A confiança na Justiça é cada vez menor, como mostra uma sondagem acabada de publicar – e mesmo para a defesa da democracia, o progresso do País, é indispensável uma Justiça justa
Aentrevista de Lucília Gago já foi tão comentada que em princípio não valeria a pena voltar a ela nesta coluna. Até porque esses comentários, os que li ou ouvi, em geral foram de acertada crítica à postura, às posições e afirmações da procuradora-geral da República. No entanto, volto porque: a) já escrevi tanto sobre os problemas da Justiça, em meu juízo dos mais graves, complexos e menos resolvidos do País, que se me impõe agora não a ignorar; sobretudo para b) salientar quatro importantes aspetos ou questões de fundo. O que de modo o mais simples e claro possível ensaiarei fazer.
1. Lucília Gago (LG) enfatizou que o processo que visou e atingiu António Costa (AC) não foi arquivado. Assim, a posição nele do ex-primeiro-ministro continua a mesma. Ou seja, nenhuma: não sendo processualmente nada – só foi ouvido, e depois de muito o pedir –, na prática mantém-se (ou alimenta-se?) a falsa ideia de continuar suspeito. Apesar de mesmo do comunicado do MP resultar flagrantemente que nenhum procedimento ilícito ou desconforme com o bom exercício do cargo lhe foi atribuído, antes apenas haver referência a escutados “invocarem” o seu nome para uma possível intervenção no âmbito das suas competências!
A procuradora-geral sugeriu, pois, ou mesmo afirmou, que só o arquivamento do processo permitirá pôr termo a todas as suspeições. Arquivamento que não tem prazo legal para ocorrer, sabendo-se bem haver processos parados ou a arrastarem-se anos e anos. Acresce que quanto mais afastado no tempo for o arquivamento, mais apagado ou diluído ficará o efeito do que sobre a ação do MP se possa dizer… Tudo isto é lamentável, perigoso, desconforme com as garantias que qualquer cidadão deve ter num Estado de direito.
2. A procuradora-geral acentuou muito que todos os cidadãos são iguais perante a lei, ninguém pode ter um tratamento especial. É mais do que óbvio ser assim, e dizê-lo como disse no contexto em que o fez pode assumir contornos populistas e demagógicos. E para lá de não ser correto negar a legitimidade/necessidade de ter em conta certas consequências, quando estejam em causa titulares de órgãos de soberania, é o procedimento do MP que pode conduzir a não se verificar tal igualdade. Se o caso fosse com um “cidadão comum”, não viria a público, se viesse não haveria a referência específica a um nome, nem teria as consequências graves para o cidadão – e para o País – que teve tratando-se de um chefe de governo.
3. Ainda em matéria de igualdade, claro que ela tem de existir também em matéria de obrigação de todos os órgãos de soberania, organismos e serviços do Estado prestarem contas, estarem sujeitos a escrutínio democrático, não gozarem de impunidade. Ora, na prestação de LG não pareceu ser esse o seu entendimento, e não se ouviu uma só palavra a defender a imprescindibilidade dessa igualdade em relação ao MP – chegando a afirmar até que as críticas que lhe são feitas se inserem numa “campanha orquestrada”!
4. Enfim, ao não admitir nenhum erro ou desvio de magistrados do MP, apresentando-o como uma espécie de bloco, toda a instituição responsável por todos os atos de todos os seus integrantes, creio que Lucília Gago lhe presta um mau serviço. Embora agrade a quem padeça de “corporativismo” – que em nenhuma classe, como a dos magistrados, pode ser tão nefasto. Em todas as classes há bons, sofríveis e maus profissionais, do ponto de vista técnico e não só. E para defender o prestígio, o bom nome, até a honra de uma classe ou de uma corporação, o que se impõe é reconhecer os erros e as fragilidades, evitar ou punir os desvios e abusos.
Por exemplo, são conhecidos muitos casos de arbítrio e violência policiais. Ora, para defender as polícias, essenciais em democracia agindo dentro da legalidade, o que há a fazer é denunciar, investigar, punir o que está mal, não fazer de conta que está tudo bem. A confiança na Justiça é cada vez menor, como mostra uma sondagem acabada de publicar – e mesmo para a defesa da democracia, o progresso do País, é indispensável uma Justiça justa.
À MARGEM
Mas é só o MP?
A pergunta em título faz sentido e há quem no MP naturalmente a faça. Então os graves problemas na Justiça decorrem apenas da ação do MP? Não, de maneira nenhuma. Nunca – nem mesmo agora. Também há problemas com a legislação, a falta de funcionários, a conduta de advogados (mas, atenção, a Ordem não o oculta, instaura não poucos processos disciplinares). E, obviamente, há problemas com magistrados judiciais. Aliás, por exemplo, as escutas têm de ser autorizadas por um juiz… Mas, neste momento, tem maior relevância o que se passa com o MP e por ele devem começar as mudanças indispensáveis. Com urgência.
LUIS CARLOS VASCNCELLOS ” REVISTA SEMANAL VISÃO” ( PORTUGAL)