UM DIÁRIO DE GENOCÍDIO COM ATEF ABU SAIF

“Eu nasci durante a guerra, e posso morrer durante a guerra, na verdade,” conta Atef Abu Saif a Hedges nesta entrevista

Aqueles que tentam transmitir a verdade a partir de zonas de guerra — seja factual ou artística — diante da morte, violência e doença, derrotam as mentiras contadas pelos assassinos, determinados a fazer com que aqueles que estamos longe da carnificina compreendamos. É por isso que escritores, fotógrafos e jornalistas são alvos de agressores em guerras, incluindo os israelenses, para serem eliminados.

Atef Abu Saif, o romancista palestino que atua como Ministro da Cultura na Autoridade Palestina desde 2019, faz a cronica da sua experiência sobrevivendo ao mais recente ataque em Gaza que persiste desde o último outubro em seu livro, “Não Olhe Para a Esquerda: Um Diário de Genocídio.” [https://www.google.com/books/edition/_/82_8EAAAQBAJ?hl=en&gbpv=0]

Nascido em Gaza, Saif conhece a guerra toda a sua vida.

“Eu nasci durante a guerra, e posso morrer durante a guerra, na verdade,” ele conta a Hedges nesta entrevista. “Esta é a nossa vida como palestinos.”

Ao detalhar o trauma de sua experiência por meio de imagens horrivelmente vívidas e trágicas, histórias de entes queridos mortos e familiares permanentemente feridos, Saif ilustra como a vida em Gaza, como ele diz, “é um intervalo para sobrevivência. O discurso normal é ser morto e ter a sua casa destruída, como a minha casa nesta guerra. Então o que vivemos é como um intervalo. É um descanso. Então não é a coisa normal para se viver.”

Essa descrição vaga de existir diante do genocídio é refletida nas palavras do Ministro da Cultura para sua sobrinha Wissam quando ela perdeu as pernas e uma das mãos após sua família ter sido bombardeada pelos israelenses:

“Estamos todos em um sonho… todos os nossos sonhos são aterrorizantes.”

Neste primeiro episódio da nova e independente versão do The Chris Hedges Report, Saif e Hedges exploram essas experiências e o significado por trás delas em uma conversa substancial e poderosa. Através dela, a textura do genocídio e os danos que inflige às suas vítimas são capturados, à medida que a eloquência e vulnerabilidade de Saif revelam o peso da tragédia de uma maneira que apenas fatos e dados simplesmente não conseguiriam.

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Tradução da transcrição da entrevista:

Chris Hedges: Existem dezenas de escritores, jornalistas e fotógrafos palestinos, muitos dos quais foram mortos nos ataques israelenses a Gaza, que estão determinados a nos fazer ver e sentir o horror deste genocídio. Eles, no final, vencerão as mentiras contadas pelos assassinos. Escrever e fotografar em tempos de guerra são atos de resistência, atos de fé. Eles afirmam a crença de que um dia – um dia que os escritores, jornalistas e fotógrafos podem nunca ver – as suas palavras e imagens evocarão empatia, compreensão, indignação e fornecerão sabedoria. Eles não fazem apenas a crônica dos fatos, embora os fatos sejam importantes, mas a textura, a sacralidade e a dor das vidas e comunidades perdidas. Eles mostram ao mundo como é a guerra, como aqueles que estão presos na sua mandíbula de morte suportam, como há aqueles que se sacrificam pelos outros e aqueles que não o fazem, como é o medo e a fome, como é a morte. Eles transmitem os gritos das crianças, os lamentos de tristeza das mães, a luta diária diante da violência selvagem industrializada, o triunfo da sua humanidade através da sujeira, doença, humilhação e medo. É por isso que escritores, fotógrafos e jornalistas são alvos de agressores em guerras — incluindo os israelenses — para serem eliminados. Eles permanecem como testemunhas do mal, um mal que os agressores querem que seja enterrado e esquecido. O romancista palestino Atef Abu Saif, junto com seu filho de 15 anos, Yasser, que vivem na Cisjordânia ocupada, estavam visitando a família em Gaza — onde Atef nasceu — quando Israel começou sua campanha de terra arrasada. Atef não é estranho à violência dos ocupantes israelenses. Ele fez o que os escritores fazem, incluindo o professor e poeta Refaat Alareer, que foi morto, juntamente com o irmão, a irmã e os quatro filhos de Refaat, em um ataque aéreo no prédio de apartamentos da sua irmã em Gaza no dia 7 de dezembro. Atef descreveu, durante 85 dias, o horror ao seu redor, produzindo uma obra assombrosa e poderosa, “Não Olhe Para a Esquerda: Um Diário de Genocídio.” Juntando-se a mim de sua casa em Ramallah na Palestina ocupada para falar sobre o genocídio em Gaza e seu livro. Eis Atef Abu Saif.

Atef Abu Saif: Obrigado, Chris, por esta introdução poderosa que você acabou de apresentar sobre a situação na Palestina e o papel dos autores, jornalistas, artistas e fotógrafos que foram vítimas do ataque israelense que está em curso. Vamos lembrar que há 67 anos, esta guerra contra o povo palestino nunca parou. A minha avó e o meu avô foram expulsos da sua cidade de Jaffa e enviados para as areias de Gaza para viver em um campo de refugiados, e depois morreram lá, infelizmente. Então, esta guerra nunca parou, e a guerra contra autores palestinos, intelectuais, artistas, pintores, e eu diria, contra a cultura palestina nunca parou. E podemos lembrar, podemos mencionar dezenas de autores palestinos, começando com Ghassan Kanafani, que foi assassinado em 1967, Majed Sharar, claro, etc. É uma longa lista. Mas, muito obrigado por nos lembrar deste fato de que os palestinos que, claro, como jornalistas internacionais que tentam reportar a verdade da Palestina, também foram sempre alvos, como a estadunidense [Rachel] Corrie, se você se lembra dela. Esta senhora foi morta em Rafah há 15 anos, etc. Então, quem quer transmitir ou falar sobre o que realmente está acontecendo nos territórios ocupados está sujeito à violência e à [inaudível], e provavelmente será morto.

Para mim, como você disse, eu nasci em um campo de refugiados, no campo de refugiados de Jebalia em 1973 e acho que quando eu tinha dois meses de idade, a guerra de 1973 começou. Então, eu diria, como a maioria dos palestinos, eu nasci durante a guerra e posso morrer durante a guerra, na verdade. E é assim que o meu romance selecionado para o Prêmio Booker Árabe, “Uma Vida Suspensa”, começa. Naim, que é o personagem principal do romance, nasce durante a guerra e morre durante a guerra, e esta é, esta é a nossa vida como palestinos. O que vivemos é um intervalo para sobrevivência. Não sobrevivemos. O discurso normal é ser morto e ter sua casa destruída, como a minha casa nesta guerra. Então, o que vivemos é como um intervalo. É um descanso. Então não é a coisa normal para se viver. Então não é normal viver. Então eu nasci durante a guerra, depois, claro, Chris, eu me lembro da primeira vez que fui preso. Na verdade, eu tinha, eu diria, nove anos. Eu estava na escola primária quando o exército israelense, isso foi em 1982 eu acho, sim, era a guerra de Beirute na época, e eles atacaram a nossa escola. Estávamos na escola primária e, claro, eu tinha nove anos. Eu me lembro que minha mãe estava dizendo ao capitão quando ela foi ao porão da força de ocupação israelense. Ela disse que ele não entende de política, você sabe, porque ela queria que eu… enfim, passei um dia lá, depois nos liberaram. Éramos cerca de 10 alunos, 10 alunos na época. Então, claro, quando a Primeira Intifada veio, eu era como a maioria dos [inaudível], os jovens e mulheres da minha época, estávamos jogando pedras nos soldados, e eu fui alvejado três vezes. Um deles na verdade preparou uma cova para mim e eu deveria ter sido enterrado na cova.

E então, de repente, eu me lembro de uma cirurgiã britânica. Ela estava no, onde chamamos, você sabe, o hospital onde ocorreu o massacre israelense de 500 pessoas. Chamamos de hospital britânico, o Hospital Batista em Gaza. Então ela disse “ele está vivo” e eu fui operado por 12 horas, etc. Então eu sobrevivi, você sabe? Alguns diriam que eu sou o filho da morte, você sabe, apenas leve-o por isso. Então eu sei, como é sentir que o que você vive é algo que você não tem garantido. Você tirou da boca da morte, você sabe? E, obviamente, eu me lembro que quando eu estava tentando proteger meu filho Yasser que estava comigo durante minha visita a Gaza quando a guerra estourou. Então, cada vez eu tenho que pensar que ele não deve ser morto, porque eu seria responsável por isso, porque eu falhei. E claro, você se sente impotente. E muitas vezes eu apenas me sentava assim na tenda. E eu pensava, sabe, se um foguete viesse de um helicóptero israelense ou drone ou o que for, e o matasse, não seria minha culpa. Eu estava tentando me convencer de que nós humanos, nós não podemos, não poderíamos controlar nosso destino. E, infelizmente, nem mesmo essa coisa controla o nosso destino; no nosso caso, é o exército israelense que controla o destino dos palestinos em Gaza porque é este lado que [inaudível] eles, este lado que os destrói.

E claro, a matança e a destruição nunca param em Gaza. E eu posso contar centenas de histórias que testemunhei durante meus 50 anos de vida, você sabe? Meu avô, do lado da minha mãe, foi morto na guerra de 1967, e eu não te contei isso, mesmo quando nos encontramos, mas ele foi ferido na Nakba, você pode acreditar? Ele estava em Jaffa na época. Ele tinha, eu acho, 16 anos, e ele foi ferido quando, na época, chamavam as gangues israelenses antes da criação de Israel, elas atacaram nosso bairro em Jaffa, e ele foi ferido. E, na verdade, estava no jornal, eu tenho um recorte do jornal de Jaffa. E ele foi ferido na perna, isso foi em 1948, foi abril, início de abril de 1948. Então ele foi morto em 1967, quando o exército israelense ocupou Gaza após a Guerra dos Seis Dias. Muitas histórias para serem contadas sobre isso e sempre, deve-se lembrar que a vida é preciosa e você deve vivê-la, e você deve lutar por ela. E mesmo em momentos, você sabe, eu me lembro quando estava na prisão israelense, eu estava na Primeira Intifada por cerca de cinco meses ou quatro meses.

Chris Hedges: Quantos anos você tinha, Atef?

Atef Abu Saif: Naquela época, eu tinha 18 anos, eu diria. Estava terminando o ensino médio e queria entrar na universidade. De qualquer forma, fui enviado para a prisão israelense no Negev, que chamamos de Ktzi’ot, em hebraico, e chamamos de Ansar 3. E sim, sempre é sobre narrativa também, sobre a luta em termos e terminologias narrativas. Naquela época, eu estava em Israel e meu irmão, Naim, estava na prisão central de Gaza. E eu me lembro que minha mãe, naquela época, tinha 42 anos e estava nos visitando naquele dia. Às nove horas da manhã, ela veio me visitar. Eu não havia sido transferido para a prisão do Negev, ainda estava na prisão de Gaza, que fica perto da praia. Estava chovendo. Era janeiro. Ela tinha 42 anos e estava doente na época. Enfim, ela faleceu depois e teve que visitar meu irmão à tarde na outra prisão. E é uma história de, você sabe, a vida é uma história de dor, mas que outras opções ela tinha? Eu sempre me lembro disso, seus dois filhos estão na prisão e ela não tem outra escolha, a não ser visitá-los e beijá-los, mesmo de longe, para vê-los e dar-lhes força. E, na verdade, ela era mais forte que nós quando nos dizia que [inaudível] seria liberado.

E eu me lembro da declaração dela, é incrível, ela disse: “Ouça, uma prisão nunca é construída sobre ninguém.” Significa, você sabe, não é como um túmulo, quando está cheio, você a deixará em algum momento. E infelizmente, quando meu irmão saiu, ela já havia falecido e não pôde vê-lo. E uma das histórias sobre paz e guerra, se você quiser falar sobre isso, eu me lembro dela se manifestando em apoio aos Acordos de Oslo. Isso foi em 1993, quando eles foram assinados. Era novembro, antes de Arafat chegar a Gaza, e ela foi se manifestar felizmente sobre os Acordos de Oslo, e eu estava na universidade na época e disse a ela: “Uau, você se tornou uma ativista política.” Ela respondeu: “Não, eu apoio Oslo porque isso vai liberar o meu filho.” E infelizmente, ela morreu dois anos depois sem que seu filho fosse liberado. E isso pode contar toda a história do processo de paz, como foi decepcionante para muitos palestinos. Portanto, nossa vida é uma busca pelo seu tempo ou pela sua sobrevivência. Na verdade, o título do meu livro em árabe é “Tempo Para Sobrevivência”, sabe, buscando esse tempo durante a guerra catastrófica ou genocídio em que você vive. E é a mesma história, infelizmente, e é triste dizer, eu vou contar ao meu neto se eu tiver um, a mesma história que minha avó me contou sobre ter sido forçada a deixar Jaffa, e como ela deixou sua villa, que ainda existe até agora em Jaffa e é habitada por poloneses judeus, da Polônia. E eu a vi algumas vezes, claro, e até usei essa estrutura que o engenheiro fez e coloquei na capa de um dos meus romances. E, enfim, ela teve que deixar sua villa e caminhar toda a jornada para o sul até Gaza na areia, e viver em uma tenda, onde costumávamos viver em uma villa na praia, etc. Ela era rica e morreu muito pobre.

Então, eu tenho que contar a mesma história que ela me contou ao meu neto no futuro, mas, novamente, que outras opções você tem? Você tem que viver essa vida, lutar para viver e fazer tudo o que puder para sobreviver, porque a vida vale a pena, sabe? Não é uma aventura, ou uma jornada, ou um ato, claro, como diria Shakespeare, não fazemos a nossa parte e deixamos o palco. É simplesmente para o que somos feitos. Eu quero falar, antes de falarmos sobre 7 de outubro, este não foi o primeiro ataque israelense a Gaza que você suportou e escreveu, você tem um livro anterior. Mas quero que você fale um pouco sobre esse ataque. Acho que foi em 2018, se estou correto, e compare com o que está acontecendo agora. Mas vamos falar sobre aquele primeiro livro que você fez, onde, dia após dia, você faz a crônica do bombardeio implacável e os assassinatos que Israel realizou. Sim, como eu te disse, vivi todas as guerras de Gaza, mas até os ataques anteriores eu escrevia sobre eles, mas nunca os publiquei, e ainda os tenho. Espero que eles ainda existam em algum lugar em Gaza, sabe, mas a guerra de 2014, no verão, há 10 anos, na verdade começou nesses dias, foi muito massiva e muito grande e muito agressiva para nós. Vivenciamos muitos ataques israelenses. Mas naquela época, você sabe, tudo aconteceu de repente e os ataques ocorreram em todos os lugares. E o exército israelense invadiu Gaza pela primeira vez desde os Acordos de Oslo, sabe, invadiram a cidade pelo sul, pelo vale de Gaza, como chamamos. Eu estava escrevendo diariamente sobre o que acontecia, porque senti que ia morrer naquele ponto, como agora, mas naquela época era mais… Agora podemos falar sobre a comparação das duas guerras, mas às vezes é ridículo comparar guerras, porque, você sabe, eles têm o objetivo de matá-lo.

Então, às vezes a morte está mais próxima de você do que em outras ocasiões, mas está sempre buscando te alcançar. Então, a guerra de 2014, para nós, foi a primeira guerra massiva que assistimos ou vivenciamos e sentimos que era perigosa, que íamos morrer. Lembro-me de muitas vezes porque, naquela época, eu estava mais envolvido e não morava no campo de refugiados de Jebalia, onde nasci. E, sim, naquela época, posso contar inúmeras histórias onde ajudei a resgatar algumas pessoas, sabe, da morte. Nós as retiravamos dos escombros e muitas vezes eu pegava uma cabeça sem corpo ou uma mão sem… Você sabe, é horrível. Mas em muitas ocasiões, Chris, eu não tinha certeza se estava vivo ou morto, especialmente quando você carrega os corpos, sabe? E eu me lembro de uma vez em que tive que tomar banho umas 15 ou 12 vezes, sabe? Naquela época, não tínhamos problemas com eletricidade e água como tivemos nesta guerra. Porque nesta guerra, sim, acho que não foi uma guerra, foi uma eliminação. Porque eles queriam eliminar Gaza. Então, esta é, na guerra atual, genocídio. Eles pararam a água, a eletricidade e as pessoas, elas não falam sobre isso, Chris, nem mesmo a imprensa agora, não dizem que agora, em poucos dias, serão 300 dias de guerra. As pessoas não dizem que são 300 dias sem eletricidade e água corrente em Gaza. Mas naquela época, em 2014, tínhamos um tipo de fornecimento regular de água. Seria mantido por alguns dias, mas ainda a tínhamos. Então, muitas vezes, depois de me lavar, como 12 vezes, eu me lembro da família [inaudível], era a família [inaudível], que morava perto do cemitério do campo e [inaudível] russa.

Então, eu tive pesadelos e não conseguia dormir porque via as mãos, o cabelo sem cabeça, como [inaudível] que eu carregava. Então, à noite, eu tinha que acordar, não tinha certeza se estava morto ou vivo, e eu me aproximava da eletricidade e queria tocá-la. Então, eu disse, se eu estou vivo, então, claro, eu quase fiz isso. Mas então, no último minuto, eu disse, sim, mas e se eu morri? Se eu estou vivo, então eu morri, sabe, depois de tocá-la, então, qual é o ponto? Então, e se eu morrer? Então, eu disse, não, eu não vou. Mas naquela época, não gosto de dizer isso, foi um ensaio para a guerra que viria, foi como um exercício, sabe? Então, quando a guerra atual começou, eu me lembro de que estava na casa da imprensa, de Belal Jadalla, a quem o exército israelense assassinou depois, era o chefe do clube de imprensa em Gaza, o que chamamos de casa da imprensa, e a quem dediquei o livro, na verdade, e estávamos tentando comparar o mundo atual com a guerra de 2014, porque a guerra de 2014 é tudo o que temos em nossa memória sobre uma guerra massiva. Então, claro, Belal na época estava morto, e eram meus outros amigos, estávamos dizendo: “Ouça, se essa guerra não parar no 51º dia, que é a duração da guerra anterior, então isso é diferente.”

E, claro, o que estávamos fazendo, estávamos apenas nos entregando ou tentando nos acalmar, dizendo que essa guerra não vai durar 51 dias, como quando estávamos nas tendas, minha tia-avó, grande tia-avó, tia Noor, ela perguntava: “Oh, você acha que vamos passar o Ramadã aqui?” Porque ela não queria passar o Ramadã na tenda. E, aliás, Noor, ela viveu sua infância em uma tenda e passou os últimos meses de sua vida na tenda, como minha sogra também, que nasceu em 1948 em Majdal Asqalan, em Ashkelon, e foi levada por sua mãe para Gaza, onde viveu os primeiros três anos de sua vida em uma tenda. E infelizmente, ela morreu em uma tenda e então mencionei sobre ela no meu livro, mas ela estava [inaudível] quando terminei meu livro, quando deixei Gaza. Então, minha tia-avó perguntava: “Oh, vamos passar o Ramadã aqui?” Então, depois que o Ramadã terminou, ela me dizia ao telefone: “Atef, vamos passar [inaudível]?” A cada vez, agora, as pessoas em Gaza, minha irmã Asia, estava me perguntando hoje, você acha que vamos lembrar o primeiro aniversário da guerra aqui? O que significa que 7 de outubro virá quando [inaudível] sim, desculpe por ser longo.

Chris Hedges: Não, você pode continuar o quanto quiser. Eu quero falar sobre Refaat [Alareer] antes de falarmos sobre seu livro. Ele foi claramente rastreado e assassinado pelos israelenses, junto, é claro, com sua irmã e sua família. Mas fale um pouco sobre ele antes de começarmos.

Atef Abu Saif: Sim, eu conheci Refaat através do projeto, “Não Somos Números”, cujo título foi retirado de um dos meus artigos no New York Times na época, durante a guerra de 2014. Eu estava fazendo os títulos todos os dias. E eu acho que Refaat estava relatando diariamente, como você sabe, de Gaza, ele era muito ativo em contar a verdade palestina de forma simples. Ele não estava exagerando, nem era político, como os poetas costumam ser. Ele estava escrevendo sobre o que acontecia com seus vizinhos e com sua família pessoalmente. Em um de seus artigos, mesmo quando sua mãe dizia para ele não falar com a imprensa, porque isso era perigoso e eles poderiam ser mortos. E é triste que perdemos nossa voz porque não é que o assassino queira esconder o seu crime. Ele não quer que futuros crimes sejam ouvidos. Então, o assassinato de Refaat, assim como o assassinato de Belal Jadalla, que era o chefe da casa de imprensa em Gaza e transmitia notícias de Gaza em cinco, seis idiomas, não ele, mas as pessoas que trabalhavam com ele. A mesma coisa acontece com outros poetas como [inaudível] e com os artistas, escritores, fotógrafos, etc. Então [inaudível] antes, se você se lembra, em Jenin, ela também foi assassinada. Então, a luta contra a verdade, ou o terror contra a própria verdade, faz com que ela se esconda, para que ninguém ouse tocá-la, ninguém ouse falar sobre ela. Porque a palavra é mais forte do que o poeta, acredite em mim. E muitas pessoas não se lembram dos nomes dos lutadores, mas se lembram dos nomes dos poetas, dos jornalistas, dos cineastas que falaram sobre eles, transmitiram a verdade sobre suas vidas, suas dores, suas almas, seu sofrimento.

Então Refaat era, sim, eu acho que ele acreditava no que fazia. E, como ele disse em seu poema, “se eu tiver que morrer”, sabe. Então a verdade seria como a pipa a que ele se referiu, voando no céu, com uma longa cauda branca, para que uma criança de Gaza pudesse vê-la de qualquer outro lugar na praia de Gaza. E isso é esperança, porque a verdade nunca morre, Chris, mesmo que eles matem o transmissor, a verdade nunca morre. Ela encontrará outro transmissor, outra pessoa corajosa, valente, para transmiti-la e contá-la, sabe? E nós palestinos, tenho que dizer, somos muito gratos aos nossos artistas e poetas, principalmente, que transmitiram nossa dor nos últimos 100 anos. E lembre-se, não são apenas os israelenses, até mesmo o exército britânico estava colocando poetas palestinos na prisão nas décadas de 1920 e 1930, como [inaudível] e como [inaudível] e esses grandes poetas da vida palestina nas décadas de 1920 e 1930 e [inaudível] em Nazaré, foram colocados na prisão naquela época. Então, sempre a verdade. E não são sempre os israelenses. Todos os opressores, todos os assassinos, matam a verdade antes de matar… Eu sempre, Chris, disse, ok, ninguém consegue entender por que você mata seu semelhante, seu semelhante ser humano, mas nesta guerra, mas por que você destrói castelos, por exemplo, em Gaza? O Palácio Qasr al-Basha, mesmo quando Napoleão Bonaparte entrou em Gaza, ele usou-o como seu escritório. Os turcos usavam-no como um escritório militar, os britânicos também. Então ninguém sabe por que você destrói. Não prejudica você. Não faz mal e você já o ocupou, você estava lá. Os tanques estavam lá, e nem mesmo atiraram nele de muito longe, aliás. Os tanques estavam em frente ao muro histórico do castelo. É um castelo como chamamos, Palácio Basha, chamamos assim, e é um museu, aliás, onde havia jarros fenícios e espadas das Cruzadas. E é de todas as épocas diferentes, monumentos islâmicos [inaudível]. Então ninguém entende por que você não pode ficar em frente a um palácio histórico onde não há resistência, nenhum exército, nada, e então você o destrói. Ei, mesmo que você seja insano, você se senta lá e desfruta o seu café como um vencedor, ou ele não é um vencedor. Mas vamos supor que você ganhou a guerra. Você se senta lá e desfruta da cidade ou da colina ou no meio da cidade de Gaza. E você pode ver [inaudível] à sua esquerda, etc. Ninguém consegue entender por que você destrói, os soldados entram em um dos estúdios de artistas, está no vídeo, e eles se divertem destruindo a maldita coisa. Pelo amor de Deus, você se diverte roubando-a, você a pega, a esconde. Você não se diverte apenas fazendo as cores da pintura. Você sangra e se diverte com as cores sangrentas da pintura. Então é algo, sabe, e novamente, isso não é novo. Isso sempre aconteceu conosco, há seis, sete anos, quando a pintura na casa do meu avô em Jaffa foi destruída, quando a pintura dos jornais palestinos também foi destruída. E então estamos repetindo a mesma história, estamos repetindo a mesma dor e espero que isso não aconteça no futuro. Espero que este mundo ponha fim a toda essa dor e longa jornada de deslocamento.

Chris Hedges: Quer dizer, em projetos coloniais de assentamento, eles devem destruir a cultura, identidade, história daqueles que ocupam. É assim que eles afirmam a sua própria supremacia, ou impõem a sua própria supremacia destruindo os palestinos que são indígenas à Palestina.

Atef Abu Saif: Sim. Teoricamente, você pode entender isso. Mas você não faz isso com alegria, sabe? Eles fazem isso com alegria e prazer, e por que você mata um poeta? Por que você mata Refaat Alareer? Ele é uma pessoa que sempre quis buscar viver em paz, que sempre quis escrever sobre o amor, mas não encontrou amor para escrever sobre isso. Ele não conseguiu escrever um poema sobre o brinquedo que queria dar de presente à sua filha, porque você pegou esse presente no posto de controle em Rafah quando eles estavam lá. Então ele não conseguiu escrever sobre uma vida estável e normal. Então por que você destrói um museu? E eu sei que a luta pela narrativa, não é fisicamente, você é superior, até mesmo, narrativamente, você é superior, e você quer que sua narrativa e suas histórias dominem a região. Mas até mesmo os ladrões, claro, ladrões pegam o que não é deles. Mas até mesmo os ladrões, eles pegam as coisas boas das casas que atacam. E mesmo os colonizadores na história, às vezes têm um pouco de respeito pela cultura indígena, como roubar a sua cultura, levá-la. Mas, pelo amor de Deus, [inaudível] é um dos nossos maiores poetas agora, um poeta vivo agora. E eu o vi, eu diria, no primeiro mês da guerra. E seus poemas são ensinados para nossos filhos nas escolas. Ele é um ótimo poeta, ele e sua esposa e seus filhos até agora, estão sob os escombros por mais de 150 dias. E apenas imagine a nossa perda. Ele era ótimo e era naquela época, seis, e nós comemoramos seu aniversário juntos. Na verdade, ele estava [inaudível] participando [inaudível] no mês passado de setembro. Ele tem 60 anos ainda. Então ele poderia escrever mais 100 poemas, sabe? E claro, muitos jovens… Aliás, no dia 21, um jovem poeta palestino, Pilar. Seu nome é [inaudível], eu escrevi na minha conta do Facebook, eu coloquei o dele… Ele foi morto em sua casa e ele escrevia poemas muito bons. Ele escreve em árabe. Ele costumava escrever em árabe. Ele está morto agora, mas só se você ler seu texto, como ele estava com medo disso, como ele estava tentando acalmar a sua irmã. Ele tinha 26 anos. E então, a sua casa no centro, eu acho que é no campo de refugiados de Nuseirat e ele foi morto lá. Então, novamente, não é… Esta guerra está mirando em humanos, o lugar, o [inaudível] do lugar, a história do lugar, e mira nas árvores. Se você planta goiaba ou manga ou qualquer outra árvore no seu jardim, leva 30 anos para vê-la como uma árvore totalmente desenvolvida, sabe? E de repente alguém vem e a arranca. Eu lembro que minha irmã me disse outro dia ao telefone quando ela percebeu que a sua casa foi destruída em [inaudível]. Ela tem agora 46 anos. Ela disse: “Eu não tenho tempo na minha vida para construir uma nova casa.” Ela começou com seu marido a construir a casa quando se casaram, quando ela estava na casa dos 20 anos, e passaram 25 anos construindo a casa. Ela disse: Eu não tenho tempo agora para construir uma nova casa. Então não há tempo para plantar sua nova árvore no jardim, nem mesmo. Então é como se esta guerra estivesse mirando em tudo em Gaza. Está mirando em Gaza, e não está mirando nos partidos políticos, não está mirando nas milícias, não está mirando em um partido específico ou pessoa ou personagem ou o que for, e não tem outro objetivo além de simplesmente eliminar Gaza e tornar a vida em Gaza impossível. Não para hoje ou para amanhã, para o próximo dia ou no dia seguinte, para anos e anos à frente. Então as pessoas terão que deixar Gaza voluntariamente depois disso.

Chris Hedges: Quero ler um pouco do seu livro. É um trabalho incrível e captura a textura, o horror do genocídio. Quando começa, você perde um amigo, um jovem poeta, músico. Você se pergunta sobre os soldados israelenses que observam você e a sua família, com suas “lentes infravermelhas e fotografia via satélite”. Você pergunta: podem contar os pães na minha cesta, o número de bolinhos de falafel no meu prato? Você observa uma multidão de famílias atordoadas e confusas, suas casas em escombros, carregando colchões, sacos de roupas, comida e bebida. O supermercado, o bureau de câmbio, a loja de falafel, as barracas de frutas, o salão de perfumes, a loja de doces, a loja de brinquedos, tudo queimado.” Você escreve: “Havia sangue estava em toda parte, junto com pedaços de brinquedos de crianças, latas do supermercado, frutas esmagadas, bicicletas quebradas, frascos de perfume estilhaçados; o lugar parecia um desenho a carvão de uma cidade queimada por um dragão.” Isso, claro, foi um nível da destruição, apesar dos muitos ataques a Gaza, que é simplesmente apocalíptico. Mas fale sobre aqueles primeiros dias. Você percebeu no início que isso era diferente?

Atef Abu Saif: Sim, na verdade, é engraçado, a guerra começou enquanto eu estava nadando na praia. Lembro-me de que não tinha ido nadar o verão inteiro. Então, eu estava visitando Gaza, que era uma visita regular para mim. Mas foi meu pai que faleceu, aliás, Chris, durante a guerra, em meados de abril, infelizmente, devido à falta de comida e de medicamentos. Enfim, eu estava visitando meu pai e minhas irmãs. Então, nós deveríamos celebrar o patrimônio palestino lá, que é 7 de outubro. E assim eu estava lá pela manhã. Eu tinha que ir à praia. Era a primeira vez na praia, então eu fui nadar, e então a guerra começou. E para nós, lembro que estava ligando para meu cunhado, saindo da água. Temos que ir embora. É guerra, eu disse a ele. Era 6h30 da manhã. Ele disse: “Não, isso é outra escalada.” Lembro-me de que o deixei dentro da água. Ele disse: “Vá, vá, vá, me deixe.” É porque ele mora perto, em [inaudível], perto da praia. Então, quando eu saí, estava dirigindo com meu irmão Muhammad. Acho que o policial estava perguntando o que estava acontecendo. Ninguém sabia o que estava acontecendo, sabe? Mas, claro, com a chegada da noite, fica muito escuro. Percebemos que esta é uma guerra diferente, porque até mesmo na guerra de 2014, não estava ocorrendo em todos os lugares ao mesmo tempo. Gaza foi alvo hoje, lembro-me, em 2014. Mesmo na guerra de 2008, Jebalia foi atacada, depois a Cidade de Gaza, depois Rafah, depois Khan Younis, mas esta guerra era em todos os lugares, em cada… Lembro-me de 7 e 8 de outubro, os primeiros dois dias da guerra, bombardeios por toda parte, em todos os lugares. Você não conseguia se mover.

E eu tive que ficar na casa [inaudível] na época porque estava na água [inaudível] durante o dia. Então, eu não consegui sair, então tive que dormir na casa [inaudível] entre os discos dos jornalistas. Desde o começo, percebeu-se que era uma guerra muito difícil, mas nas guerras anteriores, Chris, as pessoas eram deslocadas de seus lugares, mas as pessoas que viviam nas periferias, perto da fronteira, na fronteira norte ou leste. E costumavam vir para ficar em escolas [inaudíveis] no campo de refugiados de Jebalia, principalmente. E nunca sonhamos que o exército entraria em Jebalia, a propósito. É como se, mesmo durante a guerra, mesmo após um mês da guerra, dissessemos, não, não, eles não conseguirão entrar, não estavam lá porque isso significa matar, porque não conseguimos acreditar que o assassino pode ser tão cruel. Não conseguimos acreditar que qualquer assassino pode ser um ser humano a esse ponto, matar milhares de pessoas, chegar a um lugar superlotado e povoado. Então, não conseguimos acreditar que nesta guerra, íamos ser deslocados. Se você me perguntasse, mesmo após duas, três semanas da guerra, eu diria não, venha, é apenas mais uma guerra para nós. Mas isso tende a não ser outra guerra. Por isso, os palestinos costumam comparar esta guerra com a Guerra da Nakba, onde as pessoas foram forçadas a deixar suas casas. E até mesmo os mesmos slogans, as mesmas frases que usamos, eu costumava dizer, eram muito semelhantes ao que minha avó dizia na Nakba, mas meu avô dizia: “Oh, são apenas alguns dias e depois voltamos.” Estávamos lá. E isso é o que eu estava dizendo ao meu filho, sem pensar, era natural que voltaríamos em alguns dias. E isso é o que minha avó e todas as mulheres e homens mais velhos estavam dizendo a seus filhos em 1948.

Então, a única situação comparável para as pessoas era a própria Nakba. No entanto, em um dos meus artigos mais tarde, eu disse: Não, não devemos comparar Nakba com nada, porque na Nakba, um ataque político resultou posteriormente. Mas a eliminação do estado ou entidade palestina, e eles estabeleceram outra entidade. Então eu disse, não podemos comparar Nakba com qualquer outra coisa, mas isso é a única coisa que vem à mente das pessoas, Nakba. Mesmo a guerra de 1960 não vem à mente delas. No entanto, na guerra de 1960, se você se lembra, metade da população da Cisjordânia foi deslocada para a Jordânia, e muitos dos gazenses, incluindo meu avô Ibrahim, com meus tios, foram forçados a deixar Jebalia para a Jordânia, e apenas meu pai e minha avó permaneceram em Jebalia. E eu acho, como eu sempre dizia, eu tive sorte por isso. Eu não vivi na diáspora ou como refugiado fora da Palestina. Então o único evento comparável na mente dos palestinos a isso é a própria Nakba. E Nakba, para os palestinos, é… você sabe, traduzindo para o inglês, como catástrofe, que eu diria, é uma palavra suave para isso, para Nakba. A Nakba é algo, uma catástrofe que vem muito pesada de cima. Então é algo que você não pode suportar. E isso não significa nada para você. Então é uma palavra muito dura e severa, você sabe, e por isso, os palestinos não chamaram a guerra de 1967 de outra Nakba. Então eles apenas mudaram um som, Naksa. Eles mudaram o som de “P” para “S”, que significa como ser derrotado, enfim. Então, desde o início, eu te disse, nas primeiras duas, três semanas, ninguém esperava que fôssemos ser deslocados. Eu não, eu chorei quando atravessei o posto de controle entre sul e norte, e eu estava olhando para o sul, milhares de pessoas, mulheres, homens, crianças, mulheres grávidas atravessando.

E estava com meu filho carregando a cadeira de rodas da minha sogra, desculpe, minha mãe, que faleceu mais tarde. E estávamos carregando-a, enquanto ela segurava a cadeira de rodas, sentada firmemente, tentando não cair. Estávamos cruzando a fronteira. Então, todas as imagens que eu ouvi no campo, eu cresci em um campo de refugiados nos anos 70 e 80, e assim eu ouço centenas de histórias de pessoas contando sobre seu êxodo de suas aldeias e cidades ao sul de Jaffa e todas as aldeias ao sul de Jaffa. Então todas essas histórias eram apresentadas como se você estivesse assistindo a filmes de cinema, sabe? Mas você está assistindo a 100 filmes de cinema ao mesmo tempo, mas todos refletem a mesma cena. Todos mostram a mesma cena com diferentes rostos de personagens, e agora, no momento, eu percebi que sou um desses personagens. Eu me tornei outra cena e outro filme nesta grande tela.

Chris Hedges: E enquanto você anda, eu me lembro do livro, você está com seu filho jovem, que tem 15 anos, e há corpos por toda parte, e você diz a ele para não olhar.]

Atef Abu Saif: Você verá que se você fizer qualquer movimento, se você fizer qualquer gesto, qualquer sinal, você será morto. Lembro-me de que eu estava discutindo com meu editor, quase nomeamos o livro de “Um Café em Cima do Tanque”, porque um soldado estava sentado em cima do tanque. Eu não sei como você pode degustar um café enquanto pessoas desesperadas, todos homens e mulheres, lamentando os corpos das pessoas, enquanto outros soldados [inaudível] novamente, na verdade. Tendo 16 anos, assim, e prontos para atirar a qualquer minuto, sabe? Então, quase nomeamos o livro assim, mas depois dissemos, não vamos nomear… Lembro-me de que meu primeiro livro foi “O Drone Está Comigo”. Então dissemos que não vamos falar sobre o tanque e o drone. Então, tivemos que discutir outro título, mas por isso, você caminha sobre esses corpos, e você não quer ser outro morto também. Então eu estava dizendo ao meu filho para não [inaudível], porque o soldado de agora, então ele chamará e dirá: “Ei, você, jovem com a camiseta branca e óculos, cabelo longo, calças jeans, venha aqui.” Então, claro, você pode se encontrar como no mesmo quadro, se você tirar uma foto, fizer um filme de cinema, você encontrará como cinco, seis pessoas assim. Mas se for a pessoa errada, então à esquerda do soldado, ele atirará nela. Você pode acreditar? Então, a pessoa principal aqui, ele deve perceber que ele é o procurado. Ele é o escolhido para ser preso. Então a melhor maneira é não se mover, não olhar, apenas continuar olhando em frente até passar. Apenas imagine esse sentimento quando você percebe que, agora nos tempos olímpicos, eles estão jogando em Paris agora, então se você cruzar a linha da corrida, esse sentimento, sabe, de que você conseguiu, que sobreviveu, você cruzou a linha. Mas então eu lembro, tenho algumas fotos disso da minha sogra, quando estamos sentados depois de cruzar o posto de controle. Não percebemos que nos tornamos deslocados. Um refugiado como eu, quando nasci no campo de refugiados de Jebalia, se tornou um refugiado novamente. E minha sogra também se tornou refugiada. Então, no momento em que cruzamos o ponto, no momento em que percebemos que estaremos além do sol, além da luz, sabe? E estamos na escuridão. E, claro, é engraçado, desde o primeiro dia começamos a nos arrepender de ter feito isso, que não deveríamos ter cruzado a linha. Na verdade, há uma ponte lá. Chamamos de ponte Salah al-Din, é nomeada após a rua mais longa de Gaza, então estávamos arrependidos de ter cruzado [inaudível]. Existe uma maneira de voltar?

Chris Hedges: Eu me lembro do seu livro em que você escreve sobre sua casa em Jebalia, e como você pode mudar um pouco a rua aqui e ali, e você escreve sobre por que você sempre voltou para Gaza. Você tem um doutorado em uma universidade europeia, poderia ter facilmente passado o resto da sua vida morando fora da Palestina, mas não o fez. E você escreve sobre essa casa, que, claro, agora foi destruída.

Atef Abu Saif: Sim, eu sempre tive a possibilidade de viver no exterior, mas eu nunca quis. Não é que eu não goste de Nova York; claro, eu diria que Nova York é uma das minhas cidades favoritas. Estive lá logo após o 11 de setembro, [inaudível]. E eu adoro Roma, por exemplo. Estive estudando na Itália. E eu amo muitos lugares. Eu amo a Palestina também. E eu dizia para mim mesmo, se todos como eu forem embora de Gaza, quem ficará lá? Então, contra essa fuga de cérebros, e eu não gosto de ser esse autor, intelectual, como muitos dos árabes e autores do terceiro mundo, Chris, que ficam em Londres, vivendo sua vida preciosa, ou em Paris ou em Los Angeles, aproveitando a vida nos EUA. Então, eles falam sobre as pessoas pobres em casa. Se eu tiver que, eu posso ir para a Itália, como eu te disse, para ensinar. Não me importo, mas temporariamente. Eu nunca quis ficar no exterior a vida toda. Por quê? Chris, acredite em mim, Gaza é muito bonita. É uma cidade costeira muito bonita, e quando nós, pessoas de Gaza, lembramos até do gosto do café em Gaza. Diríamos: Não, você sabe, todo café que temos, eu lembro desse cara, tivemos essa conversa. Não, pelo amor de Deus, nenhuma marca de café no Cairo é semelhante à pior marca de café em Gaza, por exemplo. E isso é verdade, eu estou convencido disso. Claro, você pode estar convencido do contrário. Todo mundo gosta dos pratos preparados pela sua mãe. Todo mundo acredita que os pratos da sua mãe são os melhores. Mas ela pode não ser, na verdade. Mas por isso eu gosto de Gaza, é onde eu pertenço, é onde tenho responsabilidades com as pessoas. Porque lá eu aprendi a contar histórias, com os meus vizinhos, com a minha avó, Ásia. E sempre senti a obrigação de recontar essas histórias, re-narrar a sua dor e o seu sofrimento, transmitir a sua tristeza e os seus amores, aliás, e o seu senso de humor também. Então, quando minha casa foi destruída, eu chorei como, você sabe, isso é normal. Somos humanos no final, você não pode resistir para sempre. Então eu estava, mas eu me senti mal pelos meus personagens, os personagens dos meus romances. Eu disse, se eles saíssem dos meus livros. Eles pulariam dos romances, não conheceriam o lugar. Em vez disso, onde viveram nessas ruas, que agora estão danificadas, infelizmente, essas ruas e aqueles pequenos becos entre as casas onde viveram toda a sua vida, mas mesmo quando eu estava desenhando, às vezes eu desenhava o mapa do mar, ou eu diria, o palco, o teatro do meu romance, e sempre, eu representava a mesma área, que é o meu bairro, que chamamos de bairro de Jaffa, onde todas as pessoas que vivem lá vêm originalmente de Jaffa, onde eram refugiados de Jaffa. Então eu disse, uau, agora as ruas não são mais ruas, as casas não estão mais lá, as ruas estão danificadas. Tudo mudou.

Então, se meus personagens andassem, eles não reconheceriam o lugar da casa. E se encontrassem a casa onde a deixaram e onde nasceram, na verdade, eles não a reconheceriam. Eu costumava sentar perto da entrada da casa, olhando para as escadas, escadas de madeira dentro da casa, que iam para o meu quarto, na verdade. E então eu começava, sempre, a inventar minhas histórias. Como eu estava olhando para o céu das escadas, eu imaginava a mim mesmo subindo para o céu das escadas. Você sabe, Chris, eu diria a você que a verdadeira guerra começa depois que a guerra termina. Minha esposa perdeu sua única irmã. Ela não tem irmãs ou irmãos, e também perdeu a mãe. E até agora, Chris, ela chora todas as noites, sabe por quê? Porque ela deseja, até agora, que alguém possa pegar os ossos de sua irmã e de seu marido e seus filhos e enterrá-los porque eles estão debaixo dos escombros desde o sétimo, oitavo dia da guerra, ou seja, há cerca de 290 dias, mais ou menos. Então, tudo o que ela deseja é um túmulo para visitar, para chorar lá. Então, nossa alma, até, está adiada. Nossa dor não está recebendo seu devido reconhecimento. Então, após a guerra, as pessoas terão mais tempo para chorar, para chorar, para prestar respeito às pessoas amadas que passaram na guerra. Então, a verdadeira guerra, mesmo no nível pessoal, começará depois que a guerra terminar. E, claro, pense nos filhos do meu pai, eles não têm onde ficar. Mesmo aqueles casados, as meninas e meninos casados do meu pai, eles não têm, suas casas também foram destruídas. Então não há lugar para ir. O que as pessoas do norte farão, Chris, elas carregarão suas tendas nos ombros, e caminharão para o norte para colocá-las novamente, para viver perto dos escombros e dos escombros das suas casas. Então, essa é uma dor muito longa, e é isso que estou dizendo. O fim desta guerra é eliminar a vida de Gaza, torná-la algo impossível, tornar a vida um custo e um peso, você nunca será feliz, mas seu futuro. Então, é uma guerra contra o futuro também. Não é, lembre-se, falamos sobre a guerra contra o passado, a memória, a narrativa, através da cultura, destruindo esculturas mínimas, museus, matando autores, destruindo bibliotecas, o fio que conecta o arquivo de Gaza. Não é apenas contra o passado, é contra o futuro também, para tornar o futuro algo que não virá e não existirá para os gazenses.

Chris Hedges: Então Atef, como você mencionou, você perdeu a sua cunhada e marido dela quando o prédio deles foi bombardeado, você escreve que os corpos da filha deles e do neto já haviam sido recuperados. A única sobrevivente conhecida foi Wissum, uma das filhas deles, que foi levada para a UTI. Wissum foi direto para a cirurgia onde ambas as pernas e a mão direita foram amputadas. Sua cerimônia de formatura da Faculdade de Artes havia ocorrido apenas no dia anterior. Ela terá que passar o resto da vida sem pernas, com uma mão. E você a visita no hospital, e ela está mal acordada, e depois de meia hora, ela pergunta: “Eu estou sonhando, certo?” E você responde: “Todos nós estamos em um sonho.” E ela diz: “Meu sonho é aterrorizante. Por quê?” E você responde: “Todos os nossos sonhos são aterrorizantes.” Depois de 10 minutos de silêncio, ela disse: “Não minta para mim, tio, no meu sonho eu não tenho pernas. É verdade, não é? Eu não tenho pernas.” Mas você disse que é um sonho, você lhe diz. Eu não gosto desse sonho, tio, e você escreve: “Eu tive que ir embora. Durante longos 10 minutos, eu chorei e chorei, sobrecarregado pelos horrores dos últimos dias. Saí do hospital e me vi vagando pelas ruas. Pensei, de forma ociosa, que poderíamos transformar esta cidade em um cenário para filmes de guerra.” E então, quando você volta para visitá-la, e não há analgésicos ou sedativos, e ela está consumida pela dor, ela pede uma injeção letal e lhe diz que Allah a perdoará. E você responde: “Mas ele não me perdoará, Wissam.” E ela responde: “Vou pedir isso em seu nome.” Quero que você fale um pouco sobre Wissam e esse momento.

Atef Abu Saif: Você sabe, eu nunca li o livro depois que o escrevi, eu te disse. Eu não [inaudível]. E mesmo quando eu falei sobre o livro em Omã, Cairo, Marrocos, minha única condição era não ler parte do livro, porque eles pediriam para você ler. É sobre o seu livro. Então, eu estava no Qatar, na verdade, onde conseguimos, por sorte, eu me comuniquei com algumas pessoas no governo do Qatar, e elas a transmitiram para o Qatar e, espero, ela está passando por algumas cirurgias e operações em agosto, 15 de agosto, para prepará-la para ter membros artificiais, pernas. E eu me lembro de como foi, quando encontrei minha esposa dizendo, ela soube das notícias, estava nas notícias. Ela disse: “Ninguém sobreviveu, nem uma única pessoa.” Então eu fui, “Bem, Wissam sobreviveu. Você pode acreditar?” Você está falando com uma pessoa que perdeu toda a sua família porque ela não tem irmãos e irmãs, então sua única irmã, e, claro, com seus filhos e esposa. Então, para Wissam, quando ela estava na casa, a bomba, a explosão ocorreu, e ela foi lançada para a casa ao lado sem pernas ou mão, e eles a carregaram e a levaram para o hospital. Claro, ela estava inconsciente. Então, para ela, a última coisa que ela lembra é que estava deitada na cama em frente à mãe, como se estivessem assim e conversando, então ela não lembra de nada. Mas eu acho que mais tarde, ela me disse no Cairo, quando a visitei no hospital no Cairo, ela percebeu que quando a carregaram, ela estava sem pernas e sentiu que suas pernas foram amputadas. Então, para ela, é como a maioria das pessoas, Chris, é um pesadelo, é um filme.

É algo que você não acredita ou, na verdade, não quer acreditar. Você deseja que esse sonho seja assim até agora, porque todas as noites antes de dormir, minha esposa tem que chorar e me dizer: “Uau, e se isso for um pesadelo?” E depois de 300 dias, porque neste pesadelo do qual ela deseja acordar, ela perdeu… “Você sabe, Atef, quando você pega seu celular, você encontra pessoas para ligar da sua família. Mas quando eu pego, nenhuma pessoa.” Sua irmã, única irmã, seu cunhado, os dois filhos que não são crianças, que têm 25, 28, os filhos da irmã dela e sua mãe. É toda a sua família. Então, é apenas seu [inaudível] pai que ainda está vivo e é um homem muito velho para ela. Então ela diz: “Quando você pega seu celular e encontra números para ligar, eu não encontro números para ligar.” Então, todas as noites, ela diz, o que Wissam me disse naquele dia, e se isso for um sonho, pesadelo, um filme de terror? Mesmo neste filme, eu perdi minhas pernas, ou neste pesadelo, eu perdi minhas pernas e meu braço, mas todos, Chris, eu sei que estamos sem tempo. Mas quando eu deixei meu pai em Jebalia, ele se recusou a vir comigo para Rafah e o sul e disse: “Escute, Atef, eu vivi toda a minha vida aqui, e se Allah quer que eu morra, eu vou morrer aqui, não vou morrer em outro lugar.” E ele morreu, na verdade lá, mas ele morreu porque também não encontrou pão para comer. Por 10 dias, ele estava comendo sementes de animais. As sementes, com as quais você alimenta animais. Enfim, eu me lembro quando olhei para seu rosto pela última vez antes de ir para o sul. Eu estava pedindo a Allah apenas um favor, que ele não fez por mim. Eu disse apenas, eu quero vê-lo novamente, porque eu tinha essa sensação de que eu poderia não vê-lo novamente. E até agora, muitas vezes eu só penso, uau, e se isso for apenas outra história que estou contando para a nação, para os leitores, como se eu estivesse inventando todo esse trabalho como escritor, e você faz isso como escritor. E se isso for apenas uma das minhas criações, e eu gostaria que fosse, na verdade. E toda a nossa conversa agora é parte disso, na verdade, é parte desse universo fictício que eu criei para contar sobre ele.

Chris Hedges: Ótimo. Obrigado, Atef. Esse foi Atef Abu Saif, estamos falando sobre seu livro, “Não Olhe Para a Esquerda: Um Diário de Genocídio.” Quero agradecer a Sofia, Diego, Thomas e Max, que produziram o programa. Você pode me encontrar em ChrisHedges.substack.com.

Neste primeiro episódio da nova e independente iteração de The Chris Hedges Report, o romancista palestino Atef Abu Saif e Hedges exploram as experiências de Saif sob cerco pelos israelenses em Gaza, e o significado por trás delas, em uma conversa substancial e poderosa. Através disso, a textura do genocídio e o dano que inflige às suas vítimas é capturada, à medida que a eloquência e a vulnerabilidade de Saif revelam o peso da tragédia de uma maneira que apenas os fatos e dados não conseguem fazer.

CHRIS HEDGE ” THE CHRIS HEDGE REPORTER” ( EUA) / ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)

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