Bolsonaro mudou o discurso de enfrentamento e adotou o personagem “perseguido”, a vítima que sofre perseguição porque tem missão importante
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Domingo de sol brilhando em São Paulo, e parte da Avenida Paulista estava tomada pelos verde-amarelos da terra plana. Todos respondiam à convocação do ex-presidente e agora inelegível Jair Bolsonaro para uma manifestação “pacífica” e “pela democracia”. No trio elétrico, Michelle Bolsonaro, Tarcísio de Freitas, Romeu Zema, Nikolas Ferreira e vários outros garantiam a diversão e animavam a plateia. Há quatro dias, Bolsonaro ficou calado no depoimento que prestou à PF sobre a armação para dar um golpe e impedir Lula de governar. Mas, no domingo, ele soltou a voz, falou aos corações e mentes verde-amarelos, tirou a armadura e calçou as sandálias da humildade.
A guerra é midiática, estamos em ano eleitoral da maior importância, e produzir belas imagens e acontecimentos de impacto é uma estratégia muito importante nos momentos de conflito e nos momentos de eleição. Não foi uma megamanifestação, com certeza; havia buracos de concentração na Paulista. Mas isso não é o elemento definidor. Na guerra de narrativas, a PM paulista do governador Tarcísio de Freitas – aliado de Bolsonaro que discursou na manifestação – deu a informação, ainda na noite de domingo, de que havia entre 600 mil e 750 mil pessoas na Paulista durante o ato. Com tantos buracos e poucos quarteirões ocupados, nem os defensores da Terra plana iriam acreditar nos números – mas os jornais da grande imprensa reproduziram o dado, pois a fonte é fidedigna e tem autoridade para informar o que informou; se isso é verdade, não importa muito. É um detalhe na guerra de narrativas, e os números serão reproduzidos nas centenas de imagens que mostram a Paulista cheia e que já estão circulando amplamente. Em tempos de domínio da desinformação, é assim que funciona.
O grupo de pesquisa “Monitor do debate político”, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, coordenado por Pablo Ortellado e Márcio Moretto, informou que havia 185 mil pessoas na Avenida Paulista acompanhando o inelegível ex-presidente Jair Bolsonaro. Apesar de bem menor do que os dados divulgados pela PM, é um número expressivo, não nos enganemos. Bolsonaro não é mais presidente, está sendo investigado pela PF sob acusação de ter participação na trama golpista para impedir a posse de Lula, está sendo investigado pela participação na arruaça do 8 de Janeiro em Brasília, fez uma gestão miserável da pandemia de Covid, deixando um legado de 700 mil mortos, arrasou o Estado brasileiro, emporcalhou completamente a economia, e, mesmo assim, reuniu 185 mil pessoas num domingo de sol na Avenida Paulista – e antes que me dirijam comentários irritados, é claro que nada foi espontâneo, as pessoas não aderiram simplesmente, elas foram convocadas e convencidas e financiadas (muitas delas) pelos apoiadores de Bolsonaro. Espontaneidade, sobretudo em algumas questões, é algo cada vez mais raro (se não inexistente), tudo precisa precisa ser cativado e cultivado – e a extrema direita sabe bem como fazer isso.
Na Paulista, Jair Bolsonaro mudou o discurso de enfrentamento e adotou o personagem “perseguido”, a vítima que sofre perseguição porque tem uma missão importante: defender a justiça e a liberdade no Brasil. O discurso e o personagem são mobilizadores e capazes de ganhar eleição, como já ocorreu no passado, depois da facada.
Feito o preâmbulo, quero salientar alguns aspectos que me parecem relevantes sobre o ato na Paulista:
1 O ato foi muito importante para manter as narrativas da pauta da extrema direita em circulação e para manter a base mobilizada. Temas como liberdade do indivíduo, defesa da Pátria, defesa da família, missão… tudo isso ganha muito corpo
2 Apesar do discurso calculadamente humilde, Bolsonaro não está sepultado
3 O bolsonarismo foi bastante abalado, mas não está enterrado, morto e sepultado. Pelo contrário, está ativo e reciclando formas de atuação e reeditando os discursos quando convém
4 A situação jurídica dele não se abala, mas cria-se uma “camada” de instabilidade
5 Coloca o tema da anistia na pauta e no imaginário das pessoas, referindo-se aos “pobres coitados”, com “filhos órfãos de pais vivos”; isso cria uma disposição favorável, não se enganem
6 Reforça o papel de Michelle Bolsonaro, que é presidente do PL Mulher, como nome relevante para mobilizar o eleitorado feminino – que está sendo decisivo nas eleições no Brasil. E aqui vai uma sugestão: pesquisam sobre as “tradwives”
7 Mais de 20 parlamentares da base do Governo Lula estiveram presentes ao ato na Paulista, além de governadores, como o de São Paulo e o de Minas Gerais. Não é pouca coisa.
Por fim, chego ao ponto que quero reforçar nesta conversa a partir do evento de domingo (24/02) na Paulista: o desprezo pelo opositor é perigoso, muito perigoso; seja na política, seja nas paixões, seja na mistura dessas duas coisinhas que parece ser o que dá o tempero do caldo político no Brasil. É perigoso porque revela a arrogância daquele que despreza e implica um olhar turvo e distorcido em relação à complexidade da realidade brasileira e também dos ressentimentos acumulados. E isso importa muito.
Sobre ato, há uma pergunta geral que apareceu em várias análises e diversos comentários que é se o ato “funcionou”. A resposta tem a ver com a questão “funciona para quê?” – não funciona para mudar a situação jurídica de Bolsonaro, mas funciona, e muito, para manter as narrativas da extrema direita fortes e em circulação e a base acesa e empolgada, mobilizada, o que é ouro em ano de eleição local.
Para fechar: o ato de Jair Bolsonaro foi pauta no domingo e é pauta de destaque em todos os jornais e sites da imprensa na manhã desta segunda-feira. Portanto, não deveria mesmo ser tratado com desprezo arrogante.
ELIARA SANTANA ” JORNAL GGN”( BRASIL)
Eliara Santana é uma jornalista brasileira e doutora em Linguística e Língua Portuguesa, com foco em Análise do Discurso. Ela é integrante do Observatório das eleições (INCT IDDC UFMG) e pesquisadora associada CLE/Unicamp. Desenvolve pesquisa sobre desinformação, desinfodemia e letramento midiático no Brasil.