Os recessos do Legislativo e do Judiciário acabam, oficialmente, dia 1º de fevereiro. Já não era sem tempo. O noticiário político deste ano eleitoral de 2024 anda insosso. Metade do Ministério estava com os titulares de férias seguindo as férias escolares da família. Se não fossem as cerimônias, na segunda-feira, 8 de janeiro de 2024, no aniversário do frustrado golpe contra o Estado Democrático de Direito, em 8 de janeiro de 2023, seria possível dizer que o campo político atravessara janeiro em tempo de estio.
O primeiro mês da folhinha do calendário está indo embora sem sair de 2023 ou até mesmo voltar no tempo. O país ainda assiste atônito à falta de punição dos cabeças, mentores e financiadores das jornadas de arruaças golpistas de dezembro de 2022-janeiro de 2023. Só agora, com a posse do novo Procurador Geral da República, Paulo Gonet, a PGR não se sente tolhida, como nos tempos de Augusto Aras, para cumprir seu papel constitucional.
As distorções implementadas na gestão Bolsonaro, que utilizou a máquina do Estado como se todos fossem seus serviçais pessoais (o escândalo das diversas tentativas de liberação, pela Alfândega e a Receita Federal do Brasil, das joias sauditas, escamoteadas para serem entregues à ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro e apanhadas numa fiscalização de rotina, está aí mesmo para provar), fizeram o uso do cachimbo entortar de vez a boca.
O cumprimento dos mandados de busca e apreensão pela Polícia Federal contra o deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ), que quando foi chefe da Abin espionou largamente políticos e altas autoridades que poderiam fazer acusações contra amigos e familiares de Jair Bolsonaro, veio a confirmar que os aparatos de investigação do Estado brasileiro foram usados para acobertar deslizes da família Bolsonaro e neutralizar, com informações prévias, a ação da PF e outros órgãos de investigação e persecução penal, nos moldes da máfia e das milícias, a mais perfeita tradução brasileira de um dos braços do crime organizado.
Delegado da Polícia Federal, Ramagem, que fora indicado por Jair Bolsonaro a disputar a prefeitura do Rio de Janeiro pelo PL, tão logo surgiram, em outubro, notícias de que a PF investigava ações dos agentes da Abin, ficou íntimo e ganhou a confiança da família Bolsonaro, após o atentado a faca na campanha eleitoral de 2018, em Juiz de Fora-MG. Ele passou a chefiar a equipe de proteção do candidato que, eleito, tinha grandes planos para Alexandre Ramagem.
Bolsonaro cantou a pedra
Isto ficou claro na fatídica reunião de 22 de abril de 2020, quando o então presidente, em vez de discutir com o Ministério ações contra a Covid-19, disparou palavrões, com ameaças ao então ministro da Justiça e Segurança Pública. Sérgio Moro ouviu, estupefato, o presidente espinafrar os sistemas de segurança de informação do governo (para que ele e seu entorno não fossem surpreendidos) e dizer que “trocaria o superintendente da PF (no Rio), o chefe da Polícia Federal e até o ministro”, mas não deixaria que “perseguissem, para foder, só de sacanagem, meus amigos e familiares”. No dia seguinte, Moro pediu demissão e saiu atirando, criando forte abalo político no governo.
Passando das palavras à ação, Jair Bolsonaro tentou emplacar Alexandre Ramagem, que chefiava a Agência Brasileira de Informação (Abin) desde julho de 2019, como chefe da Polícia Federal em 30 de abril de 2020. Para tanto exonerou Ramagem da chefia da Abin. Entretanto, uma decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, barrou a nomeação, por “desvio de finalidade”.
Os fatos que vieram à tona esta semana com a operação “Última Milha”, que, como quase todas as operações da PF, usa um nome sugestivo para indicar o tema das investigações. No caso, o uso abusivo, por Ramagem e outros servidores da Abin, da prática de “arapongagem” (a espionagem de forma ilegal, sem mandado judicial) dos instrumentos (o sistema de identificação telefônica israelense “First Mille”, comprado no governo Temer) e profissionais do Estado para espionar altos funcionários nos três Poderes, tidos como adversários ou obstáculos aos desejos inconfessáveis de Bolsonaro, seus amigos e familiares.
À frente da Abin, de julho de 2019 até abril de 2022, quando desincompatibilizou-se do cargo público para disputar uma vaga de deputado federal pelo PL do Rio de Janeiro (com o veto do STF, Bolsonaro anulou a demissão e reconduziu Ramagem à Abin), o delegado da Polícia Federal usou e abusou da ferramenta comprada pela Abin, sem licitação (no final do governo Temer, que ficara traumatizado ao ser gravado clandestinamente por Joesley Batista numa conversa no Palácio do Jaburu, em março de 2017. A Constituição garante a ”ïnviolabilidade” das comunicações telefônicas e de correspondência por parte do cidadão, salvo autorização expressa da Justiça.
As investigações indicam que foram espionados 33 mil pessoas durante a gestão de Ramagem na Abin. Entre os alvos prioritários estavam os ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, do STF, e o ex-deputado Rodrigo Maia, então presidente da Câmara dos Deputados. O uso do cachimbo se estendeu em arapongagem para indicar quem eram os interlocutores do novo presidente da Câmara, o que irritou profundamente Arthur Lira (PL-AL). Outro alvo de escuta, neste caso, gravíssimo, foi o então governador do Ceará e atual ministro da Educação, Camilo Santana (PT).
Vale recordar que o ex-presidente apoiou o motim das forças policiais do Ceará em fevereiro de 2020, dizendo que eram reivindicações justas. O modelo de sedição (que causou mais de duas centenas de mortes em duas semanas no Ceará) poderia se espalhar em 2023 e teria sido um projeto-piloto se a GLO (Garantia da Lei e da Ordem) fosse declarada em 8 de janeiro de 2023. Com acionamento das forças armadas. Dois fatos evitaram o rastilho de pólvora: 1 -em 2020 a ameaça da Covid-19, declarada pandemia em março; 2- a intervenção, determinada pelo STF, na Secretaria de Segurança do Distrito Federal na noite de 8 de janeiro de 2023, abortou qualquer iniciativa regional.
Numa atuação de contraespionagem, a Abin paralela também teria atuado para anular provas em favor de dois filhos do presidente. O primeiro foi o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), levantando dossiês contra promotores que investigaram a prática de “rachadinha” com o salário de apaniguados em seu gabinete quando era deputado estadual na Alerj. Mais recentemente, a cortina de fumaça de Ramagem e companhia foi para desmoralizar os acusadores de prática de tráfico de influência no governo do filho 04, Jair Renan Bolsonaro.
Os Três Poderes de Dino
Janeiro só não foi mais insosso porque um dos personagens mais atuantes nestes 13 meses do governo Lula III, o ministro Flávio Dino, da Justiça e Segurança Pública, senador eleito pelo Maranhão e ministro aprovado pelo Senado para ocupar a vaga no Supremo Tribunal Federal, vaga desde outubro com a aposentadoria da ex-presidente do STF, Rosa Weber, exerceu literalmente a defesa dos Três Poderes da República e da Constituição. Na semana em que iniciou a transição do Ministério para o novo ministro Ricardo Lewandowski, que se aposentara do STF em abril do ano passado, Flávio Dino viu a Polícia Federal deflagrar uma operação contra Ramagem e deitou falação sobre outros bolsonaristas e inimigos da Constituição e do Estado Democrático de Direito, que se amoitam atrás das ramagens.
Antes de assumir oficialmente uma das 11 vagas do STF, o órgão máximo do Poder Judiciário, em março, Dino vai exercer um de seus superpoderes no Legislativo, onde cumprirá, a partir de 1 de fevereiro, 21 dias de exercício do mandato de senador eleito pelo Maranhão, em 2022. Percorrido o périplo constitucional, no qual deverá ter muitos embates com alguns dos 37 senadores que votaram contra sua indicação para o Supremo Tribunal Federal, tomará posse, enfim, como um dos guardiões da Constituição.
Como os ministros do STF ‘falam’ essencialmente nos autos (ou nos votos orais, transmitidos pela TV Justiça), o país vai ficar órfão das intervenções diárias, ferinas e precisas, de Flávio Dino contra os que insistem em agredir os pilares democráticos. Mais sentido deverá ficar o governo Lula neste ano de embates eleitorais no âmbito municipal – onde mora o cidadão (estado e União não dão registro de CEP) – com a perda de um gladiador de peso, literalmente e em substância política. Vale lembrar que o deputado André Janones (Avante–MG), que se aliou a Lula na campanha para batalhas nas redes sociais, ficou desgastado nas mesmas redes que vazaram áudio no qual avisa a colaboradores que os contratará em regime de “rachadinha” (devolução de parte do dinheiro) para cobrir despesas da campanha eleitoral. É exatamente o que fez Flávio Bolsonaro na Alerj.
Parece estranho, mas poucas vozes se levantaram na Câmara e no Senado para condenar Janones. Sinal de que há muitos telhados de vidro nas duas casas legislativas. Não bastassem as gordas verbas do Orçamento (ainda secreto) e o fundo eleitoral de R$ 4,9 bilhões para 2024, os deputados e senadores que abusam das verbas de representação (com diárias, passagens aéreas e cotas de combustível para os carros em Brasília e nos redutos eleitorais estaduais) ainda se queixaram do corte de R$ 5,6 bilhões feito pelo presidente Lula nas verbas para emendas parlamentares no Orçamento Geral da União 2024. Os deputados e senadores querem dizer ao governo eleito quanto, quando e onde deve alocar as verbas da União. Francamente. A função do parlamento é fiscalizar o cumprimento do OGU e impedir excesso de gastos do Executivo que venham a exigir impostos para cobri-los. Mas não impor calendário ao Executivo para a liberação de verbas para os seus projetos eleitoreiros.
Por tudo isso, quando o Congresso voltar a se reunir na quinta-feira, o governo precisa estar preparado para enfrentar um rolo compressor nas duas casas. Os representantes da oposição, municiados pelos contatos com as bases, voltam revigorados para enfrentar o governo, que parece ainda não ter formado uma tropa de choque para enfrentar a oposição e, sobretudo, garantir apoio às propostas do governo. Dino poderá se divertir no Senado. Mas as frentes de batalha são variadas e longas nas duas casas do Congresso.
Há muitos temas em discussão, a começar pelo desenho da prorrogação das ‘desonerações de obrigações trabalhistas a 17 setores, e a nova etapa – e a mais polêmica – da Reforma Tributária, que é a questão da tributação sobre a renda e o patrimônio. O presidente Lula já delimitou o terreno, prometendo isenção de IR para quem ganha até dois salários-mínimos (R$ 2.824,00). Mas o buraco está bem mais em cima.
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES “JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)