Os bastidores de dois documentários censurados; fui ameaçado quando descobri que segurança de Bolsonaro em Juiz de Fora fazia espionagem ilegal com Ramagem
Senti o bafo da Abin paralela quando produzi o documentário “Fakeadas – Bolsonaro e a guerra contra o Brasil”. O vídeo foi lançado em dezembro de 2021 e censurado pelo YouTube em agosto de 2022.
O filme trata dos bastidores da fábrica de mentiras instalada no Palácio do Planalto durante o governo de Jair Bolsonaro e que era gerenciada por ativistas ligados a Carlos Bolsonaro.
Em nota, o YouTube deu explicações em termos genéricos sobre a censura: “Nossa política de discurso de ódio proíbe conteúdo que negue, banalize ou minimize eventos históricos violentos, incluindo o esfaqueamento de Jair Bolsonaro.”
O documentário não negava o evento histórico, como tampouco o outro documentário censurado, lançado seis meses antes: “Bolsonaro e Adélio – Uma fakeada no coração do Brasil”.
O filme mostra a inconsistência da narrativa oficial e falhas na investigação, como o desprezo à hipótese do auto atentado, considerado plausível por um dos principais agentes da Polícia Federal que participaram do inquérito.
Esse agente me disse que não havia condições políticas para avançar nessa linha, já que Bolsonaro era presidente na época e pressionava, sutilmente, a ponto de convocar os policiais federais para reunião no Palácio do Alvorada duas vezes, fora da agenda oficial.
O mesmo agente sugeriu que uma entrevista da viúva de Gustavo Bebianno, Renata, que é advogada, poderia gerar a oportunidade para a abertura dessa nova frente de investigação.
Ela foi consultada por um conhecido comum, que me disse que Renata não daria entrevista, e até cogitava deixar o país.
Renata foi ouvida pela PF, em outra circunstância.
Alguns meses antes de morrer – de infarto, segundo laudo do IML –, Bebianno disse em entrevista que havia guardado material sobre Bolsonaro, inclusive fora do Brasil
Um amigo do ex-ministro vazou à imprensa que parte desse material seriam as conversas que Bebianno manteve com Bolsonaro durante um ano e meio por aplicativo no iPhone 10.
Por segurança, segundo esse amigo, Bebianno havia guardado o aparelho nos Estados Unidos, após ser demitido por Bolsonaro.
Renata prestou depoimento à PF a respeito do celular e deu uma versão que não convenceu os policiais. Disse que havia destruído o aparelho.
Também alguns meses antes de morrer, Bebianno contou que Carlos Bolsonaro havia lhe proposto criar uma Abin paralela e sugerido alguns nomes.
O ex-ministro de Bolsonaro, responsável pela Secretaria Geral da Presidência, foi contra, e alguns dias depois, ainda no primeiro mês de governo, foi demitido.
No documentário “Bolsonaro e Adélio – Uma fakeada no coração do Brasil”, revelei o nome de um dos agentes indicados por Carlos Bolsonaro: Marcelo Bormevet, de Juiz de Fora.
Foi ele quem coordenou o esquema de segurança na cidade por ocasião da visita de Bolsonaro, embora não fosse sua atribuição.
Quem me contou foi o presidente da Associação Comercial e Empresarial de Juiz de Fora, Aloisio Vasconcelos.
Bormevet havia feito uma exigência atípica: a contratação de uma empresa de drone, para fazer o registro sem interrupção da caminhada de Bolsonaro pelo calçadão da Halfeld.
A Associação Comercial e Empresarial de Juiz de Fora informou que a empresa que fez a gravação disse não possuir mais as imagens. E elas não foram localizadas em outro arquivo.
Por trás de Bormevet estava o deputado federal Marcelo Álvaro Antônio, atualmente no PL, que organizou aquele ato de campanha de Bolsonaro em Juiz de Fora.
Foi Álvaro Antônio quem indicou Bormevet para se reunir com o presidente da Associação Comercial e organizar o esquema de segurança.
O mesmo agente da PF que lamentou não ter perseguido a linha do auto atentado observou, na época em que apurei o documentário, que Carlos Bolsonaro protegeu Marcelo Álvaro Antônio, quando o então ministro do Turismo esteve no centro do escândalo das candidaturas laranjas do PSL.
Álvaro Antônio também chamou a atenção de policiais federais quando a imprensa noticiou que ele ameaçou dar um soco no publicitário Michel Neves Winter, que trabalhou na campanha de Bolsonaro.
A ameaça ocorreu no contexto de uma discussão acalorada durante o voo Latam 3845, de Brasília (DF) para Belo Horizonte, Minas Gerais, em março de 2019.
Winter é um apreciador de vinhos e, num restaurante, depois de algumas taças, teria dito a um interlocutor que o evento de Juiz de Fora em 6 de setembro de 2018 teria sido armação política.
Procurei Michel Winter, mas ele não respondeu ao meu pedido de entrevista.
Ao investigar o segundo documentário censurado pelo YouTube, o “Fakeadas – Bolsonaro e a guerra contra o Brasil”, descobri que o segundo policial levado por Carlos Bolsonaro para dentro do Palácio do Planalto é Luiz Felipe Barros Félix.
Como Bormevet, Barros Felix é agente da Polícia Federal, mas não era lotado em Juiz de Fora, fazia parte do staff permanente colocado pela PF à disposição de Bolsonaro durante a campanha, a que todos os candidatos têm direito.
Naquele 6 de setembro de 2018, Bolsonaro passou por uma multidão com a mão apoiada no ombro de Barros Felix e um vídeo mostra o agente apalpando o abdômen de Bolsonaro (como um soquinho) depois da ação de Adélio.
Fãs de Bolsonaro mostraram nas redes sociais o trecho do vídeo como suposta prova de que os seguranças teriam participado de uma conspiração para matar o candidato.
A própria família Bolsonaro defendeu Barros Felix, com postagens que diziam que ele era de confiança.
Alguns meses depois da posse de Bolsonaro, Barros Felix foi nomeado para ocupar um cargo de confiança na Abin, justamente depois da posse de Alexandre Ramagem como diretor-geral.
Em março de 2021, a imprensa noticiou que Barros Felix havia sido denunciado à Polícia Civil do Distrito Federal por espionar o personal trainer Allan Lucena, sócio de Jair Renan Bolsonaro.
A notícia dava conta de que Barros Felix estava lotado na Abin, mas não informava que ele foi um dos principais seguranças de Jair Bolsonaro em Juiz de Fora. O documentário censurado pelo YouTube dá essa informação.
O filme também narra que procurei Allan Lucena. Na época, a Polícia Federal o espionava em razão de um um caso que apresenta indícios de corrupção e tráfico de influência, envolve Jair Renan, e esbarra no próprio Bolsonaro.
A Abin não participava da investigação da PF, até porque é ilegal, e sua ação, fora do controle judiciário, só serviria para atender a interesses políticos da família Bolsonaro. Não era, efetivamente, uma ação a serviço do Estado.
Segundo Allan Lucena relatou no 3o. Distrito de Polícia de Brasília, ele viu na garagem de seu condomínio o homem de cabelos pretos, com entradas acentuadas, nariz e queixo finos que havia notado seguindo-o em outros lugares.
O homem de cabelos pretos estaria com celular na mão, e aparentemente o filmava. Allan Lucena pediu ao porteiro que fechasse a garagem, e chamou a Polícia Militar.
Um sargento que atendeu à ocorrência pediu a identificação do homem de cabelos pretos que estava no carro.
Ele forneceu a identidade, e se descobriu que era Luiz Felipe Barros Felix, que contou que era policial federal e estava lotado no Palácio do Planalto.
Talvez Barros Felix tenha querido dar uma carteirada, e de certa forma, se esta foi sua intenção, funcionou. Ele foi liberado.
Já Lucena acompanhou os PMs até o 3o. Distrito e registrou boletim de ocorrência por ameaça. Três dias depois, no entanto, ele retirou a queixa, ao renunciar ao direito de representar contra Barros Felix.
Conversei com o delegado que atendeu à ocorrência no 3o. Distrito, e ele confirmou que Barros Felix era da Abin, e sugeriu que houve pressão. Temendo represália, não gravou entrevista.
Procurei Lucena e o entrevistei por telefone. Ele tentou proteger Jair Renan e não explicou por que não representou contra Barros Felix, nem admitiu que ele fosse da Abin.
Horas depois, recebo em meu celular mensagem ameaçadora, com prints de postagens de membros da minha família, bem como cópia de registro da empresa de comunicação que tenho. As ameaças partiram do celular de Allan Lucena.
Procurei o 5o. Distrito da Polícia Civil do Distrito Federal. A escrivã que me atendeu não queria fazer o registro, mas depois, diante da minha insistência e após ser atendido por um delegado, ela fez o BO.
Representei contra Allan Lucena pelo crime de ameaça, mas nunca mais fui chamado para depor, e já se passaram mais de dois anos.
Para mim, os prints com imagens dos meus familiares eram uma forma de me intimidar, e não creio que a iniciativa tenha sido de Allan Lucena, que teve um comportamento cordial durante o telefonema.
De qualquer forma, para chegar aos autores da ameaça, é preciso investigar Allan Lucena. O caso exala o mau cheiro da Abin paralela.
Na semana passada, Barros Felix e Bormevet foram afastados de suas funções públicas, por participarem de investigações ilegais.
A CNN procurou Allan Lucena. Questionado sobre a espionagem ilegal da Abin, disse: “Sei bem disso. Senti na pele.” Por que, então, renunciou ao direito de representar?
É uma pena que o YouTube tenha censurado o documentário, que contava toda essa história. Mais do que uma pena, é revoltante.
É altamente positivo, portanto, que o caso da Abin paralela venha à tona através de investigação da PF, sob jurisdição do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal.
Vergonhoso é a imprensa corporativa e mesmo alguns veículos que se dizem independentes ignorarem que a Abin paralela nasceu no evento de Juiz de Fora em 6 de setembro de 2018.
É preciso investigar a fundo os dois eventos (a criação da Abin paralela e o caso Adélio-Bolsonaro), e assim contar a verdadeira história da ascensão da extrema direita no Brasil. Sem teoria da conspiração. Sem preconceito. E, sobretudo, sem medo ou rabo preso.
JOAQUIM DE CARVALHO ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)