ERA OUTRA VEZ NA AMÉRICA

Não se pode esquecer que os EUA atuais nasceram, muito recentemente (se olharmos para a fundação de Portugal), de duas guerras civis ou quase civis.

Aprimeira guerra deu-se a partir de 1775, em que os colonos, maioritariamente de origem anglo-saxónica, protestante e branca, se revoltaram contra o poder metropolitano de Londres, depois de lhes ter sido recusada a possibilidade de serem cidadãos britânicos de primeira.

O que começou por um combate pela justiça interna acabou numa guerra colonial: “deem-me a liberdade, ou a morte”, gritava Patrick Henry, delegado à Convenção da Virgínia (assembleia que procurava uma Constituição autónoma), na igreja de São João de Richmond, a 23 de março deste ano.

A segunda guerra foi a da Secessão, iniciada em 1861 e que durou quatro longos anos, com mais de 1 milhão e 600 mil mortos, entre militares e civis. O fim do esclavagismo e os diferentes projetos jurídico-políticos, económicos e sociais entre os estados do norte e do sul estiveram na origem da carnificina. Como em Caim e Abel, pior que inimigos, eram irmãos.

Muito do que temos visto nas últimas décadas, na contestação ao governo federal, ou a algum partido que o ocupe, ou a alguma orientação específica que siga, encontra nessas guerras do passado mitos para o presente. Survivalistas e milenaristas, anarquistas e comunalistas, lobos solitários ou matilhas desenfreadas, vamos sempre encontrar no seu seio cores, sons, rostos ou enredos da América revolucionária e insurgente, ou da América dividida entre cinzento e azul.

Quando o sociólogo alemão Werner Sombart escreveu, em 1906, o seu tratado sobre o porquê da inexistência de socialismo nos EUA, ou quando o viajante investigador Alexis de Tocqueville procurou perceber o sistema judicial, prisional, jurídico e político dos EUA, em 1831, havia uma conclusão comum: a experiência norte-americana era única, misturando características indígenas, exigências de vida comum, invenções e influências das múltiplas culturas que, depois dos protestantes da primeira vaga, tinham inundado o território.

As doutrinas comuns na Europa, essa mãe espiritual da América, nunca tinham verdadeiramente singrado como experiências bem-sucedidas de governo: nem fascismos, nem monarquismo, nem socialismo, nem comunismo, e com o liberalismo, o conservadorismo, a democracia e a república a precisarem sempre de aspas, para se compreender o sentido.

Tocqueville dizia que a primeira sensação de solo americano era o barulho. Sombart estudou o efeito da fronteira por explorar (o Oeste Longínquo) e os mitos aí envolvidos (retomados pela odisseia fílmica de Kevin Costner, agora nas telas), como um motivo de eterna mudança no sistema socioeconómico. Com iguais recursos naturais, e uma dimensão física ainda maior, a Rússia evoluiu para formas de centralismo, acumulação de poder, desigualdade e estatismo, enquanto os EUA se organizaram e desorganizaram em formas localistas, municipalistas, regionalistas, em que o milagre final não foi o caos continuado, mas a capacidade para criar uma União apesar de tudo.

Da erupção da ordem e da liberdade, da prosperidade e da diferença, da ascensão social vertiginosa e da igual queda no abismo, do império dos sonhos e das desilusões (ponto de partida para muitas coisas, incluindo os magnicídios e as megafestas sociais), deste vulcão surgiu também sempre, de forma aberta ou dissimulada, a violência. A violência e o excesso, que se revelaram também sempre no perdão e na pena de morte, nas igrejas evangélicas e nos pregadores e batismos rituais, no porte de arma e na organização de milícias armadas para defender a casa, a família e a vida.

A grande pergunta não é assim “como é que uma Pátria desenvolvida pode ter criado tanta violência”, mas como é que “uma Pátria violenta pode ter criado tanto desenvolvimento”.

É nesta América, pendularmente irada, que tem de se situar o atentado do fim da tarde 13 de julho, na Pensilvânia, ela própria estado do começo: dos Pais Fundadores, da Guerra Revolucionária e da grande agitação das mentes.

Um ponto da situação

Há círculos distintos nesta tragédia: a classe política, a opinião pública, os media e os votantes. O primeiro, através dos seus elementos mais responsáveis, e fazendo ato de contrição de excessos verbais passados, procura desdramatizar e chamar à união.

O segundo surpreendeu-se com o elemento trágico na turbulenta história de Donald Trump, mas permanece dividido nas trincheiras das redes sociais mais rebarbativas.

O terceiro não sabe ainda se há de relatar um recomeço do trumpismo e do antitrumpismo, agora com novas referências.

O quarto é o essencial: e o que se passou com o atentado tem, para já, o efeito de matar a abstenção e obrigar todos os animais políticos conscientes a votar.

História geral do magnicídio

Lincoln foi morto em 1865 por um confederado impenitente e teatral. James Garfield faleceu após grande sofrimento, depois do atentado de 1881, às mãos de um teórico da conspiração, por motivos mesquinhos. McKinley foi assassinado em 1901 por um anarquista. John Kennedy ficou sem vida em 1963, e o mistério permanece, com tentáculos na máfia, em Cuba e em Moscovo.

Theodore Roosevelt (1912) e Ronald Reagan (1981) quase morreram em emboscadas de alucinados. No caso de Reagan, o homicida frustrado pode hoje, em liberdade, apresentar as suas obras de “arte alternativa”.

De Jackson a Biden, houve 38 conspirações desmanteladas, incluindo internacionais. O Poder e a Morte andam de mãos dadas.

Tentar filmar atentados

Sobre atentados presidenciais nos EUA, desde Lincoln, há uma grossa filmografia.

A saber, JFK, de Oliver Stone (1991), Parallax View (1974), de Alan J. Pakula, O Candidato da Manchúria, baseado no romance de Richard Condon, com duas versões em 1962 e 2004, Parkland, de P. Landesman (2013), Executive Action (D. Miller, 1973), Winter Kills (W. Richert 1979), Seven Days in May (J. Frankenheimer 1964), Blow Out (B. de Palma 1981), The Conspirator (R. Redford, 2010), The Assassination of Richard Nixon (N. Mueller 2004), Vantage Point (P. Travis 2008) e In the line of Fire (W. Peterson 1993).

De falsos documentários a épicos conspiracionais, está lá tudo.

NUNO ROGÉRIO ” REVISTA SEMANAL SÁBADO” ( PORTUGAL)

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