CLARA MATTEI E A LÓGICA DAS POLÍTICAS DE AUSTERIDADE

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Há longo caminho de sacrifícios, de renascimento da ultradireita, de novas trombadas, até que caia a ficha do país, se ele não se esfacelar

Com a edição em português prestes a ser lançada pela editora Boitempo, o livro  “A ordem do capital – como economistas inventaram a austeridade e prepararam o caminho para o fascismo”, da italiana Clara Mattei ajuda a entender, de forma claríssima, os esforços de Fernando Haddad pelo déficit zero, a tal “lição de casa” brandida por Pedro Malan, Antonio Palocci, Henrique Meirelles, a teoria do choque de Joaquim Levy.

O tema está se tornando ponto central nas discussões da macroeconomia mundial. Por aqui, foi tratado por André Araújo – nosso querido colaborador, falecido recentemente -, em seu portentoso, “Moeda & Prosperidade – o impasse do crescimento na política de estabilização” -, um livro de 900 páginas, que passou despercebido quando foi lançado, há cerca de 15 anos, antecipando uma discussão central para os rumos da democracia.

O ponto central está no primeiro parágrafo do livro de André: “O crescimento econômico é compatível com a estabilidade natural de uma economia madura, mas historicamente é incompatível com um Plano de Estabilização Monetária. Um plano artificial de estabilização, como o Plano Real, necessita da estagnação da economia para se impor. O crescimento significa o fim do Plano de Estabilização”.

Gênio da observação empírica, no início do século 20 Manoel Bonfim já entendera o jogo da estabilização, logo após o Encilhamento causado por Rui Barbosa e a política de austeridade de Campos Salles. A elite domina o Estado e monta suas jogadas. Quando elas falham, recorrem a um especialista, o “financista”, que diz que aprendeu na Europa as últimas novidades da ciência, e impõe sacrifícios ao país. E o que era uma crise do Estado, passa a ser uma crise do país.

A teoria dos déficits gêmeos

No início dos anos 90, com o país mal saído do período estatal da ditadura, o então jovem e promissor economista Edmar Bacha difundia a teoria dos déficits gêmeos, que mostrava a lógica das políticas de austeridade.

Toda a lógica consistia em legitimar o livre fluxo de capitais, em cima da chamada teoria de transbordamento, tão velha quanto o capitalismo. Dizia ela que, deixando os capitais livres, depois de desenvolverem os países centrais, eles transbordariam para a periferia, espalhando o desenvolvimento por todo o mundo.

O resultado foi a longa estagnação da economia nas décadas seguintes, devido às instabilidades cambiais trazidas pelo capital-gafanhoto – aquele que procurava países “baratos”, faziam a farra e, depois, saíam quando percebiam que os preços bateram no teto. Aliás, a industrialização brasileira começou quando o Senhor Crise se apresentou, no início dos anos 30, obrigando a uma moratória que fez com que os capitais, sem poder sair, descessem à terra e financiassem a industrialização.

A lógica de Bacha era outra. O déficit externo é provocado pelo déficit interno – que aquece a economia mais do que ela consegue financiar-se. Então, se houver problemas nas contas externas, e nas oscilações do câmbio, em vez de restrições ao capital especulativo, o caminho seria a política de austeridade reduzindo o crescimento e, com isso, a necessidade de importações, e equilibrando as contas pela recessão.

Os trabalhadores eram sacrificados – e desmobilizados pelo fator crise -, as empresas do setor produtivo afetadas pela recessão, a própria receita fiscal prejudicada, para garantir o lucro do capital especulativo, remunerado pelos juros altos e pela recomposição das reservas cambiais. E, em última instância, pela ajuda do Fundo Monetário Internacional.

Na crise do final de 1998, o Ministro da Fazenda Pedro Malan negociou um financiamento do FMI. Não foi para garantir importações essenciais, para estabilizar a moeda: foi para dar uma porta de saída aos capitais especulativos que haviam entrado no período anterior para se beneficiar das mais altas taxas de juros da história. Gastou todos os recursos e deixou a bomba explodir para os brasileiros.

O grande saque

O grande saque contra a economia brasileira foi praticada desde o plano Real até o momento em que o governo Lula conseguiu acumular reservas cambiais robustas.

Consistia no seguinte:

  1. Livre fluxo de capitais e juros elevados atraíam capital de arbitragem. O investidor tomava dinheiro barato em outros países e trazia para o Brasil, para usufruir as taxas extraordinariamente elevadas da economia brasileira.
  2. O fluxo de dólares provocava uma valorização do real.
  3. A valorização era constante e encarecia as exportações e barateava as importações, gerando déficits comerciais.
  4. Quando os déficits chegavam perto da moratória, obtinha-se um financiamento do FMI para garantir a saída dos especuladores e havia uma desvalorização cambial.
  5. Como ocorreu uma valorização do real no período, os especuladores conseguiam adquirir mais dólares na saída, ampliando seus ganhos
  6. No final da linha, a desvalorização produzia inflação, levando o Banco Central a aumentar os juros. Ao mesmo tempo, ajudava a equilibrar as contas externas, reduzindo o risco cambial.
  7. Aí os capitais voltavam de novo, ganhando nos juros e na nova rodada de apreciação do real..
  8. Por outro lado, a economia estagnada reduzia o poder de barganha dos sindicatos, fazendo a conta ser paga pelos empregados e pelas empresas do setor produtivo.

O livro de Clara Mattei é um fio condutor para entender as raízes dessa tragédia secular que, no fim da linha, acaba levando ao fascismo. E permite entender os pactos entre grande capital e regimes como o que Bolsonaro-Guedes pretendia implantar no país.

O livro é recheado de exemplos:

  • Em março de 2020, durante os primeiros dias da pandemia de covid-19, o governador democrata de Nova York, Andrew Cuomo, anunciou, como parte do orçamento estadual, planos de reduzir em 400 milhões de dólares os gastos do Medicaid com hospitais. Foi um anúncio espantoso: às portas de uma pandemia, um dos políticos mais importantes do país informava ao público o plano de restringir os pagamentos aos hospitais que atendem a população mais pobre e vulnerável de Nova York. “Não podemos gastar o que não temos”, explicou
  • Em outubro de 2019, após o anúncio do aumento na tarifa de metrô de Santiago, no Chile, os cidadãos tomaram as ruas para protestar – não apenas por questões de transporte, mas em resposta aos custos públicos cumulativos de cinquenta anos de privatizações, arrochos salariais, cortes nos serviços públicos e marginalização da mão de obra sindicalizada, processos que haviam praticamente consumido a vida e a sociedade para milhões de chilenos. Diante das centenas de milhares de manifestantes nas ruas, o governo do Chile respondeu com lei marcial ao estilo de uma ditadura, incluindo uma série profundamente inquietante de demonstrações de força policial que durou semanas.
  • Em 5 de julho de 2015, 61% dos eleitores na Grécia aprovaram um referendo contrário ao plano de resgate financeiro do Fundo Monetário Internacional e da União Europeia que havia sido proposto para o enfrentamento da dívida pública grega. Oito dias depois, e apesar do referendo público, o governo grego, ainda assim, assinou o acordo, aceitando um empréstimo emergencial que limitava por três anos o modo como o país poderia gastar dinheiro com a população: a Grécia teve de impor novas reduções nas aposentadorias, elevar os impostos sobre o consumo, privatizar serviços e indústrias e implementar a redução salarial para o funcionalismo público. Dois anos depois, o governo grego privatizou os dez principais portos do país e colocou muitas de suas ilhas à venda.

A parceria com o fascismo

Os estudos de Mattei concentram-se na Itália e Inglaterra de 1920, início da acensão do fascismo italiano. E constatam o mesmo que Manoel Bomfim algumas décadas antes:

“O paradigma da “economia pura” teve êxito em estabelecer esse campo como a ciência politicamente “neutra” das diretrizes e do comportamento individual. Ao dissociar o processo econômico do político–isto é, ao apresentar a teoria econômica e conceituar os mercados como livres das relações sociais de dominação–, a economia pura restaurou uma ilusão de consentimento interno aos sistemas capitalistas, permitindo que essas relações de dominação fossem, por sua vez, mascaradas como racionalidade econômica”. 

Assim como explica a parceria grande capital-bolsonarismo:

“É revelador que o período de 1925 a 1928 corresponda tanto ao auge da consolidação do regime fascista quanto aos investimentos financeiros estadunidenses e britânicos em títulos do governo italiano. A economia de austeridade da Itália fascista forneceu a esses países liberais um local rentável para depositar seu capital, o que muito os satisfazia. Quando chegou a hora de lidar com Mussolini e a Itália fascista, o eixo liberal formado por Grã-Bretanha e Estados Unidos construiu uma prática de dissonância: ignorar a política repulsiva do país, que depois de 1922 passou a se fundamentar na violência política patrocinada pelo Estado e, ao mesmo tempo, a aproveitar as oportunidades da economia italiana estabilizada.”.

Enquanto a ignorância econômica do Ministro Luís Roberto Barroso, em Londres, insiste na “teoria do transbordamento” – deixando o mercado livre, haverá um crescimento que transbordará para as demais classes -, Mattei conta:

“Um século depois, a exploração causada pela estagnação salarial–que mostro ser o mais insolúvel legado da austeridade–persiste como o principal motor de uma tendência de desigualdade global em que um país como a Itália (que sofre muito menos com a desigualdade que os Estados Unidos) viu a riqueza dos 6 milhões de pessoas mais ricas aumentar 72% nos últimos dez anos. Os 6 milhões mais pobres do país tiveram sua riqueza diminuída em 63% ao longo do mesmo período. Os dados oficiais revelam que, em 2018, 5 milhões de pessoas (8,3% da população italiana) viviam na pobreza absoluta, isto é, eram privadas dos meios necessários para viver com dignidade. Os números em 2020 pioraram: 5,6 milhões de pessoas, 9,4% da população, vivem na pobreza absoluta. Na Grã-Bretanha, a situação não é menos sombria: 30% das crianças do país (4,1 milhões) viviam em pobreza relativa em 2017-2018, e 70% dessas crianças viviam com famílias trabalhadoras. A partir de 2020, o número de crianças pobres aumentou para 4,3 milhões”.

Ou seja, as políticas de austeridade passaram a serem aceitas como científicas, como naturais. A crise de 2008 poupou o capital e deixou milhões de pessoas sem casa e sem emprego. A crise de pandemia fez o Banco Central injetar bilhões de reais para salvar carteiras de crédito do setor bancário, e migalhas para atender à população.

Ainda haverá um longo caminho de sacrifícios, de renascimento da ultradireita, de novas trombadas, até que caia a ficha do país, se ele não se esfacelar nas próximas décadas.

Mas, por enquanto, pode-se festejar o arcabouço fiscal e o prêmio do Latin Finance dado ao nosso Ministro da Fazenda e ao presidente do Banco Central. Afinal, ser premiado por uma revista de Miami é uma glória inesquecível.

LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)

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