O salto de 10,53% nas cotações de venda do dólar blue (o dólar do mercado paralelo), de 950 pesos para 1.050 pesos na manhã desta 3ª feira, na reabertura dos mercados, já que ontem era feriado nacional, mostra que o anúncio feito pelo presidente eleito da Argentina, Javier Milei, de que pode demorar até dois anos para a completa dolarização da economia, será o maior obstáculo à própria adoção do dólar como moeda nacional. Às 13 horas a cotação recou a 1.045 pesos.
Como precisará de tempo para vários ajustes – um deles será a brusca elevação da Laliq (a taxa de liquidez de curto prazo, equivalente à nossa Selic, que está em 133% ao ano, contra 142,4% da inflação oficial nos 12 meses terminados em outubro – a diferença entre a intenção do futuro presidente, que toma posse dia 10 de dezembro, e a concretização da meta pode abrir um fosso que venha a engolir o próprio Milei, tornando seus planos mais difíceis.
Na manhã de hoje, finalmente, o presidente eleito se reuniu com o presidente Alberto Fernández para acertarem detalhes da transição. A alta do câmbio paralelo (que motivou o governo a acelerar as minidesvalorizações do dólar oficial, cotado a 373,93 pesos, com alta de 0,63% frente a 17 de novembro. Dias de turbulência aguardam o país até a posse. A pressão por dólar chegou ao mercado brasileiro, onde o dólar subia 0,78 para R$ 4,89 às 13 horas.
Corrida de gato e rato
A alta do dólar blue prenuncia uma corrida de gato e rato para a compra de dólar. Além de atiçar mais ainda a inflação, tende a forçar o Banco Central de la República Argentina (que Milei prometeu fechar na campanha) a ter papel relevante, qual a de um toureiro a tentar aplacar a fúria do touro (a pressão do público por dólares) com a elevação constante das taxas de juros.
Segundo o editor do site Âmbito Financiero, Julián Guarino, no mercado de futuros de Buenos Aires “parece que o consenso indica para um contrato em dezembro na casa dos 850 pesos. E, para janeiro em1.000 pesos. O que reflete um salto para uma jornada em torno de 25%.
O BCRA teria de elevar muito os juros. Mas, dada a baixa capilaridade do mercado financeiro argentino, o poder de fogo do BCRA não se compara ao BCB ou ao do Fed. Como em desenho animado, o governo Milei terá de pôr os tão altos para atrair coelhos a trocar a cenoura (dólar) por papéis do BCRA.
Ao contrário do Brasil, que conseguiu construir um mercado financeiro, a partir de 1964, quando adotou a correção monetária (válida a partir de junho) e o Banco Central (em 31 de dezembro de 1964), o que permitiu, após a estabilização inicial da moeda, o alargamento dos prazos do crédito e das aplicações financeiras, na Argentina, que já tinha tradição de uso do dólar como segunda moeda de valor pelas elites do país desde a 1ª Guerra, dada a hipertrofia do mercado financeiro argentino, o dólar virou moeda de uso corrente por boa parte da sociedade. As intervenções nos índices de inflação nos governos Kirchner (com uma inflação oficial bem abaixo da realidade) desestimulou ainda mais as aplicações no mercado financeiro em pesos.
No Brasil, quando o ministro da Fazenda, Delfim Neto, manipulou a inflação oficial de 1973 (que oficialmente foi de 13,5% e a Fundação Getúlio Vargas que então a calculava reconheceu ter sido o dobro – 27%), os agentes do mercado financeiro se refugiaram nos títulos com correção monetária ou cambial (imaginando que, mais cedo ou mais tarde a inflação explodiria), recompensando as apostas. Muitos dos bilionários atuais fizeram esta aposta, como as então corretoras Garantia, de Jorge Paulo Lemann, Marcel Herman Telles e Carlos Alberto Sicupira, que virou banco de investimento em 1976, formando capitais para investidas posteriores na economia real, e Multiplic, de Ronaldo Cesar Coelho e Antônio José Carneiro.
A salvação da lavoura
O noticiário econômico no Brasil sobre a Argentina costuma apresentar as distorções sem apontar as causas. Se há um setor forte na economia dos vizinhos é o agrícola, com alta produtividade em cereais, grãos, carnes, frutas e vinhos. Entretanto, conforme o Departamento de Estudos Macroeconômicos do Itaú, que até agosto controlava banco na Argentina, o país sofreu dois anos de perdas de safras agrícolas devido à estiagem (La Niña) e impacto na inflação e na balança comercial. Isso explica parte da escalada da inflação, atiçada pelas desvalorizações do peso na crise de divisas, pela queda das exportações.
Em 2022 (safra 2021-22) a produção de trigo foi de 22 milhões de toneladas, mas caiu 42,7% na safra de 2022-23 para apenas 12,6 milhões de toneladas. Na soja, a seca fez mais estragos: a produção caiu de 44 milhões de t. em 2022 para 25 milhões de t. este ano (-43%). E no milho, principal produto do país, o tombo foi de 32%, de 50 milhões de t. para 34 milhões de t..
O efeito na balança comercial foi drástico: o país vinha de grandes saldos comerciais (US$ 16 bilhões em 2029, US$ 12,5 bilhões em 2020 e US$ 14,2 bilhões em 2021). Em 2022, os números murcharam para US$ 6,9 bilhões e a previsão de 2023 é de déficit de US$ 5,5 bilhões. O remédio do FMI foi desvalorizar o peso em 32% em agosto (após as primeiras prévias, vencidas por Milei); Massa acreditava virar o jogo até 19 de novembro. A inflação e o câmbio continuaram trabalhando contra e Milei venceu em quase todo o país.
Entretanto, os prognósticos da safra 2023-24 são promissores. Com o aumento das chuvas causados por El Niño no Sul do Continente, a produção de trigo tende a aumentar 35,9% para 17,5 milhões de t. Na soja, o salto esperado pelo Itaú é de 98%, para 48 milhões de t. Já o milho chegaria a 54 milhões de t., com aumento de 59% da produção.
O impacto duplo seria semelhante ao da supersafra de grãos de 2022-23 na economia brasileira: queda dos preços dos alimentos (um alívio para o povo argentino) e aumento das quantidades exportáveis. O Itaú estima que após o déficit comercial de US$ 5,5 bilhões este ano (o maior desde os – US$ 8,5 bilhões de 2017), a Argentina poderia acumular saldo de US$ 20 bilhões no 1º ano do governo Milei. A recuperação do agronegócio também ajuda no crescimento da economia (que deve cair 5,5% este ano). O quadro continua difícil, com previsão de recessão (-2,5% no PIB de 2024), mas com horizonte menos nublado.
Aqui pra nós: se o quadro não fosse ruim, por que o Itaú sairia da Argentina?
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)