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O País com potencial para ser a grande civilização do século já existe, à espera de ser convocado por um estadista, ou pelo Sr. Crise
Peça 1 – Lula, El Campeador
Assim como o mundo, o Brasil vive um fim de ciclo. São curiosos esses momentos, e precedem o início de um novo ciclo, que pode levar à restauração ou à destruição de um país.
O início de um novo ciclo sempre é caracterizado por um sentimento nacional de reconstrução, que faz com que intelectuais deem publicidade às suas idéias, gestores públicos tirem projetos das gavetas, a vontade de reconstrução controla os interesses particulares, submete os poderes a um objetivo maior, nacional. É como uma ordem unida impessoal, um sentimento unificador que, em geral, aparece somente após grandes desastres, quando baixa à terra o Sr. Crise e coloca juízo no país.
O Brasil pós-ditadura passou por esse processo no início do governo Fernando Henrique Cardoso e no primeiro governo Lula. FHC desperdiçou com a estratégia da teoria do choque, de abrir completamente a economia, privatizar sem critério e desregulamentar todos os setores, sem avaliação prévia. Plantou sementes de financeirização que cresceram nos seus dois governos e nos dois governos de Lula, promovendo um desastre similar ao do fim da ex-URSS.
Mesmo submetendo-se a essa financeirização, o governo Lula abriu espaço para experiências de municipalismo e para políticas sociais que ganharam reputação internacional. Mas não logrou articular um projeto de desenvolvimento.
Nesse longo trajeto pós-ditadura, houve dois momentos em que parecia que a maldição da financeirização seria rompida. O primeiro, no período 2008-2010, no qual o Sr. Crise obrigou Lula a romper com dogmas e se consagrar mundialmente. O segundo, no curto período em que Dilma trabalhou para redução da taxa Selic e dos spreads bancários – ousadia que precipitou a campanha de descrédito contra seu governo.
As últimas eleições foram as mais relevantes da história. Nela, um Lula quase octagenário sai da prisão e, tal e qual El Cid, o Campeador, conduz as forças democráticas para a batalha decisiva contra a ultradireita.
Peça 2 – o fim de ciclo
O momento atual tem todos os ingredientes de um fim de ciclo, com a manutenção de vários vícios do ciclo que se encerra e nenhuma perspectiva sobre o ciclo que virá:
- Falta absoluta de uma ideia aglutinadora, uma utopia capaz de despertar corações e mentes. É como se o bolsonarismo fosse uma página superada – e não é – e se pudesse voltar impunemente às velhas práticas que chocaram o ovo da serpente. É resultado do período pós-impeachment, em que o objetivo único de políticas públicas era abrir possibilidades de negócios.
- Uma discussão econômica totalmente mediocrizada, polarizada em torno de temas insignificantes, presos à ideologização financeira mais tacanha, sem a menor capacidade de se alinhar com a revisão que está sendo feito mundialmente dos dogmas financistas..
- A incapacidade dos órgãos corregedores nacionais de disciplinar abusos de tribunais regionais e ministérios públicos estaduais. Há uma multiplicidade de pequenas ditaduras se implantando em municípios pelo Brasil afora, com pactos entre prefeitos filhotes de Bolsonaro e procuradores filhotes da Lava Jato.
- ncapacidade de desenvolver um conjunto mínimo de ideias que caracterize uma política de desenvolvimento.
- Incapacidade dos partidos políticos de desenvolverem programas políticos mínimos ou de recuperarem capacidade mínima de mobilização das bases.
- O presidente do Supremo Tribunal Federal praticando voltando a praticar proselitismo político, mostrando que nem a tragédia consegue burilar a vaidade.
- Como resultado, incapacidade generalizada de enxergar o potencial do país, com a predominância ampla do complexo de vira-lata e da síndrome do cada um por si.
- Enquanto isso, as grandes empresas nacionais estão sendo massacradas pela competição externa, caso das empresas de varejo, siderurgia e setor automobilístico, com incapacidade total das representações empresariais de enfrentar politicamente os grandes interesses financeiros.
- Uma transição energética cheia de promessas e sem um plano definido, sem que se saibam quais as regras de transição, quais as contrapartidas a serem exigidas das empresas estrangeiras (se é que haverá).
A rigor, a única medida concreta contra a onda foi a imposição de um imposto de importação para carros elétricos, como forma de defender a produção interna e de estimular a vinda de montadoras para cá.
Peça 3 – Lula e o Sr. Crise
Os próximos meses serão de dúvidas e indagações.
Há duas maneiras de romper os impasses e inaugurar um novo ciclo, ambas dependendo de um choque de realidade e de bom senso, que pode chegar de duas maneiras.
– A primeira, com o advento da crise sem um norte condutor. Instala-se o caos e o preço a pagar será extremamente elevado. Seria a eventual eleição de um candidato bolsonarista em 2026. Aí, se teria que passar por um novo pesadelo, antes de um novo reinício – se existir ainda Nação para ser reconstruída.
– A segunda, com a crise, mas com uma liderança capaz de apontar o novo e colocar ordem na transição.
Em período democrático, só se teve esse momento no governo JK, mas alicerçado nas grandes reformas e grandes estatais nascidas no período Vargas.
O país tem um ativo imenso, a liderança de Lula. E uma dúvida enorme: Lula ainda terá energia, vontade e ideias para apontar o novo. No início de carreira política, Lula tinha o entorno de sindicatos fortes, uma Igreja atuante, movimentos sociais embarcando no ônibus PT, e a gana política. E agora, com os novos tempos, as novas circunstâncias e a velha idade?
Recentemente, Lula explicou que sua ausência do debate interno se devia aos problemas na coluna, que exigiriam uma intervenção cirúrgica. E daqui para a frente? Tem-se, hoje em dia, um Ministério ainda desconjuntado, um Estado destruído pelos 6 anos de irresponsabilidade de Michel Temer e Jair Bolsonaro. E Lula cedendo nas três frentes relevantes: Congresso, mercado e Forças Armadas.
A demora em escolher o novo Ministro do Supremo e o Procurador Geral da República demonstra medo e falta de bússolas. Aliás, as bússolas que orientaram as escolhas nos governos anteriores do PT falharam redondamente. Antes, tinha-se um Lula desarmado nas relações com a Justiça, por não entender seu poder demolidor; agora, se tem um Lula temeroso, que não sabe por onde caminhar.
Por enquanto, as apostas de Lula estão no Bolsa Família e na entrega de obras do PAC. Se for só isso, não preencherá o vácuo político. A crise exige muito mais, a criação de uma utopia, que mostre do que o país é capaz, que explicite as potencialidades, que eleve a auto-estima e que venha acompanhada de um plano abrangente e inclusivo de desenvolvimento.
Peça 4 – a busca do novo ciclo
O período pós-ditadura foi pródigo em novas experiências, muitas que não tiveram sequência, mas que deixaram boas lições.
Agora, a máquina pública foi destruída. Centros de excelência do funcionalismo público foram desmontados, casos do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), ENAP (Escola Nacional de Administração Pública), Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), quadro de gestores públicos, de planejadores.
A reconstrução não pode ser em cima das antigas bases.
Nos anos 90, com a entrada da Internet, houve um grande movimento no serviço público, de estímulo a novas experiências, com resultados animadores. Funcionários públicos atuavam como verdadeiros empreendedores, trazendo soluções que, depois, eram incorporadas ao grupo.
Depois, com os programas de qualidade, houve uma competição inicial virtuosa entre os diversos atores públicos. Essas experiências eram compartilhadas nacionalmente em um Conselho Nacional de Secretários de Planejamento.
A máquina pública tem que ser reconstruída sob os ecos da inovação, da desburocratização. O gestor define os objetivos a serem alcançados, as métricas de acompanhamento, e confere autonomia aos executores, para a busca de melhores soluções. Foi o que ocorreu em momentos brilhantes do INSS.
O modelo federativo do SUS tem que ser estendido a todas as áreas, com a recuperação dos Conselhos de Secretários de Educação, de serviço social.
Os bancos públicos têm que recuperar a vocação pública, depois da lavagem cerebral dos últimos anos. Para tanto, há que se criar indicadores de participação social, de estímulo, de participação na criação de arranjos produtivos, de articulação das pequenas empresas em seus locais de atuação. Têm que recuperar o sentido de público.
Os institutos federais – que permitiram a grande revolução regional do país – têm que aprofundar a sua vocação de agente da modernização em suas respectivas regiões, de desenvolvedores de tecnologia para empresas locais, de identificação das vantagens comparativas.
Enfim, há um exército que poderá ser mobilizado com vozes claras de comando e um plano de desenvolvimento bem elaborado, com objetivos claros e pactos a serem firmados com cada setor:
– a rede de instituições acadêmicas;
– o sistema das federações empresariais;
– o cooperativismo;
– a administração pública em suas diversas instâncias;
– o sistema de inovaçãoi com a rede de amparo à pesquisa;
– as associações comerciais;
– os movimentos sociais.
– as associações de prefeitos.
Peça 6 – a civilização do século 21
Ontem, na Igreja de São Domingos, em São Paulo, houve um ato religioso em defesa da paz na Palestina.
Ali, estava o Brasil: padres católicos, mães de santo, evangélicos, rabinos, pajés, padres muçulmanos, todos tendo em comum o desejo da paz e a celebração da grande alma brasileira.
Este é o Brasil da diversidade, da convivência pacífica, da solidariedade, o país que tem todo o potencial para ser a grande civilização tropical do século 21. Esse país já existe, à espera de ser convocado por um estadista, ou pelo Sr. Crise.
Juntos, ajudarão a destruir definitivamente a Hidra de Lerna do bolsonarismo e da intolerância.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)