O DESTINO DO PAÍS NA ÚLTIMA BATALHA DE LULA

Ricardo Stuckert

Segundo estudos de Tomaz Traumann e Felipe Nunes, o país está irremediavelmente partido ao meio, dividido entre lulistas e bolsonaristas

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Peça 1 – a ameaça final à democracia

O último grande feito de Lula foi ter impedido a reeleição de Jair Bolsonaro. Tivesse Bolsonaro sido vitorioso, não haveria como segurar a quartelada das Forças Armadas, a cooptação final do Congresso, a invasão dos bárbaros não apenas nos palácios de Brasilia, mas por todo o Brasil civilizado.

A ameaça não acabou. em 2024 haverá eleição para prefeito, fornecendo as bases para as eleições de 2026. Mais uma rodada de eleição de parlamentares bolsonaristas, e assumirão definitivamente o controle da Câmara e do Senado. Independentemente das próximas eleições presidenciais, o país estará em suas mãos.

Peça 2 – o retorno de Vargas

A rigor, a única arma que a democracia dispõe é Lula. 

De certo modo, seu retorno lembra o de Getúlio Vargas, eleito em 1950, como única esperança de interromper o desmonte perpetrado por Dutra. Segundo Walther Moreira Salles, que conviveu com Vargas, ele voltou algo desanimado, sem o instinto político dos tempos de ditador e com uma enorme decepção pelo trabalho de destruição efetuado pelo governo Dutra.

A revelação dos apontamentos de Vargas, nos papéis entregues por sua neta Celina ao CPDOC, e divulgados por Oscar Pilagallo, é uma amostra pungente da repetição reiterada da maldição nacional, da praga do subdesenvolvimento, da perpetuação do coronelato da Primeira República.

Diz Pilagallo:

“Os alvos, às vezes, são coletivos, como os proprietários de jornais, a seu ver “opulentos gozadores da vida que impõem seu ponto de vista, [coagindo] a liberdade de pensamento de seus empregados” e envenenando a opinião dos leitores. Não há nos escritos, no entanto, menção à censura imposta durante o Estado Novo (1937-1945) ou ao fato de seu governo ter mantido o jornal O Estado de S.Paulo sob intervenção”.

(…) “Para combater os males reinantes, teria de realizar grandes reformas de ordem social, política e econômica.” Todavia, ciente do peso da oposição, conclui: “Já estou velho para fazer outra revolução”

(…) . “Não sou contrário à democracia”, escreve. Na sequência, qualifica a democracia sob Dutra: “É profundamente reacionária e anárquica”. Para Getúlio, trata-se de um regime velho, “uma democracia liberal que em matéria de economia política ainda [reza] pela cartilha de Adam Smith, conhecido por descrever os mecanismos que acionam o que o autor escocês chamou de ‘a mão invisível do mercado’”.

(…) “Para as elites, segundo Getúlio, a democracia seria “a liberdade individual para os poderosos do dia fazerem o que entendem, oprimindo os pobres e humildes”. Em contraposição a esse conceito, ele defende uma democracia que produza avanços sociais. “O que sempre afirmei é que a democracia não podia ser simplesmente política, mas também econômica. De que serve igualdade política, sem igualdade social?”

“A semente do populismo começa a ser regada com ressalvas à democracia representativa. “Na verdadeira democracia, o homem de governo fala diretamente com o povo. Nas democracias deformadas, como essa que temos no Brasil, os políticos falam uns com os outros e esquecem o povo.”

Mesmo assim, cercado desde o primeiro dia por pressões de toda ordem, conseguiu legar as bases da economia moderna, com a criação de grandes estatais que ajudaram a turbinar o período seguinte, de JK. E garantiu a continuidade do seu grupo por mais alguns anos, com o gesto político do suicídio.

Peça 3 – o retorno de Lula

A volta de Lula é, em muitos pontos, idêntica à de Vargas. 

Ele representa, hoje em dia, todas as pautas civilizatórias, do combate à miséria às diversas formas de inclusão, da defesa do meio ambiente às lutas de afirmação do sul global e a única esperança de retomada de um processo de desenvolvimento.

Vargas assumiu em 1930, tendo atrás de si o dinamismo dos positivistas gaúcho; Lula assumiu em 2002 acompanhado da vitalidade do movimento sindical e das comunidades eclesiais de base.

O Getúlio de 1950 já não dispunha do espírito guerreiro dos gaúcho; Lula não dispõe da antiga capacidade de mobilização de suas bases. Ambos têm consciência do enorme desafio de reconstruir o que foi destruído no interregno Temer e no desastre Bolsonaro.

Na volta, desde o início Lula entendeu a importância de um governo de pacificação nacional. Abriu mão de um governo de esquerda, em favor de um governo que possa acolher todas as tendências. Seu chamamento para que as igrejas evangélicas ajudem na localização e identificação de vulneráveis candidatos ao Bolsa Família é simbólico, mostra o caminho. Mas não basta.

Falta um fator essencial: o discurso unificador, a bandeira abrangente, capaz de unir o país em torno de uma pauta única. Nos anos 50, a grande bandeira foi a campanha do Petróleo é Nosso, que surgiu de baixo para cima. Vargas, inicialmente, queria uma Petrobras sem monopólio.

A campanha, conduzida por militantes como Henrique Miranda e Maria Tibiriça Miranda, por jornalistas como Gondim da Fonseca, por engenheiros como Fernando Luiz Lobo Carneiro, por militares, como Horta Barbosa, incendiou a imaginação do país e convenceu a própria UDN a apresentar o projeto do monopólio estatal e da empresa diversificada – como forma de impedir seu sufocamento pelas cinco irmãs.

Precisa surgir um tema similar para colocar a bandeira do projeto nacional nas mãos de Lula.

Peça 4 – o país partido ao meio

Segundo estudos de Tomaz Traumann e Felipe Nunes, o país está irremediavelmente partido ao meio, dividido entre lulistas e bolsonaristas, com uma faixa menor essencial para desempatar a disputa.

Há um conjunto de temas que acirram a polarização, especialmente as pautas morais, as identitárias e as políticas de inclusão. Obviamente, Lula não poderá abrir mão dessas bandeiras, e já as contemplou na formação de seu ministério.

Por outro lado, a bandeira que mobiliza é o tema da salvação nacional. Mobilizou os bolsonaristas e pode mobilizar a frente civilizatória.

O bolsonarismo conseguiu manipular muito bem o conceito, convencendo milhões de pessoas que havia um inimigo a ser combatido – o lulismo -, e a única missão a ser cumprida pelos seus seguidores seriam as orações na porta de quartéis ou para discos voadores. Loucura, alucinação coletiva, mas era uma missão. Cada seguidor estava convencido que cumpria com sua cota de patriotismo.

Agora, o tema racional, capaz de unir todos os pontos do país, é o tema da produção. O governo tem que sair da Faria Lima e unificar o país. A ideia fixa na Faria Lima está enfraquecendo Lula não apenas perante sua base, mas perante todas as grandes corporações.

E, por produção, entenda-se a atividade produtiva – pequenas, médias e grandes empresas -, os trabalhadores, as organizações de pequenas empresas, como o cooperativismo e os movimentos sociais. 

Não se trata de uma alucinação – como a bolsonarista -, mas de um corte central no modelo de desenvolvimento. O foco do governo tem que ser a defesa intransigente das produção nacional, do interesse nacional, da criação de empregos. Não é só uma estratégia de unificação nacional: é a receita para o desenvolvimento.

Peça 5 – a salvação nacional

Um desafio dessa ordem passa por inúmeros fatores.

Auto-estima do produtor – O primeiro – e fundamental – é o da valorização da auto-estima do produtor. E chamo de produtor todo aquele que constrói, que monta empresas pequenas ou grandes, gera emprego, gera fornecedores, receita fiscal, em contraposição aos falsos heróis de hoje, os traders, as startups e outras aventuras de alcance limitado e que não geram riqueza para o país.

Em campanhas midiáticas, discursos políticos, eventos, o pequeno produtor – empresário e trabalhador – têm que saber de seu valor e entender que o seu trabalho, por mais humilde que seja, é parte relevante da reconstrução nacional.

É um desafio que pode contar com o apoio das igrejas evangélicas sérias, do MST, das federações empresariais, do sistema Sebrae, das Associações Comerciais. Tem que se tirar o foco da Faria Lima e concentrar no país. E não apenas no país dos rincões. A obsessão com o déficit zero não está apenas esvaziando o apoio popular ao governo, mas também dos grandes complexos industriais.

Defesa intransigente da produção nacional – se o pequeno fabricante de roupas está sendo esmagado pelas plataformas internacionais de varejo, se o grande produtor de aço sofre ameaças da importação chinesa, o governo tem que vir em seu socorro, com imposto de importação, sim. Só conseguirá ganhar a confiança do produtor com medidas concretas que reflitam, internamente, a altivez que Lula demonstra nos fóruns internacionais. Tem que demonstrar, através de atos concretos, que é o grande pai em defesa do Brasil.

Remontagem do BNDES – em qualquer contabilidade, investimento é separado de despesa corrente, porque investimento gera aumento da produção. Tome-se o caso do BNDES. A diferença entre o custo do financiamento e o custo do financiamento do Tesouro passou a ser tratado como subsídio, abrindo espaço para o aumento do custo do financiamento.

Confira a lógica:

1. O BNDES financia, digamos, 10 empresas.

2. A diferença entre o custo do financiamento e o do Tesouro corresponde, digamos, a 100.

3. Os financiamento permitirão ampliar a produção. Haverá mais produção, mais fornecedores, mais trabalhadores. E todos pagarão impostos. Digamos que, ao final de 10 anos, os 100 tenham sido repostos com juros. Em qualquer país racional, a análise contábil do fator BNDES levaria em conta o diferencial inicial com o financiamento do Tesouro (mesmo sabendo-se que o ponto fora da curva é o do Tesouro), e o aumento posterior da receita fiscal, através dos impostos gerados pela nova produção, pelos fornecedores e pela nova folha salarial. Simples assim.

O próprio BNDES poderia preparar um estudo dessa ordem, com base no histórico de financiamentos. Ou, então, monte uma parceria com uma associação de auditores. Seria a maneira mais rápida e racional de tirar o torniquete que sufocou o mercado de financiamento no país com uma mentira aceita acriticamente pela mídia.

Compartidas do investimento externo – a reciclagem energética está atraindo dois tipos de empresas no país: a que vem explorar os recursos naturais e as que pretendem simplesmente produzir com energia verde. O governo tem que começar a atuar como qualquer país desenvolvido e pragmático, e impor contrapartidas: transferência de tecnologia; garantia de fornecedores nacionais; de preferência associação com empresas nacionais, que garanta a atualização tecnológica permanente. E há diversas outras possibilidades.

Contratos offset – Em uma transação comercial, um contrato de offset é um acordo entre um comprador e um vendedor no qual o vendedor concorda em fornecer ao comprador compensações adicionais, além do produto ou serviço negociado. Essas compensações podem assumir várias formas, incluindo:

– Transferência de tecnologia: O vendedor concorda em transferir tecnologia ao comprador, o que pode incluir treinamento, licenças ou transferência de direitos de propriedade intelectual.

Transferência de tecnologia em um contrato de offset

– Investimento: O vendedor concorda em investir no país do comprador, o que pode incluir a construção de uma fábrica, a criação de empregos ou a aquisição de uma empresa local.

– Exportações: O vendedor concorda em exportar produtos ou serviços do país do comprador, o que pode ajudar a aumentar o comércio e a balança comercial do país.

No Brasil, os contratos de offset são regulamentados pela Lei nº 8.666/1993, que estabelece que os contratos de aquisição de bens e serviços pelo governo federal devem incluir cláusulas de offset. A lei define o offset como “qualquer prática compensatória estabelecida como condição para a aquisição de bens ou serviços pelo Poder Público, com o objetivo de promover o desenvolvimento econômico e tecnológico do País”.

Peça 6 – o que esperar de Lula 2024

A grande interrogação será o comportamento de Lula 2024. É urgente que saia da anomia atual e empunhe uma bandeira. Mas as associações empresariais, as grandes corporações, o sistema cooperativista, as associações comerciais, têm que começar a se mover em direção a uma bandeira racional: a valorização da produção interna. E, com esse movimento, ajudar a despertar o país para sua grande vocação, a de ser a civilização do século 21.

É necessário a recuperação do próprio amor-próprio nacional, entendendo o potencial do território, da população, dessa mistura de cores e sons que, pelo menos até o desastre Bolsonaro, encantava o mundo.

Ainda há tempo de reconstruir a primeira grande democracia tropical.

LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)

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