O mês de setembro acabou, mas excelente artigo publicado esta 2ª feira, 2 de outubro, no “Valor Econômico”, relembra que o mês do início da primavera foi também o marco de uma das maiores crises do capitalismo global – a crise financeira do sub-prime de hipotecas dos Estados Unidos, que começou a fazer água em julho de 2008 e explodiu em 15 de setembro de 2008, com a falência do Leman Brothers. O evento gerou uma década de problemas econômicos e sociais, dos quais não nos livramos até a Covid piorar tudo.
O artigo é de autoria de Antara Haldar, uma indiana, nascida em Mumbai, que é professora associada de estudos jurídicos empíricos na Universidade de Cambridge, e membro visitante do corpo docente da Universidade de Harvard.
Consultora da ONU, ela não esquece de estabelecer a correção com outro fato econômico marcante para setembro, ocorrido há 50 anos: o experimento econômico de ultra liberalização da economia chilena promovida no regime de Augusto Pinochet, que derrubara o governo de Salvador Allende, executado por jovens economistas chilenos, formados e pós-graduados em Chicago, e que arrastaram outros entusiastas das teorias de Milton Friedman a ir para Santiago.
Entre os economistas brasileiros que participaram dos planos do governo Pinochet estava um grupo liderado pelo falecido ex-presidente do Banco Central, Carlos Geraldo Langoni, que atraiu outro aluno de Friedman, o ex-ministro da Economia de Jair Bolsonaro, Paulo Guedes.
Antara Haldar – que já escreveu artigos em parceria com Joseph Stiglitz, economista do MIT, Prêmio Nobel de Economia de 2001, um dos maiores críticos de Friedman e da globalização, tem uma abordagem fundamentalmente interdisciplinar. Ou seja, procura ultrapassar a dicotomização entre as abordagens “direito e economia” e “direito e sociedade” – bem como colmatar a lacuna entre teoria e empirismo que caracteriza grande parte da atual literatura sobre desenvolvimento.
O seu trabalho abrange os temas das microfinanças e outros mercados de crédito, titulação de terras e direitos de propriedade, a relação entre o direito formal e informal (incluindo o papel da confiança) e a dinâmica institucional evolutiva.
No seu artigo ela procura marcar a distância entre os adeptos da teoria de Friedman (do Estado mínimo e da liberalização das forças do mercado) e os seguidores de John Maynard Keines, que defendia a intervenção do Estado para corrigir as imperfeições da economia de mercado).
“Para Friedman, nenhuma outra patologia econômica merecia mais preocupacão que a inflação, que ele via como uma espécie de febre macroeconômica. O remédio, que remetia à sabedoria médica tradicional, era curá-la à base de fome ou sangramento – nesse caso, reduzindo o fornecimento de dinheiro e deixando a economia suar a doença. Em comparação, seu arqui-inimigo, John Maynard Keynes, se preocupava mais com os fatores que faziam uma economia ter um desempenho abaixo de seu potencial. Esses casos lembravam mais o resfriado tradicional, em que os pacientes precisam ser alimentados e receber líquidos em abundância, nesse caso por meio de gasto público”.
Haldar recorda que, “após a estagflação da década de 1970 [em parte pela escalada do petróleo que deixou de ser insumo barato em setembro de 1973], que representou uma crise para o keynesianismo, a receita de Friedman de disciplinar os gastos do governo e liberar os mercados por meio da desregulamentação e da liberalização do comércio foi adotada em grande escala. Ela foi implementada não só no Chile, mas também nos Estados Unidos, na gestão do presidente Ronald Reagan, e no Reino Unido, sob o comando da primeira-ministra Margaret Thatcher, na década de 1980.
O cerne da questão
Na crítica mais fundamentada nos erros da ortodoxia, ela aponta que “As prescrições de políticas econômicas mais limitadas dos economistas comportamentais foram aceitas a contragosto na teoria, com todos reconhecendo agora que as ações dos indivíduos e das empresas com frequência se desviam da racionalidade econômica”.
“Setembro de 2023 marca dois acontecimentos importantes na história da economia: o 50º aniversário do evento que levou à ascensão da “Escola Econômica de Chicago” e o 15º aniversário daquele que precipitou sua queda”.
“Meio século atrás, os “Garotos de Chicago” embarcaram num experimento no Chile pós-golpe de Augusto Pinochet que se tornaria a estrutura de política econômica dominante do nosso tempo, introduzindo uma série de medidas radicais inspiradas pelas ideias de Milton Friedman e do resto da Escola de Chicago”.
A lembrança vem bem a calhar quando estamos a 20 dias do 1º turno da eleição da vizinha Argentina, com as pesquisas divididas entre o ultra-liberal – mais anarco-capitalista do que discípulo da Escola de Chicago, Javier Milei, e o ministro da Economia, ligado ao populismo da escola peronista Sérgio Massa.
Muito da turbulência recente do mercado de câmbio do Brasil vem da Argentina. O país tem tradição do uso de dólar como moeda de reserva das famílias e empresas. E Milei promete (num país sem reservas) adotar o dólar como moeda e acabar com o Banco Central!
Quando a aventura chilena – que, há muito, já fez água em um dos totens (a reforma da Previdência Social, que adotou regime de capitalização, rejeitado na reforma patrocinada por Paulo Guedes, em 2019) – surgiu, em 1973, a Guerra Fria” estava no auge, com a efervescência da Guerra do Vietnam. O inimigo era a União Soviética. A China não entrara no mapa econômico.
Temendo que o regime de Fidel Castro influenciasse toda a América Latina, os Estados Unidos patrocinaram golpes de Estado à direita no Brasil, Argentina, Peru, Bolívia, Colômbia, Uruguai, e então no Chile, que elegera o comunista Salvador Allende, alvo de gigantesco boicote das classes produtoras, com apoio da CIA e das grandes multinacionais americanas que atuavam no país. Reformas liberalizantes de sucesso no Chile seriam uma “vitrine” para a região.
Qual o balanço feito por Antar Haldar?
O liberalismo que não deu certo neste século na economia chilena, um país hoje com 20 milhões de habitantes, menos da metade dos 45 milhões da Argentina e 40% dos 50 milhões da Colômbia, o 2º mais populoso após o Brasil (216 milhões), tem tudo a ver com a mudança de escala na economia global provocada pela entrada da China no jogo econômico.
Primeiro, as grandes matrizes dos Estados Unidos, Europa e Japão acharam que era bom produzir a custos baixos na China. Com o tempo, os chineses passaram a fazer produtos de qualidade e com a escala do gigantesco mercado doméstico que se alargou neste século, deixaram os países com pequena escala econômica, devido ao tamanho do seu mercado interno (e da população) em dificuldades. A Europa se salva com a união aduaneira da União Europeia. O Reino Unido soltou a boia pelo Brexit e está se afogando.
Isso deveria servir de alerta aos argentinos que estão abraçando as propostas sem base na realidade de Javier Milei, espécie de amálgama de Paulo Guedes e Jair Bolsonaro. A diferença é que à falta de experiência política-administrativa de Bolsonaro, Milei junta a sua fraca experiência como economista.
Por isso, Antar Haldar finaliza seu artigo com uma provocação:
(…) Onde isso deixa a ortodoxia econômica dos últimos 50 anos? O prognóstico não é bom. Com um pé já na cova, os expoentes restantes da Escola de Chicago fariam muito bem de acertar as contas com seu passado chileno sangrento. Se as principais hipóteses do neoliberalismo não têm equivalência com os resultados do mundo real, os economistas têm o dever com eles mesmos – e acima de tudo com o público – de reconhecer sua verdadeira natureza”.
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)