No futebol, o mês de janeiro é insosso no noticiário. Com as férias dos jogadores na semana anterior ao Natal, é tempo de especulações no chamado “mercado da bola”. Há mais “chutes” ao alvo do que a gol em uma partida de 90 minutos, com cinco de prorrogação. Mas a maioria é de bola fora. Muita espuma feita pelos empresários e agentes de jogadores (ambos com participação nos negócios), uma malandragem para tentar favorecer este ou aquele jogador numa renovação de contrato. Vou citar dois casos no Flamengo: Bruno Henrique foi “sondado” para o Palmeiras e o Grêmio. Ao fim e ao cabo renovou por três anos com o Flamengo. Com pedida bem mais baixa. Agora a bola da vez (bem mais murcha) está com Gabigol. Que precisa provar em campo que merece receber o que pede. Para mim, os clubes-empresas, ou que querem chegar lá, deveriam estabelecer metas como fazem as empresas com executivos: cumpriu, tem prêmio; do contrário, pode ter até desconto por déficit de desempenho.
No campo político-administrativo, se o golpe militar de 1964 não tivesse alterado a posse dos presidentes da República de 31 de janeiro (meu aniversário) para março (15), e a Constituição de 1988 fixado a posse em 1 de janeiro, estaríamos com férias gerais do Executivo, Judiciário e Legislativo. Mas, houve o frustrado golpe de 8 de janeiro de 2023. Os bolsonaristas convocados a Brasília para gerar o caos com a invasão e depredação das sedes dos Três Poderes sonhavam com o uso da Garantia da Lei e da Ordem (GLO), para dar tutela às Forças Armadas, recusada por Lula, que interveio na segurança do Distrito Federal, provocou uma parada no tempo.
Como no Dia da Marmota (que virou um filme nos Estados Unidos), a comemoração do evento de sobrevivência inabalável do Estado Democrático de Direito, em 8 de janeiro de 2024, fez parecer que o país não estava de férias. O Judiciário e o Executivo estavam em peso, mas o Legislativo foi representado somente pelo presidente do Senado e do Congresso, senador, Rodrigo Pachedo (PSD-MG). O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que estava de férias nas Alagoas, alegou uma doença na família para não aparecer nas fotos oficiais. Enquanto isso, no particular, foi visitar o ex-presidente Jair Bolsonaro, que estava hospedado na pousada do ex-ministro do Turismo, dublê de sanfoneiro, Gilson Machado. Quase todos os deputados e senadores, assim como governadores da oposição, usaram as “férias com as famílias” como álibi para não sair na foto oficial. Afinal, 2024 é ano de eleições e é preciso marcar posição. Para já e até 2026.
A intenção de marcar posição e criar embaraços para o governo Lula, em especial, para o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que, como responsável pelo cofre de um governo eleito para inverter a pauta social do governo Bolsonaro, tem adotado medidas para buscar recursos de isenções e benefícios dados às grandes empresas e aos que moram nas coberturas do andar de cima, para retomar programas sociais abandonados de 2019 a 2022. No desespero para reverter os números das pesquisas eleitorais que davam a liderança a Lula desde abril, Bolsonaro fez o diabo, com ajuda do ministro da Economia, Paulo Guedes, para recuperar a popularidade.
Com a explosão dos preços dos combustíveis após a invasão da Ucrânia pela Rússia, no fim de fevereiro de 2022 (missão na qual Bolsonaro falhou ao alardear, em visita a Vladimir Putin, no começo daquele mês, que ele tinha aceitado o conselho da busca da paz), foi trocando os presidentes da Petrobras que apenas cumpriam os parâmetros da PPI (Paridade de Preços Internacionais) aprovada no fim de 2017, e que eram obrigações a serem seguidas pela estatal, de ajuste dos preços domésticos pelos do mercado internacional, com a taxa do dólar (tudo fazia parte da política de abertura do mercado e de enfraquecimento da Petrobras, visando a sua privatização).
No fim de junho, com a inflação em dois dígitos e a impotência do Banco Central em debelar as chamas inflacionárias com a alta de juros, bateu o desespero na campanha. Como a arrecadação estava explodindo (pela alta geral da inflação puxada pelos combustíveis e alimentos), Paulo Guedes rasgou os ditames liberais de Milton Friedman, da Escola de Chicago (de onde saiu PhD, no começo dos anos 80) e fez violenta intervenção nos preços, cortando (com apoio do Congresso bolsonarista que aprovou um pacote emergencial) os impostos federais e estaduais (ICMS) dos combustíveis, à frente a gasolina e o etanol, da energia elétrica e das comunicações de julho a 31 de dezembro de 2022. Reduziu impostos de importação de bens de luxo do andar de cima, como o jet sky. Criou mesadas para taxistas e caminhoneiros. A inflação caiu de 12,7% em abril a 5,79% em dezembro, mas o Banco Central não cumpriu o teto da meta de 5,75%. Deu Lula, que pena até hoje para consertar as intervenções eleitoreiras do antecessor, incluindo o calote de R$ 97 bilhões nos precatórios em dezembro de 2021, para criar folga de gastos no orçamento do ano eleitoral de 2022 (a escalada da inflação ajudou nos cortes).
O caso das igrejas evangélicas
E, para reforçar o apoio dos pastores e obreiros das igrejas evangélicas (os modernos currais eleitorais deste terceiro milênios, no qual os antigos “coronéis” dos rincões foram substituídos por “bispos” e “missionários”), Bolsonaro usou novamente os préstimos do dócil secretário da Receita Federal do Brasil, Júlio Cesar Vieira Gomes, para editar uma portaria (sem consulta ao jurídico da Receita Federal – que engloba o Fisco e a Previdência Social) que libera pastores (vale dizer, os milionários comandantes das seitas) do recolhimento do INSS sobre os trabalhos de missionários e obreiros. Os pastores, que seguem as ordens (e as participações de algumas igrejas que funcionam como se fossem franquias) dos chefes pregando o ”reino dos céus”, logo percebem que não terão o amparo nem da Providência Divina nem da Previdência Social, por falta de tempo e de valores de contribuição, embolsados pela cúpula. Ao corrigir o abuso, suspendendo a portaria que deixava os auditores fiscais em risco de prevaricação (descumprir a Lei, pois Portaria não revoga Lei nem Instrução Normativa), o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, ainda foi bondoso. Se tivesse de voltar atrás, anulando a portaria eleitoreira, haveria cobranças retroativas até 2017. De qualquer forma, as igrejas que deviam mais de R$ 2 bilhões e tiveram multas perdoadas por Bolsonaro (num claro toma lá – dá cá), ganharam agora R$ 300 milhões.
Mas os líderes evangélicos que acabaram ganhando cadeiras no Senado e na Câmara, mais uma vez iludindo os fiéis (e tentando ludibriar os demais contribuintes que cumprem com suas obrigações fiscais e trabalhistas), vieram acusar o ministro Haddad e o governo Lula de perseguição religiosa. Pergunte aos fiéis dizimistas (costureiras, bombeiros, porteiros, enfermeiras etc) se, além dos impostos sobre os bens de consumo (a Reforma Tributária aliviará essa parte), eles não pagam IR na fonte? Por que um peso e duas medidas [dois pesos sempre terão duas medidas, até iguais]. Seria o mesmo que os órgãos de classe dos médicos e dos dentistas, quando um de seus pares cair na malha fina da Receita para esclarecer o lançamento de deduções de despesas médicas no IRPF de um dos pacientes, saírem acusando a Receita e o ministro que a tem sob sua guarda de perseguição aos médicos e dentistas (o comparecimento à unidade de RFB pode até esclarecer – não raro – que o lançamento foi indevido da parte do cliente). O fato é que a tal portaria eleitoreira foi baixada por Júlio Cesar Vieira Gomes. Auditor fiscal da RFB, Gomes foi nomeado em dezembro de 2021 em substituição ao íntegro José Barroso Tostes Neto, que se recusou a facilitar a liberação das joias sauditas destinadas à então primeira-dama, Michele Bolsonaro. Trazidas, sem declaração, na mochila de um assessor do então ministro de Minas e Energia, almirante Bento Albuquerque, as joias avaliadas em R$ 16,5 milhões foram apreendidas pela Alfândega do Aeroporto de Guarulhos (SP), em outubro de 2021. Como se vê, a prevaricação era geral. Haddad ainda foi condescendente.
Carga tributária X justiça fiscal
Parte do que está acontecendo de objeções da Câmara e do Senado a aprovar o pacote de medidas de Fernando Haddad para reforço da carga fiscal (a maior parte recuperação dos impostos reduzidos eleitoralmente por Bolsonaro, que, se reeleito, estaria cuidando da recomposição, com Paulo Guedes, desde novembro de 2022), é a cortina de fumaça ou primeira bateria de resistência ao segundo e mais importante capítulo da Reforma Tributária: a reforma do Imposto de Renda das pessoas físicas e das grandes empresas. Nem falo de outro vespeiro: a aplicação de impostos progressivos sobre renda e patrimônio. O primeiro embate veio na reação (tardia, é verdade) de Haddad barrar a prorrogação da desoneração trabalhista de 17 setores, que acabaria em 31 de dezembro de 2023. O Congresso estendeu a medida até 2027. Haddad usou uma Medida Provisória para tentar criar uma racional redução progressiva do benefício. O importante é que abriu-se diálogo para solução de consenso.
Fernando Haddad prometeu “colocar o pobre no Orçamento da União” e o está fazendo. Entretanto, para ampliar os gastos do Orçamento com o andar de baixo, está buscando acabar com os favorecimentos ao andar de cima. Tudo que foi feito até agora está mais para remendar buracos e isenções abusivas e restabelecer a isonomia tributária. Mas as vozes da oposição simplificam o discurso dizendo que ”Lula está gastando muito e criando seis impostos”. O exame dos tais impostos isenta o povão e só atinge os ricos e os super-ricos.
Estudo da Fundação Getúlio Vargas mostrou, esta semana, que as 15 mil pessoas mais ricas do Brasil praticamente dobraram o valor de seus rendimentos mensais entre 2017 e 2022. Eles representam 0,01% da população, mas sua renda cresceu em ritmo três vezes maior do que o ritmo médio de 95% da nação. Em boa parte pelas altas taxas de juros e a isenções que havia aos fundos exclusivos de bilionários no país e aos fundos para empresas “off-shores” de milionários em paraísos fiscais no exterior. Os primeiros vão pagar IR semestral, como os cotistas de fundos de renda fixa e ações, o que pode reforçar a arrecadação em R$ 11 bilhões este ano, estima o Itaú, que prevê mais R$ 21 bilhões sobre o estoque. Já os fundos “off-shores”podem recolher R$ 7 bilhões. Os sites de apostas podem recolher de R$ 2 bilhões a R$ 3 bilhões (depende do “GPS” da Receita para flagrar evasão de divisas e elisão fiscal destas máfias registradas em paraísos fiscais).
Mas o grosso da arrecadação que o governo pretende ampliar em 2024 vem de agilidade nas cobranças sobre grandes empresas e bancos no Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais). Com o retorno do voto de qualidade pró Tesouro, em caso de empate, a Fazenda estimava recuperar R$ 56 bilhões, mas o Itaú estima R$ 10 bilhões. O efeito retardado das desonerações de impostos feitas eleitoralmente por Bolsonaro em 2022 pode ser resumido na estimativa de que a reoneração dos impostos (ainda que em bases mais baixas para estados e a União) no óleo diesel aumenta a receita em R$ 18 bilhões. O diesel é o combustível e o produto mais vendido no país, com influência no custo dos fretes de mercadorias (alimentos perecíveis) e transporte urbano.
Entretanto, o maior benefício de redução de impostos, alinhado à estratégia de Bolsonaro de reforçar sua votação junto à classe média alta e aos ricos (além do fato de que a gasolina segue tendo o maior peso na inflação), coube justamente à gasolina e ao etanol. A reoneração dos impostos sobre os dois combustíveis poderá reforçar em R$ 39 bilhões a arrecadação, calcula o Itaú. Ou seja, mais do que o dobro da volta do imposto ao diesel. Qual a mágica do governo em usar o Orçamento e os instrumentos estatais em favor dos mais pobres (o GLP teve redução de preços em 2023)? Simples: a Petrobras, que estava cerceada pelo PPI, provocando aumentos sucessivos nos preços e nas importações de combustíveis, enquanto suas refinarias (postas à venda) estavam ociosas, passou a cumprir a promessa de campanha de Lula, de ”abrasileirar os preços dos combustíveis”, com uso mais intenso do óleo mais leve do pré-sal em suas refinarias que operaram com mais de 95% da capacidade. Além da queda das importações, preços mais estáveis, mais produção, emprego e renda no mercado comandado pela Petrobras.
Na falta de argumentos, os defensores da desnacionalização do petróleo estão se intrincheirando para atacar a expansão da Refinaria do Nordeste (Abreu e Lima, em Ipojuca-PE), justamente a que vai produzir mais diesel no país, o calcanhar de Aquiles nos combustíveis do Brasil. Questão para outra coluna.
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)