Quais os motivos da Globo ter recuado na cobertura, depois da matéria bombástica do Jornal Nacional sobre o depoimento do porteiro?
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Ao longo de todo o período de investigações sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco, o Jornal GGN trouxe inúmeras evidências do envolvimento da família Bolsonaro com o crime.
Fica sem explicações apenas um mistério: os motivos da Globo ter recuado na cobertura, depois da matéria bombástica do Jornal Nacional sobre o depoimento do porteiro – que afirmou que o motorista que foi pegar Ronnie Lessa, e o levou até o local do assassinato, dera como destino a casa de Bolsonaro.
Durante a madrugada, viu-se num Bolsonaro colérico, ameaçando raios do Olimpo contra a Globo e apresentando, como único álibi, o fato de estar em Brasilia naquele momento.
O recuo da Globo foi instantâneo.
Conforme registramos no artigo “Caso Marielle: Globo terá que apresentar outras provas contra Bolsonaro”, de 30 de outubro de 2019, a Globo se comportou como os soldados italianos da piada, na Segunda Guerra: se afastando de costas para não levar tiros no traseiro.
“Nos seus jornais, a TV Globo ficou na defensiva, tentando justificar jornalisticamente a matéria sobre o assassino de Marielle que teria entrado no condomínio mencionando a casa de Jair Bolsonaro. No Jornal Hoje, houve uma comovente e sincera defesa da casa pelo colunista Valdo Cruz, mostrando que o fato de ter mostrado que no dia mencionado Bolsonaro estava no Congresso seria a prova da isenção da cobertura. Se fosse apenas isso, não poderia ter sido dado o destaque que deu ao caso”.
Com base em todas as evidências do período, no dia 31 de outubro pubicamos a matéria “Se fizer jornalismo, a Globo conseguirá ressuscitar a denúncia“. Já tínhamos a informação de que o sistema de telefonia do condomínio permitia transferência para celulares – o que derrubava o álibi de Bolsonaro.
No dia 4 de novembro de 2019, na matéria “Caso Marielle: Ali Kamel explica como foi enganado por uma fonte ligada a Bolsonaro“:
“A editoria pesquisou os registros da Câmara e confirmou que o então deputado estava em Brasília e participara de duas votações, em horários que tornavam impossível a sua presença no Rio. Pesquisou mais, e descobriu vídeos que o então deputado gravara na Câmara naquele dia e publicará em suas redes sociais. A realidade não batia com o depoimento do porteiro”, prossegue, destacando que essas informações foram colocadas na matéria que foi ao ar, no Jornal Nacional, no dia 29 de outubro”.
No dia 5 de novembro, com base no trabalho de um blog independente, mostramos as características do sistema de telefonia na matéria “Comprovado: sistema telefônico tinha condições de transferir ligações para celular de Bolsonaro” A matéria original foi publicada no Blog de Berta,
Surpreendentemente, o Jornal Nacional e os veículos da Globo abandonaram o caso. Ao mesmo tempo, ocorreu outro episódio insólito. De madrugada, Carlos Bolsonaro se apropriou do sistema de telefonia da portaria, um claro movimento de ocultação de provas. Logo em seguida, mostrou o visor com uma chamada que nao era a voz do porteiro.
Em apenas duas horas e meia o GAECO (Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado), do Ministério Público Estadual, apresentou uma falsa perícia em duas horas e meia, para desmentir o porteiro. Sequer solicitou o equipamento de telefonia do condomínio para a perícia, conforme mostramos no artigo “Peritos afirmam que registros de ligações no condomínio de Bolsonaro foram editados“.
No dia 20 de novembro de 2019, mostramos a prova final, que passara despercebida pela imprensa. Carlos Bolsonaro publicou vídeo mostrando o visor do sistema de telefonia do condomínio – para tentar comprovar que não houve ligação para a casa do seu pai. Inadvertidamente, acabou mostrando uma ligação para sua própria casa. O porteiro chamava “seu Carlos”, para informar que o “Uber chegou”.
Ora, no dia 30 de outubro, o próprio O Globo publicou alegação de Carlos Bolsonaro, de que na tarde do dia em que Marielle foi morta ele não estava em casa. A reportagem era de Guilherme Amado. Surpreendentemente, promotores estaduais endossaram a farsa de Carlos Bolsonaro, tudo devidamente registrado pela nova fase do Jornal Nacional.
Na época, procurei o deputado Marcelo Freixo, que garantiu que a voz gravada era do primo de Carlos Bolsonaro, embora o porteiro se referisse claramente a “Carlos”. Freixo confiava na versão do delegado Rivaldo Barbosa, atualmente preso por conluio no episódio e foi personagem cental (e involuntário) da estratégia de apagar as pegadas de Bolsonaro.
Seu vídeo desmentia seu álibi e mostrava que ele se encontrava no condomínio no mesmo momento em que Ronnie Lessa recebia o motorista. E saiu pouco depois dos assassinos terem saído do condomínio. A mentira estava ali, estampada em vídeo. E nada foi feito pelos veículos da Globo.
No dia 26 de novembro, promotores do MPE do Rio pediram a exclusão de Bolsonaro do caso, alegando que seria fundamental para que o caso saísse do STF e permitisse a eles a continuidade das investigações.
Na edição de abril, a revista Piauí publicou a reportagem “O Cardeal Três – Ali Kamel, o fim de uma era“, sobre Ali Kamel, o todo-poderoso do jornalismo da Globo, que deixou o posto após muitas décadas para se tornar assessor pessoal da família Marinho. A matéria – um trabalho primoroso da repórter Ana Clara Costa – repete muitas informações levantadas pelo GGN – sem citar a fonte. Mas traz bastidores relevantes para entender os motivos que levaram a Globo a recuar. Foi, possivelmente, a ameaça de Bolsonaro de retirar a isenção de pagamentos ao INSS.
“Numa entrevista ainda na campanha de 2018, Guedes me contou que conversara com Marinho sobre um eventual governo Bolsonaro. Convenceu-se de que a emissora jamais apoiaria a agenda de costumes do candidato, mas insistiu que encampasse ao menos a parte econômica. Foi mais ou menos o que aconteceu, exceto por uma divergência: as desonerações. Anunciada no governo Dilma, a medida cortava impostos de setores com mão de obra intensiva, como a construção civil, a tecnologia e a mídia.
Por coerência, a imprensa deveria ter torpedeado a iniciativa, já que era mais uma demonstração do ímpeto estatista de Dilma. Aconteceu o contrário. As desonerações foram celebradas, em especial pela Globo. Em Brasília, por meio de seu vice-presidente de Relações Institucionais, Paulo Tonet Camargo, a empresa sempre operava um lobby pesado para que a medida fosse mantida ano após ano. No campo editorial, área sob comando de Kamel, toda a cobertura da tevê e dos veículos impressos era calibrada para expor o quanto o setor produtivo seria forçado a demitir caso o benefício fosse terminado. Guedes discordava das desonerações porque pioravam o quadro fiscal, mas nunca teve força política para mudar as coisas.
O problema, no entanto, nunca foi a economia – era a política mesmo. Mas nada preparou os dois lados para o que veio a público na noite de 29 de outubro de 2019. O Jornal Nacional divulgou que o ex-policial militar Élcio Queiroz, envolvido na morte da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, fora autorizado a entrar no condomínio Vivendas da Barra, onde fica a casa de Bolsonaro no Rio. Pior: a autorização de entrada aconteceu na noite dos assassinatos. Pior ainda: o porteiro do condomínio informara em depoimento que a autorização viera de alguém dentro da casa de Bolsonaro. Era uma bomba: associava o homicídio mais ruidoso do país com os Bolsonaro, tão afeitos à defesa de milicianos, alguns dos quais eram suspeitos do crime.
Naquela noite, Kamel deixou sua sala no sétimo andar da Globo e desceu para a redação do JN para, nas palavras de um repórter, “comandar o avião embaixo”. Ele só ia à redação quando havia alguma notícia sensível. Era, obviamente, o caso. Fez um pedido aos editores: dar destaque à informação de que, na noite em que o ex-PM entrou no condomínio, o presidente estava em Brasília, e não no Rio. Era um dado relevante, pois eliminava a suspeita de que Bolsonaro autorizara a entrada do suspeito.
As 24 horas que se seguiram à divulgação da reportagem foram inéditas na história do jornalismo da Globo. Começou uma grande contraoperação. O procurador-geral da República, Augusto Aras, se apressou em dar entrevista dizendo que a investigação noticiada pelo JN estava arquivada. De fato, seria arquivada, mas ainda não estava. O Ministério Público convocou uma coletiva de imprensa para avisar que a perícia feita no áudio da portaria – que em geral leva meses e dessa vez foi concluída em duas horas – mostrava que a informação que constava do depoimento do porteiro era falsa: a autorização de entrada não viera da casa de Bolsonaro, mas da casa de Ronnie Lessa, comparsa do ex-PM. O porteiro viria a desmentir seu depoimento depois, numa reviravolta nunca bem esclarecida. Bolsonaro então fez um vídeo espumando contra a Globo e chamando os repórteres de “patifes”, “canalhas” e “porcos”.
No dia seguinte à divulgação do JN , o caso estava arquivado. Tyndaro Menezes, então chefe da equipe de investigação do JN, foi à sala de Kamel para perguntar se, na sua opinião, a equipe havia errado ao noticiar o caso. Kamel negou. Se havia algum responsável, disse, era ele próprio. Em seguida, fez uma nota à redação, detalhando os passos da apuração dos repórteres, que entrevistaram os envolvidos, inclusive o advogado do presidente, Frederick Wassef – que sabia que o áudio do porteiro existia e que se tratava de um engano, mas preferiu não dizer nada aos repórteres.
Na nota, Kamel sugeriu que as fontes próximas do presidente armaram uma arapuca para a Globo. “Por que os principais interessados em esclarecer os fatos, sabendo com detalhes da existência do áudio, sonegaram essa informação? A resposta pode estar no que aconteceu nos minutos subsequentes à publicação da reportagem do Jornal Nacional. Patifes, canalhas e porcos foram alguns dos insultos, acompanhados de ameaças à cassação da concessão da Globo em 2022, dirigidos pelo presidente Bolsonaro ao nosso jornalismo, que só cumpriu a sua missão, oferecendo todas as chances aos interessados para desacreditar com mais elementos o porteiro do condomínio (já que sabiam do áudio).” Wassef, além de não ter desmentido o áudio quando foi entrevistado, ainda passou a ligar insistentemente para repórteres da Globo, ansioso para saber quando a reportagem seria veiculada.
O caso do porteiro – associado aos anos de noticiário sobre impeachment, Lava Jato, delação dos Batista, ameaças de Bolsonaro – produziu transtornos, pressões e contrapressões que acabaram por afetar o jornalismo da emissora. Passou a prevalecer uma abordagem menos incisiva, menos investigativa, com maior foco em prestação de serviços, com protocolos de checagem cada vez mais estritos e menos disposição para o noticiário que move placas tectônicas na República. Uma dezena de repórteres que entrevistei, todos sob a condição de que seus nomes não fossem publicados, avaliam que o jornalismo da Globo ficou mais acanhado nos últimos anos, com menos apetite por reportagens investigativas. Uma das figurinhas de WhatsApp mais populares entre os jornalistas passou a ser uma foto de Kamel acompanhada dos dizeres “NÃO PODE”.
A investigação que não terminou
Para elucidar definitivamente o assassinato de Marielle, a Polícia Federal precisará avançar nas seguintes frentes.
- Ouvir a promotora Simone Sibilis, do Ministério Público do Rio de Janeiro, que endossou as falsas versões de Carlos Bolsonaro.
- Investigar a perícia produzida em tempo recorde pelo MPE.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)