Ao se dizer “guardiã da democracia”, denunciando investidas bolsonaristas, a grande mídia busca álibi para ocultar seu histórico golpista
Os desdobramentos das recentes operações da Polícia Federal (“Vigilância Aproximada” e “Tempus Veritatis”) revelaram aquilo que muitos analistas já indicavam: para se manter no poder, o ex-presidente Jair Bolsonaro (em conluio com a alta cúpula de seu governo) planejava um golpe de Estado, que buscava também o apoio das Forças Armadas.
Diante dos acontecimentos, na grande mídia, em uma das raras oportunidades de uso honesto de um adjetivo político, Bolsonaro foi sumariamente rotulado como “golpista”.
Porém, é importante lembrar que, se a pretensão autoritária bolsonarista naufragou, há oito anos houve outra tentativa de golpe que foi exitosa, quando Dilma Rousseff, democraticamente eleita com mais de 54 milhões de votos, foi retirada da presidência da República (com amplo apoio e participação dos principais grupos de comunicação do país).
Isso significa que, ironicamente, os golpistas de outrora agora chamam outros golpistas de “golpistas”. A diferença, como dito há pouco, é que o golpe que a imprensa hegemônica ajudou a arquitetar foi bem-sucedido.
Evidentemente, seria reducionista creditar o golpe de 2016 ao Grupo Globo, Folha de São Paulo, Estadão, Veja e congêneres, hajam vista as necessidades do imperialismo estadunidense em destituir um governo contrário aos seus interesses econômicos, a oposição raivosa que não aceitou o resultado da eleição de 2014, uma classe média revoltada com a ascensão social do pobre durante os governos petistas e o sistema de justiça corrompido por figuras como Sérgio Moro e Deltan Dallagnol, adeptos à práticas de lawfare (uso da lei contra adversários políticos).
No entanto, o último grande processo de ruptura democrática no Brasil não seria o mesmo sem os editoriais que associavam a corrupção no país exclusivamente ao Partido dos Trabalhadores, as matérias que enalteciam a lesa-pátria Operação Lava Jato e as “convocações”, via noticiários, para que a classe média coxinha fosse às ruas dançar em torno do Pato Amarelo da Fiesp e gritar “Fora Dilma”.
O principal resultado dessa empreitada mórbida, como tragicamente sabemos, foi a chegada de Bolsonaro ao Planalto (o que só foi possível devido à prisão de Lula, outra manobra golpista amplamente apoiada pela grande mídia).
Assim, parece bem nítido que, ao se vender como “guardiã da democracia”, denunciando as investidas bolsonaristas, a grande mídia busca um álibi para capciosamente ocultar seu próprio histórico golpista.
Portanto, diante dessa realidade, é importante que as forças de esquerda denunciem as intenções golpistas de Bolsonaro, mas não se esqueçam de também denunciar os golpistas que produziram o contexto propício para que o inelegível chegasse ao poder.
Se a palavra de ordem do momento é “sem anistia para os golpistas de 2022”, o mesmo deve ser dito para os golpistas de 2016. Em suma, um golpe de Estado malsucedido não pode, em hipótese nenhuma, ocultar um golpe de Estado concretizado.
FRANCISCO FERNANDES LADEIRA ” JORNAL GGN” ( BRASIL)
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Francisco Fernandes Ladeira é doutorando em Geografia pela Unicamp. Autor de catorze livros, entre eles “A ideologia dos noticiários internacionais” (Editora CRV).