Em 1975, inconformado pela descaracterização do samba, Paulinho da Viola lançou a singela música “Argumento”. Os curtos e contundentes versos faziam um chamado à volta dos instrumentos clássicos do principal ritmo brasileiro, como “um cavaco, um pandeiro e um tamborim”, e arrematavam com um sábio conselho que se presta a tudo na vida: “Faça como um velho marinheiro que durante o nevoeiro leva o barco divagar”. Neste complicado ano de transição, da volta do país ao trilho democrático, o presidente Lula, velho marinheiro em 3º mandato, deve ter se lembrado de Paulinho da Viola para levar o barco do Brasil a um porto seguro, em meio ao mar revolto e às ameaças no caminho.
Lula, que sempre foi e continua sendo um líder de aceitação nacional muito maior do que a do Partido dos Trabalhadores, percebeu, já na belicosa campanha eleitoral de 2022, na qual o governo Bolsonaro exorbitou como nunca do uso da máquina oficial para turbinar a campanha da reeleição, que o mar pedia um timão firme e o convencimento da galera a remar junto com o timoneiro. Mesmo com minoria no Congresso, cuja forte fração conservadora decorrente da eleição de 2018 foi ampliada em 2022, e o governo composto na adesão dos partidos da esquerda até o centro democrático, Lula conseguiu atravessar, com segurança, apesar de sustos no percurso, até o fim de 2023. O teste mais duro foi a tentativa de golpe no 8 de janeiro, com ataque simultâneo dos bolsonaristas às sedes dos Três Poderes. O tiro saiu pela culatra. Houve a união dos comandos dos Três Poderes e o apoio de todos os governadores ao Estado Democrático de Direito, com respeito à Constituição Federal.
Entretanto, a dicotomia entre um líder forte e um governo fraco, pela ausência de uma base política forte, deixa os governos, à direita ou à esquerda, sob pressões das diversas bancadas do Congresso, com senadores e deputados federais barganhando votos em troca de vantagens para seus redutos eleitorais. O fenômeno brasileiro do multipartidarismo, que esfacela o poder do Executivo e que já atingiu o governo Bolsonaro e outros momentos da história republicana (os governos Jânio Quadros, João Goulart e Fernando Collor são os maiores exemplos), se acentuou muito. Sobretudo depois que o desenho parlamentarista da Constituição de 1988 não foi fechado, mas deixou aberta a porta para o fracionamento partidário. Uma das aberrações é a progressiva transformação dos currais eleitorais das igrejas evangélicas e pentecostais para a função de partidos políticos (como o Republicanos, na Igreja Universal do Reino de Deus). Isso só aumenta os custos da governabilidade.
Os custos da governabilidade
E o Congresso se aproveita disso. Em vez de avançar nas cláusulas de barreiras, para restringir a presença, na Câmara e no Senado, de representantes de partidos que não cumprem coeficientes eleitorais mínimos, os políticos se recusam a dar tiros nos próprios pés e impõem ao Executivo, fragilizado no Congresso, derrotas que reduzem o poder relativo do Executivo sobre a peça orçamentária. O final do ano de 2023 foi exemplar, coroando as sucessivas chantagens das duas casas contra o Executivo. A votação da Lei de Diretrizes Orçamentárias, que estabelece as linhas mestras do Orçamento Geral da União (OGU) para o ano seguinte, tem um ritual. O primeiro esboço deve ser enviado pelo Executivo ao Legislativo em abril. Depois, a proposta tem de ser apresentada ao Congresso até 31 de agosto. E, para que as leis possam valer no ano seguinte, tudo tem de ser aprovado antes do recesso do Parlamento, em 22 de dezembro. Cabe lembrar que o Parlamento surgiu na Inglaterra em 1230, quando os Lordes (senhores de terras no período feudal) se reuniram para coibir a sanha do Rei João Sem Terra de criar impostos a bel prazer para custear os gastos sem fim da Coroa. Até hoje, a Câmara dos Lordes define a aprovação dos gastos da Coroa do Reino Unido e o orçamento do governo exercido pelo primeiro-ministro no regime parlamentarista.
Pois aqui a Câmara e o Senado deixaram para a última hora as votações mais importantes para fechar os números do OGU de 2024. Uma chantagem esticada até o último momento, no qual só o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, parecia manter o sangue frio. O Orçamento foi aprovado simbolicamente, por votação à distância, via celular! Certamente, até o fim do primeiro bimestre, sofrerá ajustes impostos pela realidade, mas os deputados e senadores atacaram, qual hienas, a carcaça do Orçamento. Enquanto cortavam R$ 6 bilhões de verbas para investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC3), limitadas em R$ 55,5 bilhões no ano que vem, trataram de reservar R$ 50 bilhões para emendas próprias de senadores e deputados federais, na Comissão Mista de Orçamento, com aumento de R$ 12,36 bilhões frente aos R$ 37,64 bilhões propostos pelo governo federal. E todos querem tirar fotos, qual papagaios-de-pirata, nas placas de obras do PAC.
Se a isso forem somados os R$ 4,96 bilhões previstos para o fundo eleitoral em 2024, ano de eleições municipais, percebe-se por que os políticos também evitam votar a proposta de fim da reeleição (sempre a partir da eleição seguinte). A nova proposta de fim da reeleição, adotada em 1997, foi ventilada pelo presidente do Senado (e do Congresso), Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Mesmo com o alcance reduzido do pleito municipal, foi mantido o teto da última eleição majoritária de 2022 (que envolvia campanhas para presidente e vice, senadores e deputados federais e ainda governadores e deputados estaduais). O aumento é 96% superior ao da campanha de 2020, para prefeitos e vereadores. Pacheco também manifestou seu desagrado, defendendo a manutenção do patamar municipal anterior. Mas parece ser apenas para marcar posição e sair bem na foto, pois nenhum político se dispõe a abrir mão de sua influência nas bases eleitorais, que nascem nos municípios.
A ressalva dos evangélicos
Nota curiosa – que a mim não surpreendeu – foi a posição do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), que votou contra a regulamentação e taxação dos sites de apostas esportivas e dos cassinos virtuais, com as quais o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, pretende fechar a evasão fiscal e de divisas por centenas de operadoras registradas em paraísos fiscais, e reforçar a arrecadação em mais de R$ 13 bilhões em 2024. Um dos representantes da Assembleia de Deus, a maior agremiação evangélica, também fracionada, o deputado disse ser contra a taxação por ser contra o jogo, por princípio.
Isso me lembra os anos 60, quando as peladas de futebol, após as 17 horas, quando os trabalhadores rurais do entorno do sítio de meu pai, em Águas Claras, que depois viria a ser um bairro no emancipado (de Petrópolis) município de São José do Vale do Rio Preto (RJ), começavam a sofrer “desfalques” de jogadores. Um deles, que era muito bom de bola, me confessou que o motivo era ter “virado irmão”. Lá se instalou uma igreja da Assembleia de Deus e as moças (que então não cortavam o cabelo, usavam vestidos compridos e não faziam maquiagem), devidamente instruídas pelos pastores e as famílias, só aceitavam namorar com irmãos.
E a recomendação dos pastores, segundo ele, era proibir os fiéis de beber, de ir ao cinema (havia um na vila de São José), de ver televisão e de jogar (pois o fiel deveria dar prioridade ao dízimo). As igrejas se fracionaram (a maioria das novas seitas tem origem na Assembleia de Deus), aceitam vestidos e cabelos mais curtos, além de maquiagem, e recorrem habitualmente a horários pagos nas TVs para catequisar novos fiéis. Mas seguem firmes na reserva dos salários e rendimentos para o pagamento sagrado do dízimo mensal.
Um olhar para 2024
Após a semana movimentada de votações no Congresso Nacional, que trouxeram avanços na agenda fiscal e de reformas no Brasil, os dois maiores bancos privados do país, Itaú e Bradesco, fizeram ligeiro balanço apontando expectativas para 2024. O Bradesco destacou a aprovação no Senado da MP 1885, das subvenções, que altera as regras sobre os créditos fiscais para investimentos e inclui restrições para o pagamento de juros sobre o capital próprio (JCP), aumentando o potencial de arrecadação federal. O Orçamento foi aprovado na sexta-feira, à tarde. O Bradesco ainda destacou a promulgação da reforma tributária do consumo (Emenda Complementar à Constituição 132), que estabelece um imposto sobre o valor adicionado, de administração dual, em substituição a cinco tributos atuais (PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS). Em 2024, o Congresso deve regulamentar diferentes pontos da reforma, fixando parâmetros e a estrutura de governança do novo regime tributário.
Para o Itaú, o efeito imediato da reforma tributária foi a elevação do risco soberano do Brasil de BB- para BB, com perspectiva estável, pela agência de classificação de risco Standard&Poor’s. Para a S&P, a reforma amplia o “histórico do Brasil de implementação pragmática de políticas nos últimos sete anos”. Apesar da implementação gradual, a reforma representa uma revisão significativa do sistema tributário e deve se traduzir em ganhos de produtividade no longo prazo. O banco diz que, “a perspectiva estável reflete a expectativa de avanços lentos na resolução dos desequilíbrios fiscais e projeções econômicas ainda modestas, contrabalançadas por uma posição externa forte e pela política monetária, que tem ajudado a reancorar as expectativas de inflação. Com o “upgrade”, o Brasil está dois níveis abaixo do grau de investimento, nota que indica uma capacidade adequada de honrar compromissos financeiros”.
Para coroar a mudança de perspectivas, enquanto o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, comentava na quinta-feira, 21, na divulgação do Relatório Trimestral de Inflação, que o Banco Central trabalhava com cenário de redução da taxa Selic (atualmente em 11,75%) para 9,50% em dezembro de 2024, o Bradesco previa uma taxa de 9,25% e o Itaú, 9,00% (uma redução significativa frente a aposta anterior de 9,50%, como a de Campos Neto). Mas o banco de investimento UBS-BB, parceria do banco suíço com o Banco do Brasil, vê espaço para redução da inflação e do piso dos juros (a taxa Selic é a base das operações financeiras) para 8%. Detalhe, quando todos previam uma inflação acima de 6% este ano, o UBS-BB previu 4,7% (dentro do teso da meta de inflação, que é de 4,75% e deve fechar em torno de 4,5%). Para 2024, o economista chefe Alexandre Ázara está prevendo IPCA de 3%, o que abre espaço para uma forte baixa dos juros. E juros mais baixos relançam o consumo e a economia, criando emprego e renda, o círculo virtuoso do crescimento que reforça a arrecadação e reduz o temido déficit público.
Quem sabe, depois de saborear o churrasco de confraternização oferecido pelo presidente Lula na Granja do Torto, sexta-feira à noite, Campos Neto não tenha mudado de opinião, com as últimas decisões no Congresso e o papo de Lula?
É com essa esperança que desejo a todos os caros leitores um Natal de congraçamento familiar, no espírito de irmandade ensinado por Jesus Cristo, e um 2024 cheio de alegrias e realizações.
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)