O PAÍS DO FUTURO ESTÁ VELHO

Lula no café da manhã com jornalistas Foto: Ricardo Stuckert

Seis meses antes de se suicidar, com a mulher, Lotte, em Petrópolis, em 22 de fevereiro de 1942, o escritor austríaco e judeu, Stefan Zweig, que escolhera a região Serrana do Rio de Janeiro para fugir dos ataques de Adolf Hitler a judeus, ciganos e comunistas, na Europa, na 2ª Guerra Mundial, publicou o livro “Brasil, país do futuro”, extravasando o seu “encanto com o país no qual projetou sua utopia de uma sociedade que pudesse viver em paz e harmonia, em contraposição ao que ocorria em sua Europa amada”, como recordou, em fevereiro do ano passado, minha amiga e brilhante colega do JORNAL DO BRASIL, Kristina Michahelles, que dirige a Casa Stefan Zweig na cidade imperial que o escritor conheceu em 1936 e lá morou até o fim da vida.

Pois na sexta-feira, 27 de outubro, o outrora eterno e ufanista “país do futuro”, mesmo sendo agora, pelo Censo do IBGE, um país com mais presença do passado que de futuro, deu mostras de que segue exercendo a missão conciliadora que tanto agradou o intelectual austríaco. Diplomatas do Brasil, que teve papel fundamental na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas que aprovou a criação do Estado de Israel, em 1947, deixando em suspense, até hoje, pela revolta dos árabes palestinos, em 1948, a criação do Estado da Palestina, voltaram a defender na ONU um entendimento para cessar a carnificina próxima de 10 mil mortes, e prevalecer o respeito aos Direitos Humanos da Carta da ONU. Há 75 anos, episódios de guerra e ataques mútuos se sucedem entre Israel e os vizinhos palestinos, sem um Estado para chamar de seu e que vivem confinados em Gaza e na Cisjordânia.

O estado de guerra ganhou contornos mais complexos com o envolvimento indireto de outros países, desde que os terroristas do Hamas, que controlavam política e militarmente a Faixa de Gaza, fizeram um inesperado ataque a Israel, no sábado, 7 de outubro, com grande número de mortes e mais de 200 reféns entre homens, mulheres e crianças. Surpreendido pela incursão em seu território, tido como inexpugnável, Israel revida pesadamente. Além do bloqueio de água e suprimentos aos mais de 2,3 milhões que vivem na Faixa de Gaza, segue com o plano de evacuar a população da área Norte de Gaza para atacar e aniquilar o Hamas. Seria como o Exército e as forças armadas invadirem uma das grandes comunidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador ou do Recife para capturar, a qualquer preço, os chefes do tráfico. Morrerão bem mais civis do que militantes, pois o Hamas usa a população civil como escudo de proteção, assim como faz dos reféns moedas de troca.

Os interesses do petróleo

Defensor da Paz, o Brasil voltou a insistir da ONU – durante a presidência do CS, que vai até terça-feira, 31 de outubro, quando China assume a posição – pela adoção de uma trégua entre Israel e o Hamas para garantir a ajuda humanitária aos feridos nos hospitais. O formato do Conselho de Segurança da ONU, com as cinco potências nucleares (Estados Unidos, a antiga União Soviética, que voltou a ser a Rússia de sempre, o Reino Unido, a França e a China) tendo poder de veto, o que embarga o cumprimento de qualquer Resolução, enfraquece a capacidade do principal fórum político mundial de gerar a distensão entre as nações. Como uma outra guerra – a invasão da Ucrânia pela Rússia, em fevereiro de 2022 – segue em curso, a Rússia de Vladimir Putin veta qualquer Resolução que possa abrir precedentes à invasão da Criméia. E os Estados Unidos, aliado nº 1 de Israel, com a poderosa e rica colônia judaica mantendo forte influência junto a republicanos e democratas, segue vetando qualquer decisão que possa restringir o princípio da autodefesa de Israel.

A complexidade do momento atual se explica por estar em risco recentes movimentos de acordos entre Israel e países árabes (há entendimentos tácitos com o Egito, Jordânia e Emirados Árabes Unidos). Um acordo ia envolver Arábia Saudita e Israel. Como a Arábia Saudita tem divergências no Oriente Médio com o Irã, que é o grande apoiador, financeiro e militar, do Hamas e do Hezbolah, que atua na fronteira ao Sul do Líbano. Aliado dos EUA, e grande produtor de petróleo e gás, a Arábia Saudita é o fiel da balança dentro da Organização dos Países Produtores de Petróleo (Opep). Foi ela que produziu mais para substituir o petróleo e gás russos à Europa, após as sanções dos países integrantes da Otan à compra dos combustíveis da Rússia. Sim, alimenta a guerra a geopolítica do petróleo – insumo que terá mais 30 anos, pelo menos, até que as exigências climáticas reduzam a sua utilização como fonte de energia a papel secundário, mas ainda expressivo na petroquímica.

Por isso, são cada vez mais evidentes as digitais dos clérigos do Irã nos movimentos do Hamas. À Rússia, que tem a Síria como aliada estratégica ao norte de Israel, interessa evitar que uma paz duradoura na região possa prosperar. Antes de invadir a Crimeia, para garantir uma saída marítima pelo Mar Negro e o Estreito de Bósforo e o Mar Mediterrâneo,, que permitiria a passagem de petroleiros e navios gaseiros pelo canal de Suez, a Rússia insuflou a Síria de Bashar Assad (a quem ajudou bombardeando com aviões os focos de resistência da oposição há uns cinco anos). O objetivo estratégico era barrar a construção, atravessando a Síria e a Turquia, de um gasoduto que levaria gás do Catar e a Arábia Saudita ao Sul da Europa. Por trás das rivalidades religiosas, seculares, há sempre interesses econômicos.

Diante das ameaças de alastramento do conflito Israel-Hamas, os Estados Unidos de Biden suspenderam temporariamente os embargos à Venezuela de Nicolás Maduro, mediante o compromisso de eleições democráticas em 2024. Antes que o petróleo acabe, as petroleiras americanas querem explorar as maiores reservas do mundo no Mar de Maracaibo. A França, de Emmanuel Macron, que tem se alinhado ao Brasil nas propostas de pacificação no Oriente Médio, está envolvida até o pescoço nos golpes militares nas ex-colônias do Malí e do Níger, na regão subsaariana da África. O poder no Níger mudou em julho por golpe de Estado apoiado pela Rússia, com atuação do grupo Wagner. A milícia era usada à larga na África e na Ucrânia, até a rebelião de junho, que levou à morte misteriosa, dois meses depois, em um acidente de avião, de seu líder, Yevgeny Prigozhin. O jato da Embraer que saiu da Bielorússia, onde estava asilado, explodiu misteriosamente no ar. Pois uma das tratativas da França com o antigo governo era a construção de gasoduto/oleoduto para trazer gás e óleo da região do Malí e do Níger, atravessando o Saara até a costa do Mediterrâneo e daí chegar a Marselha, principal porto francês.

O velho chegou, sem o novo atuar

No mesmo dia em que o presidente Lula reuniu a imprensa para um café da manhã, comemorando, sexta-feira, sua volta às atividades depois da operação no quadril, e completava 78 anos de idade, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) revelou “os primeiros resultados do Censo Demográfico de 2022”, que deveriam ser motivos de reflexão dos governantes, políticos e dos gestores, sejam na administração pública ou nas empresas. E ainda motivo de muitos estudos nas aulas de geografia e problemas sociais brasileiros, nas escolas e universidades. Na minha visão, o retrato do Brasil ainda carece de uma explicação final do IBGE. É que a população brasileira, apontada como sendo de 203.080.176 habitantes, estaria desfalcada de 13,5 milhões, já que 216,5 milhões foi o escore apontado até agosto de 2022 pelo “reloginho populacional do IBGE”, que media o aumento populacional (nascimentos menos óbitos) de um brasileiro a cada 19 de segundos. O IBGE tirou o “relógio” do site (não, este não foi vendido nos EUA, como aquele Rolex) e anunciou o resultado preliminar do Censo com esses 203 milhões de habitantes. Portanto, de duas, uma: ou os levantamentos anteriores estavam errados ou a Covid matou bem mais que os 771 mil brasileiros na contagem oficial.

Segundo o IBGE, éramos 203,080 milhões de brasileiros. Se os números não forem corrigidos, no resultado final do Censo, seremos também superados pela Nigéria, que teria população de 214 milhões. O Paquistão já nos passou, há tempos, como a 5º país mais populoso do mundo. No Censo ainda não foi divulgado o número da população que se autodeclara negra. Nas estatísticas da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, o IBGE revela que os negros representavam 56% dos brasileiros no ano passado. De concreto, além dos números parciais do predomínio das mulheres (104,5 milhões) sobre os homens (98,5 milhões), o IBGE encontrou uma população de 1,693 milhão de indígenas e de 1,327 milhão de quilombolas.

Mas os dados da mutação do país do futuro para uma nação onde a população de zero aos 14 anos vai perdendo participação relativa diante da fatia da população com mais de 65 anos são impressionantes e devem ser estudados na hora de votação de propostas nos legislativos federal, dos estados e dos municípios. É fundamental que os governantes, nas três esferas de governo, façam planos de governo baseados na realidade populacional, socioeconômico e ambiental na esfera de sua atuação.

Quando Lula nasceu, em Garanhuns, em 17 de outubro de 1945, a taxa de natalidade do Brasil estava próxima de 4% ao ano. Agora, caiu para 0,52%. A expectativa de vida passava dos 53 anos. No caso de Lula, se tivesse continuado no semiárido de Pernambuco, dificilmente teria chegado aos 78 anos, que já é superior à expectativa de vida média do brasileiro (77 anos), sendo de 74 anos a expectativa média de vida dos homens e de 80 para as mulheres. Há muitas mortes de homens jovens no Brasil de causas não naturais (pela violência no trânsito e da criminalidade nas grandes capitais).

A redução do número relativo de jovens frente aos dos idosos (diante do aumento da expectativa de vida no mundo para mais de 80 anos, nos países da OCDE, a Organização Mundial de Saúde (OMS) já considera idosos a faixa de idade acima de 80 anos. Nélson Rodrigues, certa vez, quando lhe pediram, numa entrevista, “um conselho aos jovens”, rebateu na bucha: “Envelheçam”.

Pois é, com a grande ruptura no equilíbrio entre o Brasil rural e o urbano (na metade dos anos 70, quando a geada de 1975 levou à erradicação dos cafezais no interior de São Paulo e Paraná, gerando o fim do colonato), houve migração desenfreada para as grandes cidades, cuja infraestrutura, sobretudo nas inchadas periferias, o país não conseguiu absorver o contingente de mão de obra sem preparo educacional e laboral que migrou para as grandes cidades. E o país ficou velho sem ter ficado rico.


A fatia dos brasileiros com mais de 65 anos já representa 10,9% da população 22.169.101, com alta de 57,4% frente a 2010, quando esse contingente era de 14.081.477, ou 7,4% da população. Já o total de crianças com até 14 anos de idade recuou de 45.932.294 (24,1%) em 2010 para 40.129.261 (19,8%) em 2022, uma queda de 12,6%. Desde 1980, a fatia acima de 65 anos aumentou 172,5%. Já a fatia dos jovens com idade de zero a 14 anos encolheu 48,16%.

O vácuo da ausência do Estado

O pior é que, nas três últimas décadas, não foi possível recuperar o tempo perdido, com políticas públicas assertivas, o que deixou de ser feito nos anos 80 e 90, quando a crise da dívida externa e da hiperinflação tirou o poder de arbitragem do Estado. A falta de atuação do Estado abriu caminho para o narcotráfico ampliar seus tentáculos em aliança com milicianos e a banda podre das polícias civil e militar. Por sinal, o Legislativo ganha cada vez mais representação desta gente, que controla o voto nos territórios que dominam. O comportamento extravasou para as Forças Armadas, como reavivado no sumiço de 21 metralhadoras no Quartel do Exército em Barueri (SP). O Judiciário também se corrompeu.

O presidente Lula falou disso, “en passant”, quando disse, aos jornalistas, que não seria possível cumprir a meta de déficit fiscal (primário, ou seja, receitas menos despesas, sem contar os juros da dívida) em 2024, tais as demandas para o governo corrigir distorções na área social (saneamento, habitação, transportes urbanos e infraestrutura, sem falar na questão da segurança). O déficit zero tranquilizaria o mercado financeiro e os investidores, cujos ganhos com os juros da dívida passam dos R$ 500 bilhões. É uma “Escolha de Sofia” já explicitada por Lula. Na segurança, o governo federal fará maior cerco das Forças Armadas nas fronteiras e nos portos e litoral. No Rio, são alvos os portos de margens das baías de Guanabara e de Sepetiba, com extensão à Costa Verde, onde os traficantes e milicianos atuam sob disfarce nos ancoradouros da região. As polícias Federal e a Rodoviária deviam ser mais rigorosas nas estradas e nos pedágios, identificando carros suspeitos para averiguação adiante. Mas as bandas podres precisam ser expurgadas. As suspeitas de infiltração são tantas que a Polícia Civil agiu na “moita” esta semana, na ação de prisão e morte do miliciano que provocou a reação da milícia da Zona Oeste, por temer vazamento da operação por parte da PM. Depois da rebelião, a PM foi acionada. Mas já era tarde para impedir o incêndio dos ônibus.

O pano de fundo trazido pelo Censo merece reflexão de todos, pela necessidade de correção de rumos nas políticas públicas. Será que estão ainda válidas as premissas fixadas na Constituição de 1988, quando houve maior repartição do Orçamento para Educação e Saúde? Que faixa etária merece mais atenção nas escolas, ensino profissionalizante e universidades. Pediatria ou geriatria na Saúde? E a Previdência, como garantir aposentadorias no futuro com menos contribuintes para bancar os aposentados?

GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)

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