Brasil está traçando uma linha divisória – mostrando que sua democracia aguenta muita coisa, mas a partir de certo ponto sabe se defender.
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Ontem foi histórico. Só um (celebremente) desmaiou, mas muitos entraram em pânico – de generais estrelados que se julgam acima do bem e do mal a jovens neonazis que achavam que estava liberado brincar de conspiração, mas agora estão vendo o sol nascer quadrado.
O Brasil está traçando uma importante linha divisória – mostrando que sua limitada democracia aguenta muita coisa, mas a partir de certo ponto sabe se defender.
Três pontos merecem destaque:
(1) A operação chegou a integrantes do alto escalão militar. Houve apreensão e busca em casas de oficiais generais da ativa, como o ex-comandante do Exército e o ex-comandante da Marinha, e também de generais de pijama tão importantes quanto Augusto Heleno e Braga Netto. (Fico imaginando a cara de um velho brucutu como Heleno, ao ver a PF batendo à sua porta.)
O ministro da Defesa, José Múcio, em rara declaração de teor republicano, disse que, aos militares, cabe respeitar as ações da justiça. É relevante o fato de que ele, sempre pronto a agir como procurador dos fardados no Executivo, tenho falado isso. Mostra que a operação esteve bem azeitada no governo.
(2) Valdemar Costa Neto, presidente do PL, também foi alvo da operação. Deveria ser apenas uma busca e apreensão, mas uma feliz coincidência fez com que os policiais encontrassem uma arma não registrada em sua posse – e ele foi preso em flagrante.
Valdemar é veterano integrante da elite política predatória e amoral que há décadas parasita o país. Num mundo ideal, a qualidade da nossa representação subiria e eles seriam varridos dos espaços de poder. Num mundo menos ideal, pelo menos aqueles que aceitaram coonestar um governo de catinga fascista deveriam ser isolados de qualquer aproximação com o mundo político democrático.
Não estamos em nenhum desses mundos – estão aí tantos ex-bolsonaristas refestelados no governo Lula para provar. O mínimo que podemos exigir, então, é que os oportunistas tão sem limites que aceitaram participar das maquinações de um golpe de Estado, com anulação de eleições e tudo, esses devem ser punidos.
Valdemar é um caso óbvio, mas temos também tantos ilustre parlamentares da extrema-direita – Carla Zambelli, Carlos Jordy, Bia Kicis, Chris Tonietto, Mário Frias, Nikolas Ferreira, a lista é grande. A participação deles na agitação antidemocrática é evidente, está documentada. Devem manter seus mandatos? O PL deve continuar existindo como partido?
Nas páginas desse povo, os comentários dos seguidores são significativos. “´É o que acontece por jogar nas quatro linhas”. “Deixamos de agir na hora certa”. Em suma: o PL é um incubadora de golpistas.
E o que fazer com o general Mourão, que ontem mesmo foi à tribuna do Senado conclamar por um golpe militar em represália ao Supremo?
A jogada de Mourão é óbvia. Ele lança uma ameaça para tentar frear a ação da justiça. Mas o que está em questão é exatamente reduzir a efetividade dessa cartada: reduzir o peso da ameaça da intervenção militar sobre a democracia brasileira.
(3) O que já vazou dos documentos em posse da autoridade mostra que caíram por terra todas as justificativas de Bolsonaro. Ele não tem mais como dizer que não estava envolvido na preparação do golpe.
Sua linha de defesa, imagino, vai ser lembrar que o golpe não ocorreu. Afinal (alguns de seus defensores têm dito isso desde o começo do ano passado), planejar um crime não é crime.
Ocorre que não estamos diante de um golpe planejado, mas não desferido, e sim de um golpe malogrado.
E, de resto, um presidente da República, que jurou cumprir a Constituição, não pode planejar um golpe. Ele não é um cidadão comum. Essa alternativa tem que estar vetada, mesmo nas especulações mais fantasiosas, para quem exerce o poder.
Os elementos para a prisão de Bolsonaro e de seus cúmplices estão postos. Se o curso dos acontecimentos mantiver lógica, é uma questão de tempo.
LUIS MIGUEL FELIPE ” JORNAL GGN” ( BRASIL)
Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular).