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<Será que o cerne dos nossos valores seriam desvirtuados por uma suposta hegemonia econômica?
Polemizando…
O artigo do Lourival Sant´Anna, intitulado “O longo caminho para China e EUA”, que o Estadão publicou no dia 19/11, no qual ele analisa a “competição entre democracias (EUA…) e autocracias (RPC…) para mobilizar o Ocidente contra China, Rússia, Irã e Coreia do Norte”, o âmago de um conflito que “pode ser adiado, mas dificilmente evitado”, estimulou-me a refletir sobre a fatalidade destas afirmações.
Segundo o articulista, “depois de se reunir com Xi Jinping, Joe Biden foi indagado por uma repórter da CNN se o presidente americano ainda considerava o líder chinês um ditador. Ele respondeu que sim. A chancelaria chinesa repudiou a declaração. O episódio revela os imensos obstáculos a uma distensão entre as duas superpotências”… Ainda conforme o artigo, “durante a reunião a portas fechadas entre os dois líderes, segundo a agência oficial chinesa Xinhua, Xi argumentou que a China não tem planos de ultrapassar ou desbancar os EUA, e os EUA não deveriam tramar para suprimir ou conter a China”.
Vamos refletir sobre a “alegação da inevitabilidade de um conflito EUA X RPC”… e “os planos de a RPC desbancar os EUA.” ?
Para tanto, é preciso tentar entender como a China – antes mesmo de ser percebida como uma “República Popular” – se vê. Lourival Sant’Anna tem razão quando afirma que “a China acredita ter vocação milenar a ocupar o centro do mundo”. Na verdade, a primeira impressão que se pode ter é que os chineses se vêem antes como uma “civilização” do que um “país” segundo o conceito westfaliano. Com efeito, o nome oficial do país, em mandarim, é “Zhōng guó” (中国),”país do centro/meio”. Esta tem sido a imagem pela qual os chineses têm-se identificado perante eles mesmos ao longo da sua História. Como corolário deste conceito, para manter a integridade da sua civilização, eles se mantiveram isolados do mundo durante séculos pelas muralhas que construíram a partir do século VII AEC até o final da dinastia Ming (1368-1644). Entrementes, expandiram o seu comércio através da(s) Rota(s) da Seda e se tornaram a maior potência econômica do planeta ao longo dos séculos, mas nunca ocuparam de forma “imperialista/colonialista” territórios além dos que – “à tort ou à raison” – consideram como seus: o Tibete, Xinjiang, Hong Kong, Macau e Taiwan, todos eles, aliás, contestados pela população nativa e por grande parte da comunidade internacional. Até que nos séculos XVIII/XIX os ocidentais vieram romper este “esplêndido isolamento” e catapultar a sociedade chinesa ao conturbado século XX, que ela enfrentou de forma atabalhoada.
O que isto tem a ver com alegadas “veleidades hegemônicas” de Pequim? Em suma, como as elites políticas e empresariais chinesas– e a população, na sua grande maioria – vêem o papel da China no mundo contemporâneo?
A julgar pelos conceitos enunciados logo no primeiro capítulo do livro “The China Dream”, de autoria do professor e diretor da “China´s National Defense University”, Liu Mingfu…”, que o Presidente Xi Jinping cita amiúde, “… it has been China´s dream for a centrury to become the world´s leading nation…But what does it mean for China to become the world´s leading nation? First it means that China´s economy will lead the world. On that basis, it will make China the strongest country in the world. As China rises to the status of a great power in the 21st century, its aim is nothing less than the top – to be the leader of the modern global economy”: ou seja, ela se vê como a superpotência econômica do século XXI.. Possível?… Preocupante?… Em outros termos, seria uma “revanche” contra o espoliação a que foi submetida pelas potências europeias no século XIX , que a sua história registrou como o “Século das Humilhações”?…
De um outro ângulo de análise, este livro foi publicado inicialmente em 2015, quando a economia chinesa crescia a galope… Seria o mesmo cenário, agora? Será que os desafios que a economia e a sociedade estão enfrentando na atualidade constituem o presságio de um novo ciclo, ou até mesmo de um possível declínio?… Ou a adaptação a um novo paradigma de desenvolvimento, voltado cada vez mais para o mercado interno e não tão dependente do comércio exterior, não demandando, portanto, PIB´s tão superlativos?
E o que isto tem a ver com o encontro entre Xi Jinping e Joe Biden?
A leitura que os americanos estão fazendo, pelo que entendo, é a de uma “ameaça aos valores do Ocidente” – democracia, direitos humanos, liberdades individuais, etc. – impulsionada pelos conceitos e valores promovidos pelos “comunistas chineses“. Este entendimento levou Joe Biden a chamar Xi Jinping de “ditador”, como vimos. Porém, estamos falando de ideologia, valores… ou de conceitos/preconceitos civilizacionais? Certamente, o presidente americano, e a maioria de nós neste lado do planeta, analisamos e prejulgamos uma cultura alienígena segundo nossos padrões… é a lógica; mas, será que estes padrões, que fazem todo sentido para nós, são válidos “erga omnes” num planeta cada vez mais interligado? Qual é a fronteira entre as ideologias e a boa convivência? Onde estaria o equilíbrio?
Ademais…
A História segue o seu curso… Testemunhei quatro hegemonias no meu tempo de vida (nasci em 1945): 1) o ocaso do Império Britânico, ao final da II Guerra Mundial; 2) a hegemonia disputada entre os Estados Unidos/Ocidente e a União Soviética/países da “Cortina de Ferro”, na “détente” das décadas de 60/70/80; 3) a hegemonia unívoca dos Estados Unidos após a dissolução da URSS, em 1991; e 4) a hegemonia compartilhada entre os Estados Unidos e a China neste início do século XXI. Conjecturando, eu me pergunto qual seria a próxima…Tenho as minhas suposições…
Desta forma, convido os amigos a refletir comigo sobre se os valores que compartilhamos neste lado do planeta estariam “ameaçados”, como julga o Presidente americano, pela emergência da que aparentemente está fadada a ser a principal economia do mundo. Será que o cerne dos nossos valores seriam desvirtuados por uma suposta hegemonia econômica? Qual é a fronteira entre “Oriente” e “Ocidente” no planeta globalizado?
Questionamentos e desafios para as nossas convicções. Enquanto isto, “la nave va…”
FAUSTO GODOY ” JORNAL GGN” ( BRASIL)
Fausto Godoy, Serviu nas Embaixadas do Brasil em Bruxelas (1978); Buenos Aires, (1980); Nova Delhi (1984); Washington (1992) e Tóquio (2001). Foi designado Embaixador junto aos governos do Paquistão (2004) e Afeganistão (2005). Serviu posteriormente em Hanoi (2007); Consulado do Brasil em Tóquio; Escritório Comercial do Brasil em Taipé; e nas Embaixadas do Brasil em Bagdá (sediada em Amã), Daca, Astana e Yangon. Foi Cônsul-Geral do Brasil em Mumbai (2009). Aposentou-se do Serviço Exterior Brasileiro em 2015. Doou sua coleção de arte e etnologia asiáticas (com cerca de 3.000 peças), ao Museu Oscar Niemeyer, de Curitiba. Esta coleção constitui a primeira ala asiática em um museu brasileiro. É membro da Diretoria da Câmara de Comércio Brasil-Índia. É coordenador do Núcleo de Estudos e Negócios Asiáticos na ESPM