Referência mundial em cobertura de guerras em quadrinhos, Sacco voltou a publicar sobre a Palestina
Joe Sacco passou os últimos oito meses dividido entre terminar um livro sobre um conflito violento que aconteceu na Índia em 2013, acompanhar as notícias sobre a guerra na Palestina e desenhar comentários a respeito dela em uma coluna intitulada “A guerra em Gaza”, para o The Comics Journal, publicada desde o fim de janeiro.
No início de junho, ele concluiu os dois trabalhos – o livro que faz há dez anos e a coluna – e decidiu se afastar por um tempo do jornalismo e de desenhar.
Nascido em Malta e vivendo nos Estados Unidos, Sacco publicou Palestina (1993), um livro que se tornou referência no jornalismo em quadrinhos, por volta do fim da Primeira Intifada (1987-1993) e da sua primeira visita à região. Alguns anos depois, ele voltou para contar a história de massacres ocorridos nas cidades de Rafah e Khan Younis, em 1956, tentando lançar luz aos eventos do presente através do passado em Notas sobre Gaza (2009).
O jornalista e quadrinista, Joe Sacco
Quando começou a seguir os eventos que escalaram na guerra mais recente no território, após os ataques do Hamas em 7 de outubro de 2023, Sacco sentia algum envolvimento pessoal nos fatos. Com amigos na Palestina e provocado por um e-mail do editor do livro homônimo, Gary Groth, ele decidiu voltar a escrever e começou a coluna “A Guerra em Gaza”.
Sacco conversou com a Agência Pública por cerca de uma hora sobre os desenhos da guerra atual, perspectivas políticas nos Estados Unidos e seu último trabalho, Pagar a terra (2020) – um livro sobre décadas de violações contra o povo indígena Dene, no norte do Canadá. A história, recém-traduzida e publicada no Brasil pela Companhia das Letras, cobre desde a exploração de recursos minerais naturais em suas terras até o sistema de educação imposto às comunidades indígenas pelo governo canadense.
Dos Dene, no Canadá, aos palestinos em Gaza, ambos os trabalhos contam histórias sobre o colonialismo, reconhece o autor.
‘‘No contexto da Palestina, os colonos querem a terra, querem retirar de lá a população palestina nativa e tomar suas terras, porque eles querem ser assentados lá e tocar a produção agrícola eles mesmos, enquanto no Canadá também é uma questão de terra e colonialismo, mas é diferente no sentido de que a maioria dos brancos não quer viver naquele tipo de ambiente. O controle da terra ali é controle de recursos, mais do que de produção agrícola ou de que queremos essas terras para construir nossas grandes cidades aqui’’, analisa Sacco.
Sobre “A Guerra em Gaza”, o que o levou a voltar a escrever e desenhar sobre a Palestina? Qual era seu estado de espírito ali?
Eu estava em um péssimo estado de espírito. Um dos meus amigos me escreveu e disse: “Por favor, levante sua voz”. E eu não tinha certeza como faria isso, estava paralisado pelos eventos de 7 de outubro. Parecia um massacre, e aí a resposta de Israel foi tão além. Foi pesado. Eu sou um ser humano antes, um jornalista depois. Eu tinha que lidar com isso em nível humano e depois me senti mais ou menos pronto. O que foi interessante é que, depois que fiz umas duas colunas, de repente me senti muito mais engajado com aquilo. Como se sentisse um fogo para fazer aquilo. Não foi algo de uma semana ou duas semanas, mas meses e meses e meses. Ultraje depois de ultraje depois de ultraje.
Qual a vantagem disso? Eu estou tentando tirar algo do meu sistema. E é o que consigo fazer. Queria poder reportar, preferia ficar longe de polêmica e sátira. Eu nunca me vi como um cartunista editorialista ou como ativista. Para mim, jornalismo significa que posso concordar plenamente com ativistas, eles podem me ajudar, como me ajudaram no passado, podem gostar do meu trabalho ou o que for, mas, no fim, você tem que dizer a verdade e ser honesto. Eu prefiro fazer reportagem. Se eu pudesse ter ido para Gaza, provavelmente teria ido. Normalmente, eu consigo canalizar sentimentos fortes apenas no jornalismo, mas dessa vez eu não tinha onde colocá-los. É por isso que saiu assim.
Quadrinho publicado originalmente em inglês e traduzido para português com exclusividade pela Agência Pública
Como você está convivendo com as notícias sobre a guerra?
É difícil porque há dias em que eu me vejo checando atualizações a cada hora. Às vezes, eu escuto a Al-Jazeera umas três vezes ao dia, e aí é tipo, ok, já vi essa história duas vezes, não preciso ver de novo. Às vezes, eu estou interessado nesses sites que contam o que está acontecendo na esfera militar. Eu tento ler o Haaretz [jornal israelense], vejo o que eles estão enfatizando. Tento manter contato com as pessoas o máximo que posso. Há duas pessoas com quem mantenho contato lá, uma em Rafah, que obviamente está passando por um momento muito difícil, e outra que está no Cairo agora.
O que está em Rafah perdeu muitos familiares. Ele me escreveu esta manhã, então sei que está vivo. Meu outro amigo no Cairo diz que há cerca de 100 mil palestinos lá, quase todos sem documentos. Eles pagam para sair, mas acabam em uma espécie de limbo e não sabem o que vai acontecer daqui para a frente. Muitas pessoas começaram campanhas de financiamento coletivo – sabe, custa tanto para tirar alguém [de Gaza] e tanto para alguém que seja menor de 16 anos.
É um genocídio. É difícil, estamos envolvidos nele. Pelo menos no Brasil há alguma oposição por parte do governo, mas aqui [nos EUA] é como se estivéssemos facilitando. Sinto que sou parte de um genocídio quer queira ou não. Estou sendo arrastado para isso e é por isso que minha reação é forte.
Uma de suas publicações mais recentes é sobre isso. Você diz que de um lado está Donald Trump, uma ameaça à democracia, mas do outro está Joe Biden, um presidente que é parte de um genocídio. Como você se sente nessa eleição?
Não sou um cidadão americano, eu tenho residência permanente aqui (então não posso votar). Para mim, votar é a parte menos importante da democracia. Democracia é sobre liberdade de expressão.
Falei com amigos ontem, bebemos e jantamos juntos. Alguns deles devem fazer votos de protesto, mas dizem que se estivessem em uma situação em que tivessem que escolher entre Biden e Trump, e o voto realmente importasse, votariam em Biden. Eu os pressionei e disse: “Não consigo imaginar outros quatro anos de Trump, você não sabe o que pode acontecer, mas você consegue entender o quão moralmente comprometido pode ficar por votar em alguém que você admite que possibilitou um genocídio?”. Eu não consigo ver nenhum outro lado nisso. Um voto para Biden é um voto para alguém que permitiu o genocídio.
Eu não votaria em Biden, nem se importasse. E eu odeio Trump. Acho que ele prejudicaria muito a democracia, mas não há maneira de que eu conseguisse moralmente votar em qualquer um deles. É incrível com quantas pessoas conversei que vão apoiar Biden, apesar de acharem que ele está ajudando em um genocídio. Eu estou pensando moralmente, não politicamente, porque no fim é assim que meu cérebro funciona.
Estão sempre falando sobre o menor dos males. Nós estamos em um território agora que está além disso e que mostra o quão falho é o sistema, que acabam sendo essas as opções. Esse é meio que o ponto naquele quadrinho. Eu não estou repreendendo ninguém por votar em Biden, só estou dizendo que você está se comprometendo moralmente, e eles concordam. Se isso é o que sobrou como opção, meio que empurrado goela abaixo, isso diz muito sobre o Partido Democrata e sobre o Partido Republicano, um partido enlouquecido.
Quadrinho publicado originalmente em inglês e traduzido para português com exclusividade pela Agência Pública
Você planeja escrever sobre Gaza de novo?
Apesar de tudo que eu disse sobre para onde quero ir e como quero me afastar do jornalismo, eu meio que concordei em trabalhar em um projeto com meu amigo Chris Hedges. Fizemos um livro chamado Dias de destruição, dias de revolta [Days of destruction, days of revolt] juntos. Ele é um escritor, ótimo jornalista e um grande nome em termos de dissidência. Reportamos juntos em Gaza e estamos falando sobre outro livro juntos.
Duvido que consigamos entrar em Gaza tão cedo, mas estamos tentando pensar no que podemos fazer. Se eu puder me afastar de violência, eu me afastaria agora. Eu sinto isso como um dever, então talvez faça algo em nome desse senso de dever. Mas preciso de um tempo.
Quadrinhos publicados originalmente em inglês e traduzidos para português com exclusividade pela Agência Pública
Como você chegou a essa história (Pagar a terra) e o que o levou a contá-la?
Depois de Notas sobre Gaza, eu comecei a pesquisar para um livro sobre a Índia. Trabalhei lá, voltei aos Estados Unidos e comecei a desenhar. Mas aí surgiu a chance de fazer algo para uma revista francesa, e eu meio que não queria trabalhar no livro. Eu estava saturado de desenhos violentos de guerra e todas essas coisas. Eu queria escapar e pensei que seria interessante mudar de direção e, como todo mundo, também estou interessado no que acontece com o clima. Eu pensei: o que eu poderia fazer que seria interessante? O início dessa história sobre o clima parece ser sobre de onde recursos são extraídos. E, geralmente, isso acontece onde populações indígenas vivem. Eu pensei em fazer uma série com três histórias diferentes, em continentes diferentes, mas fui até o Canadá e a história era tão complexa. Eles me deram 60 páginas em duas edições da revista, mas eu não estava satisfeito. Decidi voltar.
Não era apenas sobre povos indígenas e extração de recursos, fracking, e como isso afeta as coisas. Acabou sendo sobre o colonialismo e toda a natureza das relações entre o mundo euro-ocidental e o mundo indígena. E como o mundo euro-ocidental teve que quebrar o mundo indígena para fazer o que precisava fazer para chegar aos recursos. É algo muito mais complexo do que “Oh, nativos não gostam de fracking porque amam a Mãe Natureza” ou o que seja. Quando eu cheguei à parte das escolas residenciais, comecei a entender a profundidade dessa questão no Canadá e percebi que estava voltando à pauta da violência.
Um dos personagens explica o conceito de “pagar a terra”, mas por que você o escolheu como título?
É uma expressão tão bonita e diz tanto sobre como eles se relacionam com a terra. Pagar a terra é dar a ela algum presente antes de usá-la de alguma maneira. Antes de montar uma barraca, começar uma caçada, cruzar um rio, esse tipo de tributo, e fala sobre a conexão que o povo Dene, do Canadá, e outros povos indígenas pelo mundo sentem pela terra. Algo completamente divorciado da perspectiva euro-ocidental sobre as coisas. Meu cérebro ocidental não funciona assim, eu gostaria que funcionasse.
Você pode explicar ao leitor do Brasil quem é o povo Dene e o contexto do seu território?
Dene significa o povo, e muitos grupos indígenas se chamam assim em seu próprio idioma. Quando falamos do povo Dene, é geralmente sobre os territórios do noroeste, em torno de um mesmo grupo linguístico, que liga vários grupos de pessoas, e certos hábitos culturais. As pessoas que se chamam de Dene estão no Canadá, mas têm relações linguísticas com povos nos Estados Unidos.
Quando estamos falando dos Dene nos territórios do noroeste, há cinco grupos principais, mas eles se relacionam entre si, estão espalhados em um território enorme e vivem em vilas e aldeias. É diferente em cada comunidade, algumas são muito pequenas, com 80 ou 90 pessoas, enquanto outras têm alguns milhares.
No seu livro, vemos discursos que se opõem: fracking, mineração, indústria e trabalho contra preservação da cultura, identidade e meio ambiente. Como todos esses fatores estão presentes no cotidiano dessas pessoas?
Como jornalista, às vezes você vai até um local com ideias já preconcebidas. Especialmente para esse tipo de viagem, a maioria das coisas que eu li vieram de um filtro sobre meio ambiente. Quando você chega lá, você percebe que, sim, é sobre o meio ambiente, mas há uma tensão real entre como as pessoas querem viver e como elas querem acomodar certas mudanças em suas vidas. Havia algumas pessoas, poucas, que diziam: eu não quero nenhum tipo de desenvolvimento. A maioria meio que se reconciliava com algum nível de desenvolvimento por ver os benefícios disso. A questão era: como controlamos isso de forma que sirva para nós? Diferentes povos indígenas têm diferentes ideias sobre isso.
Essa é a tensão: se reconhece que um modelo ocidental e europeu foi colocado sobre eles. Quando você olha em termos históricos, a habilidade deles de viverem da terra foi diminuindo e foi quebrada. Toda a economia deles colapsou. Você pode ter alguma renda individual com armadilhas [de caça], fazendo isso ou aquilo, quando o preço das peles está alto, mas agora há um monte de ambientalistas e pessoas apaixonadas pelo direito dos animais que são contra vestir pele, então, como você vai fazer dinheiro? Eles vivem em um mundo do dinheiro, precisam pagar hipoteca, coisas que não existiam em seu vocabulário antes.
Como o livro mostra, os Dene se frustraram por não ter voz na política sobre suas terras. Então eles entraram na política, e o que mudou?
Havia uma certa rejeição moral, mas, quando começaram a discutir um oleoduto que iria do norte ao sul, houve casos denunciando como isso afetaria os povos indígenas. É aí que penso que a relação real deles com a política começa, eles se colocaram no mapa ao falar nas audiências.
Originalmente, isso foi algo coletivo, mais tarde, porém, eles se dividiram e grupos diferentes passaram a ter ideias diferentes. No livro eu detalho um pouco como as pessoas que não queriam estar envolvidas nessas estruturas euro-ocidentais acabaram, enfim, concordando em fazê-lo. Eles entenderam o ponto dessa estratégia. Se vai ajudar a longo prazo ou contra as forças do capital, não sei, mas eles estão tentando o melhor para ter a situação mais favorável possível para si mesmos nessa esfera política.
Como em seus trabalhos anteriores, você volta ao passado para tentar entender o presente. Nós aprendemos sobre tratados, acordos e violações sofridas pelas crianças nas escolas residenciais. Pode falar sobre as consequências disso?
Eu ouvi sobre o sistema de escolas residenciais antes de ir até lá. Algumas pessoas me alertaram a ter cuidado, não puxar o assunto, que era algo sensível, o que vai contra todos os meus instintos jornalísticos. Mas a verdade é que as escolas residenciais surgiam a toda hora em conversas e chegou um ponto em que alguém começou a falar sobre elas. Você percebe que, talvez, para algumas pessoas é um tópico sensível, mas a maioria está disposta a falar a respeito.
Você sente como se não falar sobre isso seria perder uma parte da história.
Essa foi uma das razões principais porque eu voltei. As escolas residenciais eram montadas não apenas para ensinar indígenas a ler e escrever ou prepará-los para serem trabalhadores, mas para romper a ligação deles com a terra.
Como o primeiro-ministro do Canadá [Sir John Macdonald] disse, não é o bastante que você possa ensinar um selvagem a ler e escrever; no fim, será apenas um selvagem que sabe ler e escrever [nas palavras do primeiro-ministro]. Você tem que retirar aquela pessoa do seu ambiente e, basicamente, de seus pais. Crianças foram colocadas no sistema, em todo o Canadá. Em alguns territórios do noroeste, algumas comunidades eram tão remotas que eles só começaram a fazer isso por volta dos anos 1940, embora o programa existisse desde o fim de 1800.
Essas crianças, algumas entre cinco e seis anos, eram retiradas, levadas a lugares onde seus pais nem sabiam, proibidas de falar sua língua nativa. Elas tinham que aprender inglês, às vezes francês. Eram dados números a elas, e tudo sobre seus costumes indígenas era esmagado. Elas tinham que aprender maneiras europeias, eram cristianizadas, porque o governo precisava fazer isso e as escolas religiosas estavam disponíveis. Muitas crianças passaram por coisas que nunca tinham passado em suas comunidades, como castigos físicos por entender algo errado, por não fazer algo da forma ocidental. Era algo brutal. E há ainda violência sexual. Não estamos falando apenas de padres e freiras, mas de crianças em cima de crianças, porque se tornou uma situação em que as pessoas começaram a abusar uma das outras sob esse tipo de abuso institucional. Isso teve um impacto enorme.
Eles pegaram gerações inteiras de crianças e, quando elas retornaram para suas comunidades, de onde muitas vezes estiveram afastadas por anos, elas não sabiam falar o idioma, não tinham como se comunicar com seus avós, não sabiam mais sobre os costumes tradicionais, como caçar, elas não cresceram com nada disso. Em resumo, isso termina em violência doméstica, em recorrer ao álcool como forma de escape. Teve um grande impacto nas pessoas e se tornou algo intergeracional.
O problema com o álcool persiste, mesmo entre pessoas que não frequentaram escolas residenciais. Os efeitos dessas instituições coloniais se desenrolou com o passar do tempo, não termina com uma comissão dizendo que aquilo era errado, que foi um genocídio cultural e colocando um laço em cima, dando um monte de dinheiro para as vítimas.
Uma vez eu estava falando com um homem e disse: “Bem, quando você acha que tudo isso irá se resolver?”. Ele ficou bravo e disse: “Isso nunca vai se resolver. Você não entende, isso vai seguir pelas gerações”. O povo deles agora está tentando romper isso. Eles têm um entendimento crítico muito bom do que lhes aconteceu. No livro, eu tenho alguém como Paul Andrew, o que ele diz poderia ter sido escrito por Frantz Fanon. Ele entende o ponto e é a crítica dele sobre isso.
Estamos falando de algo que durou quanto tempo?
Cerca de 150 anos e terminou nos anos 1990. Em alguns lugares, como nos territórios do noroeste, alcançou seu pico talvez nos anos 1960, 1970, e aí começou a perder força.
Em muitas das negociações por direitos das terras, eles querem chegar ao cerne de quem possui o que, então por muitas vezes povos indígenas ganham controle na área de superfície, mas os direitos do subsolo, o que acontece alguns palmos abaixo da terra, é uma história diferente. Povos indígenas sempre são um problema para a metrópole ou o centro. Nós queremos viver da forma que queremos viver, e queremos quaisquer químicos, minerais ou metais necessários para o telefone celular.
Povos indígenas também reconhecem que seu estilo de vida está mudando. Não é mais o trenó puxado por cães, é a moto para neve. Isso precisa de combustível, e como irei comprar uma moto para neve? Muitas questões culturais já mudaram para os Dene, e eles sabem disso. Essa é a tensão em suas vidas.
Você pode nos contar mais sobre seu novo livro que se passa na Índia, The Once and Future Riot?
É sobre violência entre comunidades de muçulmanos e hindus, um conflito que aconteceu em 2013. Sempre há incidentes entre hindus e muçulmanos, digamos; a questão é que geralmente eles não têm natureza política, mas acabam se tornando algo assim. Um partido político pode se apropriar e transformar isso em uma questão maior. O livro é sobre o que aconteceu e as narrativas que as pessoas criaram um ano depois, quando eu estava lá. Eu estava interessado nas histórias que as pessoas contam umas às outras.
Em que região aconteceu?
Uttar Pradesh, é no norte, uma região grande e que tem uma população muçulmana grande também. Pessoas foram mortas em uma vila, mas, de acordo com os moradores do local, ninguém foi morto ali. Então você tem esses tipos de narrativas coletivas para explicar o que eles fizeram, e eles meio que fazem de conta que não fizeram. E é nisto que estou interessado: as histórias que as pessoas contam a si mesmas, e aí descobrir o que realmente aconteceu.
É complicado, mas também é sobre democracia e violência e como as duas coisas não se excluem mutuamente. A violência é usada em democracias. É usada para separar as pessoas. O que é interessante nessa eleição mais recente é que, por mais que [Narendra] Modi [primeiro-ministro da Índia] tenha tentado jogar com a carta hindu e se referir a muçulmanos como infiltrados, muitas pessoas parecem ter votado contra ele porque ele não está prestando atenção nos problemas que elas têm em mente, como desemprego e as dificuldades da vida. Toda história é sobre muito mais do que você havia pensado quando você acaba indo até ela. Eu não estava pensando sobre democracia e violência quando estava lá, mas foi se tornando mais claro enquanto estava lá. Se tornou algo interessante para mim porque, bem, aconteceu no Brasil, em Brasília [nos ataques de 8 de janeiro de 2023]. E veja Trump, nós chegamos à beira da violência, tivemos violência [na invasão ao Capitólio, em 6 de janeiro de 2021] e parece que estão esperando que algo aconteça.
FERNANDA CANOFRE ” AGÊNCIA INVESTIGATIVA PÚBLICA” ( BRASIL)