CONCEIÇÃO TAVARES, A MESTRA MAIOR DE TODOS NÓS

Apoiou ideologicamente o Cruzado e entendeu, ideologicamente, que o Real significava a tentativa de imposição da financeirização na economia. 

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No início dos anos 80, a cobertura econômica dos jornais centrava-se exclusivamente nos economistas ortodoxos e nos delfinistas. Em fins dos anos 70 fui trabalhar como chefe de reportagem da Economia do Jornal da Tarde. Junto com um grupo de colegas – entre os quais José Roberto Nassar, na Exame, e José Paulo Kupfer – tentávamos colocar os desenvolvimentistas de contrabando. 

Os principais orientadores eram Luiz Gonzaga Belluzzo, João Manuel Cardoso de Mello e Luciano Coutinho. Pairando sobre eles, a luz radiosa de Celso Furtado e Maria da Conceição Tavares. 

A primeira vez que soube do seu temperamento explosivo foi em uma página amarela que sugeri à Veja, com Luiz Carlos Bresser Pereira e Carlos Estevam Martins, sobre a nova classe que se formava, os burocratas do serviço público. Carlos Estevam entrou na sala bufando. Poucos tempo antes, tinha sido escrachado em público por Maria da Conceição Tavares. Detalhe significativo: ambos namoravam na época. 

O segundo contato pessoal com Maria da Conceição foi no início dos anos 80, em uma reunião da ANPEC (Associação Nacional dos Centros de Pós-Graduação em Economia) em Olinda. Acompanhei uma mesa de tese de tese de um economista da Unicamp, aluno de Conceição, ela na banca. 

O aluno montou seu modelo econômico, fechou o raciocínio e demonstrou a tese. Foi a primeira vez que entendi a economia com um conjunto de sistemas interligados. Na hora de comentar, Conceição foi implacável. 

Para fechar o modelo, o mestrando escolheu apenas o que considerava as variáveis essenciais… para fechar o modelo. A mestra passou a inquiri-lo, então, sobre as variáveis essenciais, que não estavam no modelo. 

“Onde entram os trabalhadores nesse modelo? E os empresários? E o câmbio?”. 

Quando incluíam as variáveis, o modelo não fechava. O mestrando saiu humilhado da sala, mas Conceição não fazia por mal. Era seu estilo. Como era seu estilo ter uma visão sistêmica não apenas da economia nacional como da mundial. 

Celso Furtado mudou a maneira de pensar a economia, entendendo o desenvolvimento como uma questão sistêmica, na qual entrava a economia, mas a promoção social, o desenvolvimento regional, a cultura como fator de agregação nacional. Conceição incluía o elemento geopolítico. 

Mas, naquele encontro de Olinda, conheci uma Conceição Tavares exímia dançarina, fazendo par com José Serra (ou seria Paulo Renato de Souza?). E interessada em música brasileira. Consegui convencer os participantes que havia um gênio do violão tocando em um bar de Olinda: Canhoto da Paraíba. Lotamos o bar à noite, mas Canhoto estava em excursão pelo interior do Estado. 

Conceição tinha opiniões fortes, mas não brigava com os fatos. Reconheceu o dinamismo da economia no período militar, a maneira como Delfim e, depois, Geisel, completaram o ciclo industrial. Mas sempre criticando o desenvolvimento desigual. Na época da explosão de juros da Paul Volcker, entendeu perfeitamente a lógica geopolítica, visando manter o dólar como moeda universal, em um momento em que o mercado europeu poderia testar nova estrutura monetária, ainda mais turbinada pelos petrodólares da OPEP. 

Apoiou ideologicamente o Cruzado e entendeu, ideologicamente, que o Real significava a tentativa de imposição da financeirização na economia. 

Tivemos uma pequena rusga em um evento da Escola Superior de Guerra. O então diretor, General Oliva Mercadante, montou um evento. Nele, passavam vídeos com vários depoimentos de personalidades, e havia dois convidados para comentar os vídeos: Celso Furtado e eu. No público, diversas autoridades e economistas convidados, entre as quais Maria da Conceição Tavares. 

Confesso que a desproporção não apenas entre eu e Celso Furtado, mas entre eu e alguns convidados era tão grande quanto no dia em que fui apresentar meu CD de choro no Centro Cultural do Banco do Brasil, no Rio, e na plateia estavam Dino Sete Cordas, Marcos Pereira e outros craques. Quase pedi para trocar de lugar. 

O país saía de uma ditadura completamente controladora. As empresas se preocupavam exclusivamente em administrar o caixa e encontrar algum militar maçaneta (o apelido que se dava aos militares que atuavam como lobistas). Eu entendia que havia a necessidade de oxigenar a economia, especialmente abrir espaço para pequenas e médias empresas e relaxar o controle absurdo dos burocratas sobre todos os desvãos da economia. Conceição levantou-se uma hora para defender o papel do setor público e do funcionário público como agentes de modernização, como era do Japão. Brinquei, que a solução era, então, importarmos burocratas japoneses. Ela não gostou do xiste e saiu da sala, mas voltou logo depois. 

Nos anos seguintes, permaneceu como uma voz referencial. Em 2014, participei de um projeto do Brasil 2021 – uma tentativa de acadêmicos de montar um projeto para o país a partir das contribuições das universidades. 

Fomos até o Rio entrevistar Conceição, que já andava recolhida em seu apartamento. Gravei a conversa e estou tentando encontrá-la nos meus arquivos. A mestra continuava lúcida, mas mais contida. A única vez que soltou um palavrão foi contra seu ex-parceiro de livros, José Serra. 

Aliás, o livro que os dois assinaram abriu as portas da academia e da política para Serra, recém-chegado do exílio. Conhecendo-o posteriormente, duvido que tenha tido participação expressiva no livro. A coautoria foi muito mais um gesto de solidariedade da amiga. 

Conceição foi a mais brasileira dos economistas brasileiros, a mais generosa, a mais solidária com os desassistidos e uma pessoa que, mesmo com todos os percalços vividos pelo país, jamais perdeu a fé no futuro. 

LUIS NASSIF ” JORNAL GGN ” ( BRASIL)

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