No ano passado, a agricultura também não foi muito bem. A demanda por bens industriais cresceu, mas a oferta não cresceu, basicamente porque se retiraram do setor industrial as condições isonômicas – taxa de juros razoável, tributação razoável e uma taxa de câmbio competitiva.

O câmbio está num patamar correto?

É muito difícil dizer. Melhorou muito. A taxa de câmbio talvez seja o problema mais vexatório para o economista – ninguém sabe exatamente qual é a taxa de câmbio de equilíbrio. O que se sabe é que a melhor política industrial possível é a política horizontal, e essa é feita com uma taxa de câmbio relativamente desvalorizada e relativamente estável.

O Brasil deixou o câmbio se valorizar demais, o que prejudicou muito as exportações brasileiras. Veja o caso da Argentina, um fracasso total. Quer dizer, as exportações diminuíram no mundo inteiro, e o Brasil também sofreu, e isso tem efeito no nível de atividade.

Mas agora houve uma melhoria do setor exportador por causa de duas ações do governo: primeiro, a desoneração da folha de pagamento – quando você desonera a folha de pagamento você baixa o custo da mão de obra; e houve uma melhoria do dólar. Então, você tem um estímulo para retomar as exportações e para poder competir com as importações.

Eu acredito que vamos ter neste ano um crescimento entre 3% e 4%, e acho que já está rodando em 3%, 3,5%. E vamos ter uma inflação de 5,6%, 5,7%. Não temos nenhum problema maior com contas correntes, vamos continuar sendo financiados, temos reservas muito importantes.

O senhor é sempre mencionado como conselheiro informal da presidente Dilma, além de tê-lo sido do presidente Lula…

Você acredita na imprensa?

O ministro da Fazenda não lhe telefona de vez em quando?

De vez em quando, por acidente, você pode conversar com o ministro, mas não existe nada disso. Nem sei como nasceu isso.

Seus artigos, às vezes, parecem influenciar o governo.

Seria muita pretensão minha imaginar que meus artigos tenham esse efeito. Eu apoiei o Lula, apoio o governo da Dilma porque eu acho que estamos num processo de construção de uma sociedade mais justa. O objetivo não é só o crescimento, o objetivo é o crescimento com inclusão, o objetivo é o crescimento em que as oportunidades surjam para todos. 

Não importa se você foi fabricado na suíte presidencial do Waldorf Astoria ou num sábado à noite, meio bêbado, em frente ao Museu do Ipiranga debaixo de um poste. Depois de fabricado, não importa sua cor, seu credo, você tem direitos. Esse conceito é que está imbuído tanto na postura do Lula quanto na postura da Dilma.

No tempo do “Milagre Econômico”, quando o senhor foi ministro da Fazenda, o PIB brasileiro cresceu muito, mas as desigualdades sociais se aprofundaram, ao contrário de hoje. Ou não?

Isso é uma tolice. Naquela época, se crescia 11% ao ano com inflação declinante. Imagine-se uma coluna daqueles que tiveram o benefício de ter curso superior. E outra coluna composta pelo que chamamos de exército de reserva, e que, à medida que há demanda, vai entrando na primeira coluna. Quando ocorre desenvolvimento, a demanda de pessoal qualificado cresce muito mais depressa, mas havia o exército de reserva desempregado. Nós criamos 15 milhões de empregos naquela época. 

A distribuição de renda não mede bem-estar, a distribuição de renda mede a distância entre as pessoas. O bem-estar vem se você diminuir a distância entre as pessoas. Por que o bem-estar está aumentando agora? Por dois motivos. Primeiro, porque você tem uma preocupação enorme com os 10% mais pobres e está aumentando a oferta aos 10% mais ricos. Isso reduz a distância entre eles

O Brasil é um país construído por imigrantes. Hoje, nós deveríamos estar abrindo a imigração, deveríamos trazer pedreiros, engenheiros, químicos, físicos, matemáticos, médicos que estão desempregados na Europa para acomodar esse mercado de trabalho que está muito tenso, muito estreito. 

A grande revolução brasileira foi a revolução das mulheres. Quando eu era ministro, na Idade Média (risos), cada mulher deixava seis filhos. Hoje, elas não deixam dois. Elas se educaram mais que os homens, elas aprenderam, cresceram. A moça que era empregada doméstica tornou-se manicure. A manicure foi para o call-center. A moça do call-center foi para uma loja de departamentos. A mulher brasileira usava sabão de coco, hoje usa Dove. Esse é um processo civilizatório que aconteceu e que não pode ser influenciado apenas com taxa de juros. 

Essa fixação no aspecto monetário, na taxa de juros, por exemplo, não é mais da parte da imprensa?

É dos economistas. Na verdade, os economistas contribuíram fortemente para a crise de 2008. Eles vieram atrás dos fatos. O setor financeiro inventou fórmulas que supostamente reduziriam o risco. Isso, supostamente, permitiu uma alavancagem muito maior. Como eles conseguiram isso? Destruindo as condições de controle do sistema financeiro que haviam sido construídas nos anos 30, à época do Roosevelt (Franklin Delano Roosevelt, presidente dos Estados Unidos). Inventaram a teoria de que os mercados eram perfeitos.

Com Milton Friedman, da Escola de Chicago, à frente, correto?

O Friedman era um pedaço disso, mas teve influência no mundo todo – na Tatcher (Margareth Tatcher, primeira-ministra britânica), por exemplo. Mas aquilo – a pregação do mercado infalível – veio para justificar a patifaria do incesto entre o sistema financeiro e o poder incumbente. Começou tudo lá com o Reagan (Ronald Regan, presidente dos Estados Unidos) e veio destruindo aqueles controles todos até chegar à crise de 2008. A crise de 2008 reproduz a crise de 1929. Não teve a mesma profundidade porque agiu-se diferente.

Se você ler o Relatório Pécora, sobre a crise de 1929, verá que o sistema financeiro de então cometeu os mesmos crimes e abusos de agora.

A crise de 2008 fez renascer o keynesianismo?

Keynes (John Maynard Keynes, economista britânico) nunca morreu. O problema é que uma parte dos economistas foi cooptada para dar suporte supostamente científico a uma patifaria produzida por um incesto entre o setor financeiro e o poder incumbente.

E o Brasil nessa história?

O Brasil é um país fantástico. O Brasil está num processo de revolução e as pessoas ainda não entenderam isso. O Brasil é o único país do mundo em que há 12 ou 15 índices de preço, publicados toda semana. É o único país do mundo em que o Banco Central publica previsões do sistema financeiro e as chancela com seu carimbo toda semana. Nós gostamos do samba – tanto é verdade que o sistema mais sofisticado utilizado pelo Banco Central se chama Samba (sigla para o termo inglês Stochastic Analytical Model with a Bayesian Approach), o que demonstra que o Banco Central é muito mais sutil do que parece (risos).

Já que o senhor mencionou o Banco Central, como vem sendo a performance da sua diretoria, particularmente do presidente Alexandre Tombini?

Eu acho o Tombini um sujeito extremamente competente. Ninguém manda no Tombini. Ele sabe que é autônomo – o Copom (Conselho de Política Monetária, órgão do Banco Central) sabe que pode decidir o que quiser, que pode subir os juros amanhã se for necessário. É ilusão imaginar que o Guido (Guido Mantega, ministro da Fazenda) e a presidente estão contra isso.

E o Banco Central hoje tem um departamento de economia que seguramente é melhor que qualquer departamento de economia das melhores faculdades, das melhores academias do Brasil. 

O senhor ainda é muito cobrado ou atacado por ter participado do regime militar? Como o senhor lida com isso?

Os militares não se ligavam com a execução da política econômica. O governo se reunia toda manhã e discutia o que estava sendo feito, mas não havia interferência militar na política econômica.

Na sua longa jornada como professor, economista, ministro e político, como viu a atuação da OAB nos momentos históricos do Brasil?

A OAB tem uma importância muito grande no Brasil. Aliás, eu brincava com o Cabral (Bernardo Cabral, ex-presidente do Conselho Federal da OAB e ex-ministro da Justiça, governo Fernando Collor de Melo) que, quando verteram para o alemão a Constituição de 88, acharam que a OAB era o Supremo Tribunal Federal, de tantas vezes que ela está citada na Carta. Trata-se de uma instituição muito útil.

Quantos livros tem sua biblioteca?

290 mil.

O que o senhor lê atualmente?

Não leio mais nada.

Qual seu escritor brasileiro preferido?

Machado (Machado de Assis).

PAULO HENRIQUE ARANTES ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *