Quem não se lembra da personagem da estrangeira bonita, vivida pela americana Kate Lyra (então casada com o compositor Carlos Lyra), que era constantemente assediada por marmanjos prestativos e dizia, na sua ingenuidade, “O brasileiro é tão bonzinho”… Era um esquete do século passado e encobria o jeitinho brasileiro de cativar os outros por uma falsa cordialidade para facilitar golpes ardilosos contra a ingenuidade alheia. A História do Brasil foi feita assim, desde a chegada dos portugueses, com Pedro Álvares Cabral. Primeiro, foi a sedução dos índios e índias, com espelhinhos em troca das ricas matérias-primas: o pau-brasil, usado na tintura de vermelho nos tecidos, aves raras da fauna brasileira e, se possível, ouro e pedras preciosas, às quais os brasileiros originais não davam valor. Depois, a sedução tentou cooptar a mão-de-obra indígena para trabalhar voluntariamente nas feitorias de extração de madeiras, em troca de machados de aço, que tornavam as tarefas mais fáceis.
Quando se instalaram as primeiras “plantations” com o cultivo da cana-de-açúcar vinda da Índia, a partir da implantação do regime das Capitanias Hereditárias, em 1530 (antes que os piratas e corsários e mesmo tropas armadas da França, Holanda e Inglaterra investissem na tomada de parte do território que cabia a Portugal, pelo Tratado de Tordesilhas), os donatários portugueses, contemplados pelos favores da Coroa de Lisboa, tentaram escravizar os índios. Como é natural que haja reação de quem é tratado como escravo na sua própria terra, não funcionou. Partiu-se, então, para a importação maciça de mão de obra escrava, avulsa e sem famílias, da África, praticada por vários países europeus que fincaram pé no continente africano. Aqui, o jeitinho dos senhores de engenho e feitores brancos só se manifestava na sedução das escravas mais bonitas, requisitadas a servir na Casa Grande. Para os homens e mulheres não eleitos, era o duro regime da senzala.
O regime escravocrata fincou raízes no Brasil por quase três séculos. Fomos o último país a abolir a escravidão, que estava condenada desde 1807 pela Inglaterra. O país que liderava a Revolução Industrial queria combater a escravidão não por razões humanitárias, mas porque o regime de trabalho escravo concorria em parte com o processo industrial. A Lei Aberdeen, de 1845, deu à Inglaterra o poder de confiscar em pleno mar navios negreiros que vinham trazendo escravos para o Brasil. Um século antes, os piratas ingleses saqueavam navios portugueses e espanhóis com ouro e prata, o que facilitou a acumulação de capital para a exploração do carvão, base da Revolução Industrial. Para se ajustar à Inglaterra, aliada de Portugal contra a invasão de Napoleão a Lisboa, em 1808, quando a família Real fugiu para o Brasil escoltada pela armada inglesa (e logo abriu os portos brasileiros aos ingleses), o Brasil promulgou em 1850 a Lei Eusébio de Queirós, estabelecendo restrições ao tráfico de escravos negros.
Mas, enquanto a Colômbia pôs fim à escravidão, já em 1851, a Abolição veio por etapas no Brasil e só se consumou em 13 de maio de 1888. Mas não redimiu o povo preto, que foi liberto sem acesso à terra, com uma mão atrás e outra na frente. Não tiveram os mesmos benefícios oferecidos pelos barões do café às famílias de imigrantes europeus (italianos, alemães, suíços e espanhóis), que foram atraídos ao Brasil a partir das restrições da Lei Eusébio de Queirós, com acesso à terra própria ou em parceria com os donos das terras que negociavam eitos para cada família europeia, já acostumada à agricultura, cultivar milho, feijão e mandioca nas ruas do café. O café, principal atividade, era todo do fazendeiro. A produção acessória era dividida em regime de meia ou terça com o senhor da terra.
O Estado paga tudo
O regime do colonato só acabou no país em 1975, quando a geada no café levou à erradicação da maior parte da lavoura em São Paulo e Paraná. Tão logo perderam a lavoura principal (e houve uma queda acentuada na produção de alimentos básicos no país nos anos 70 e 80, facilitando a disparada da inflação), os donos de terras de PR e SP trataram de pressionar o governo para inscrever os antigos colonos no Funrural. Mário Henrique Simonsen, que era ministro da Fazenda do governo Geisel, resistia à medida, por temer estouro das contas da Previdência. Os “defensores” do “lobby” dos fazendeiros, à frente o presidente do INSS, o paranaense Reinhold Stephanes, dizia que seriam apenas 400 mil inscritos. Percebendo a vantagem política de apoio dos coronéis do Nordeste ao governo, o pernambucano Marco Maciel tornou-se ardoroso defensor da ideia. Por isso ganhou o apelido de “o estadista do Funrural. E, como Simonsen temia, não foram só 400 mil inscritos no Funrural, que então pagava apenas meio salário-mínimo.
Ao fim de 1976, a folha do INSS ganhou 4,5 milhões de novos dependentes que jamais recolheram um centavo, desequilibrando as contas da Previdência. O rombo mais do que dobrou quando a Constituinte de 1988 determinou que não poderia haver benefício do INSS inferior a um salário-mínimo. Desde então, as contas fecham no vermelho. Quanta acumulação de capital não foi feita no país à custa do Estado? Seja como poder concedente de uma sesmaria, de um alvará para funcionamento de um negócio urbano ou ainda dos generosos financiamentos a juros baixos no crédito rural. E em cima da mão de obra escrava ou do colonato. Nas cidades, a especulação imobiliária tratou de produzir concentração de renda. E o crédito do BNDE (o S de Social é adotado por José Sarney, em 1985), subsidiado pelo Tesouro Nacional, que gerou gigantescos déficits públicos, ajudou a concentrar a renda de barões da indústria, protegidos por tarifas de importação. A riqueza de uns poucos sempre teve o outro lado da moeda: o rombo do Estado e a pobreza da maioria.
O caso de Maceió
O afundamento de cinco bairros de Maceió (Pinheiro, Bebedouro, Mutange, Farol e Bom Parto) é mais um exemplo de como o negócio privado quer o socorro da Viúva quando as coisas dão errado. Na área equivalente à de toda Copacabana (150 mil habitantes), viviam cerca de 70 mil pessoas e milhares de casas e negócios foram interrompidos pelo afundamento do solo, desde março de 2018, às margens da Lagoa de Mundaú. Depois de exaustivas perícias de geólogos e da CPRM, a Justiça conclui que os abalos sísmicos que ameaçam o surgimento de uma cratera do tamanho do Maracanã foram causados pela exploração das minas de sal-gema pela Braskem, subsidiária da Odebrecht, que tem como sócia, desde o fim do século passado, a Petrobras, com 47% das ações preferenciais (sem direito a voto). A parceria com o Estado era um meio de a Braskem, que concentrou o setor petroquímico do país, ter acesso fácil, direto e a preços favoráveis, à nafta (a principal matéria-prima da petroquímica) da Petrobras. O sal-gema é outro insumo importante.
Pois a versão de última hora que a Braskem está espalhando, para tentar se eximir 100% das responsabilidades de indenização (já montam a R$ 12 bilhões e têm afastado pelo menos quatro compradores que se interessaram pela empresa desde que a gigante da petroquímica foi posta à venda pela Odebrecht, na tentativa de evitar a recuperação judicial), é de que o solo da região é instável e, por isso, os afundamentos estão se sucedendo. Trata-se de uma versão para criar a ideia de uma conspiração do destino para aquele que pode ser considerado a maior tragédia urbana, excluídos terremotos ou guerras. A prefeitura de Maceió, que é comandada desde 2020 por João Henrique Caldas (PL-AL), aliado do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), desde o primeiro abalo sísmico de 2018, vem concedendo isenção de IPTU a todos os proprietários de moradias e negócios evacuados, e perdendo alguns bilhões em arrecadação. Mas firmou, apressadamente, antes do agravamento da situação, acordo subestimado de ressarcimento com a Braskem. O Estado é comandado por Paulo Dantas (MDB), aliado do senador Renan Calheiros.
Por isso, no calor da comoção, o presidente da Câmara, Arthur Lira, saiu a campo, usando o peso de seu cargo como despachante de matérias de interesse do governo federal no plenário da Câmara Baixa do Parlamento, para tentar extrair do governo federal verbas para cobrir os estragos que a iniciativa privada causou à população da capital alagoana. Além da interrupção do VLT, que não pode mais parar em Mutange (um bairro fantasma, como os outros quatro – até o antigo estádio do CSA, time alagoano, teve de ser abandonado nos últimos cinco anos). Lira está pressionando o presidente em exercício, Geraldo Alkimin, a liberar verbas. Alkimin estará em Maceió na 3ª feira, dia 5. Mas, antes enviou o ministro dos Transportes, o ex-governador Renan Filho, e o ministro do Desenvolvimento Social e Cidadania, Wellington Dias, para avaliar as providências cabíveis. E o presidente Lula, que só volta da COP-28, em Dubai, no mesmo dia 5, já fez manifestações e deu instruções para o governo federal amparar as necessidades. Não pode é o Estado (ou melhor, o contribuinte brasileiro) assumir responsabilidades de cobertura de danos físicos, materiais e morais devidos pela Braskem a famílias e a negócios.
Ricos já reagem à taxação
Após muita resistência dos poderosos “lobbies” no Senado e na Câmara, o Congresso aprovou a tributação dos fundos exclusivos e “offshores”, utilizados como veículos de investimentos de grandes fortunas. Mas, segundo reportagem do “Broadcast” junto a gestores de investimento, a nova investida do governo para cortar benefícios injustificáveis, enquanto não é aprovada a simplificação tributária para dar mais equidade à carga tributária no país, com mais impostos sobre a renda do que sobre o consumo, já está provocando “decisões de saída do Brasil entre algumas das famílias mais endinheiradas”. Segundo a matéria, a ideia de mudança de domicílio fiscal para não residente foi uma das primeiras reações percebidas por gestores de grandes fortunas, especialmente entre famílias em que questões como sucessão em empresas ou de estrutura de filhos ou herdeiros já estão resolvidas.
O projeto de lei de taxação dos fundos “offshore” e fundos exclusivos foi aprovado na 4ª feira, 29, pelo Senado e vai agora à sanção presidencial. A proposta estabelece alíquota de 15% para os fundos no exterior. Os fundos exclusivos de curto prazo terão alíquota de 20% e os de longo prazo, de 15%. Todos estarão sujeitos, como os demais investidores em fundos de renda fixa e DIs, ao sistema de come-cotas, de tributação semestral. E os contribuintes que decidirem antecipar o pagamento de imposto sobre o saldo dos fundos exclusivos para 2023 pagarão uma alíquota menor, de 8%. Os contribuintes que deixam o Brasil de forma definitiva e formalizada perante a Receita Federal, a partir da data da saída física do país, tornam-se “não residentes fiscais brasileiros”. Assim, os rendimentos obtidos no exterior deixam de ser tributados e declarados no Brasil. Já os rendimentos oriundos de fontes brasileiras estarão sujeitos à tributação especial como não residentes fiscais.
Um dos benefícios é sobre o rendimento de aluguéis no Brasil, sobre o qual incide uma alíquota de 15%, diretamente na fonte, contra uma alíquota progressiva de zero a 27,5% para os residentes. Os escritórios de assessoria de investimento já estão tirando do bolso do colete alternativas para atenuar os efeitos da taxação, como a reestruturação e fatiamento dos investimentos para fundos que continuam sem o come-cotas.
Não é por outro motivo que o trio dos bilionários brasileiros, que está enrolado com o rombo contábil da Americanas (da qual tinham 30,5%), há muito fixou domicílio fiscal em paraísos fiscais dos Estados Unidos (o Estado de Delaware, que cobra as menores alíquotas em território americano) ou em Luxemburgo. Jorge Paulo Lemann, que também tem nacionalidade suíça, tem uma 3ª opção.
No caso dos fundos “offshore”, de pessoas físicas, não há esse incentivo de antecipação do pagamento do estoque. A origem destes capitais registrados em paraísos fiscais é de empresários do comércio exterior que mantém parte das receitas no exterior ou outros que deslocaram caixa dois e evasão de divisas e elisão fiscal para paraísos fiscais do Caribe e diversos pontos do mundo. O cerco dos EUA à movimentação dos capitais anônimos ligados ao narcotráfico e ao comércio de armas pelos paraísos fiscais, após os atentados de 11 de setembro de 2001, levou à adesão do Brasil, Suíça e dezenas de países ao acordo. Os capitais de brasileiros escondidos em paraísos puderam ser declarados à Receita Federal em 2015 e 2016. Após pagar os tributos devidos na regularização, a maior parte dos recursos continuou nos paraísos fiscais. De lá, os investidores tiram vantagens das oscilações do câmbio e do alto diferencial entre os juros básicos do Brasil e do exterior.
Com a redução da taxa Selic a 11,75% em 13 de dezembro, depois de ficar acima de 12,25% desde 5 de maio de 2022 (com rendimento teórico de 1% ao mês), os fundos de DIs, regulados pela taxa Selic, voltam a render menos de 1% ao mês. Mas agora terão de pagar o imposto sobre a renda, se houver. Mas se o dono do fundo quiser seguir em seu atual status, de “opaco”, a tributação será feita de acordo com as regras contábeis brasileiras dos balanços das empresas. A montanha de recursos é tão grande que a soma dos “investimentos” de paraísos fiscais no Brasil (a maior parte dinheiro de brasileiros), só é superada pelo estoque de investimentos provenientes dos Estados Unidos e da Holanda (parte dos Estados que integram os Países-Baixos é de paraísos fiscais do Caribe). Por sinal, que a China faz uso corrente dos paraísos fiscais para sediar negócios de investimento no Brasil (energia elétrica e petróleo, sobretudo).
Eu só fico perguntando que interesses os deputados e senadores levavam em conta ao relutar tanto em aprovar a tributação que vai engordar a arrecadação para 2023 e sobretudo 2024, cobrindo parte do déficit público causado pela eleitoreira renúncia fiscal do governo Bolsonaro, de julho a dezembro de 2022?
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)