Do ponto de vista do posicionamento político, o presidente Lula e o ex-presidente Tancredo Neves eram muito diversos. Até pela idade e experiência na vida pública. Mas a circunstância do adiamento de ambas as operaões foi lembrada pelo próprio Luís Inácio Lula da Silva esta semana, antes de sofrer uma complexa cirurgia de artroplastia total de quadril à direita, para a substituição de ossos da articulação, que se desgastaram, por uma prótese. Lula disse que chegou a pensar em fazer a cirurgia, para a aliviar a dor que o incomodava desde a campanha eleitoral, entre a eleição e a posse. Mas preferiu adiar, tendo em vista o ambiente hostil mobilizado pelo presidente derrotado contra a sua posse.
A intuição ou o anjo da guarda de Lula estavam alertas e perceberam os riscos dos acampamentos em frente aos quarteis, dos bloqueios de estradas federais, a baderna na noite de 12 de dezembro, em Brasília, quando houve a diplomação (antecipada do dia 18) do presidente eleito e do vice, Geraldo Alkimin, a tentativa da explosão de um caminhão tanque de querosene de aviação na véspera do Natal no aeroporto de Brasília, e a infame tentativa de golpe no domingo, dia 8 de janeiro (uma semana após a posse), com a invasão e depredação da sede dos três Poderes, em Brasília, sob a inação das forças de segurança do DF e as do governo federal. Tudo estava preparado para gerar o caos e forçar a implantação da Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que implicaria na intervenção das Forças Armadas (era a esperança de Jair Bolsonaro virar a mesa da derrota em 30 de outubro, que não reconheceu até hoje publicamente, e continuar presidente). Lula temia, diante dos sucessivos ensaios de golpe, que ficaria sob a tutela das Forças Armadas e não governaria. Por isso, não mordeu a isca da GLO. Em vez disso, decretou intervenção federal na Segurança do Distrito Federal, e o Supremo Tribunal Federal afastou o governador Ibaneis Rocha (MDB-DF) por 60 dias.
Só agora, passados quase 9 meses, com um princípio de pacificação no país, se submeteu ao bisturi que pode afastar as dores e a irritação que interferiam no dia a dia da articulação política e providências administrativas do governo.
Quando Tancredo Neves foi eleito no Colégio Eleitoral, em 15 de janeiro de 1985, pelo MDB, tinha 75 anos (mais que Lula, que agora tem 77, e era apenas um sindicalista, com 40 anos incompletos, que acabara de fundar o PT e só viria a se candidatar e ser eleito deputado federal pela Constituinte em 1986). Tancredo tinha uma vasta experiência política e administrativa. Mineiro de São João Del Rei, criou-se na escola do velho PSD, que dominou a política brasileira por mais de meio século, até Getúlio Vargas, de quem tinha sido ministro da Justiça e Negócios Interiores, criar o PTB. Deputado federal, foi escolhido como o Primeiro-Ministro na introdução do Parlamentarismo no país. Era uma tentativa para contornar o impasse político que quase levou a uma guerra civil, em agosto de 1961, após a renúncia tramada por Jânio Quadros no dia 25 (Dia do Soldado), quando o vice-presidente, João Goulart, eleito pelo PTB e odiado pelas Forças Armadas, estava em visita oficial à China. Jânio encenara o golpe. Como Jango demoraria a voltar ao Brasil e havia resistência entre os militares, ficou esperando na base aérea de Cumbica (atual aeroporto de Guarulhos-SP) a recusa dos militares a seu gesto. Era o blefe para ampliar seus poderes perante um Congresso hostil. Mas o presidente do Senado, Aureo de Moura Andrade, leu a Carta de Renúncia (na verdade, um pequeno bilhete com timbre da Presidência da República e assinatura de Jânio da Silva Quadros) e o cargo foi declarado vago. Imediatamente, o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola (PTB), convocou a “Cadeia da Legalidade” para defender a posse de Jango, que demorou quase uma semana para voltar ao Brasil. No ambiente conflagrado, com divisão das Forças Armadas, surgiu a tentativa de conciliação do parlamentarismo. O regime, criado de supetão, não deu certo. As mesmas forças políticas que estavam divididas no Congresso não entraram em acordo. Depois de três gabinetes, Jango criou a campanha de um plebiscito para a volta do presidencialismo. Que voltou em fevereiro de 1963. Mas as resistências a Jango só se acirraram até desembocar no golpe de 31 de março/1º de abril de 1964.
Por isso, quando Tancredo, já tendo sido deputado federal, governador e senador, após ser eleito por 480 votos (de uma coligação do MDB com o Partido da Frente Liberal, dissidência do PDS, o partido oficial, e ainda votos do PDT de Brizola) contra os 180 votos recebidos pelo candidato do partido oficial, o PDS, pelo qual concorria o deputado federal Paulo Maluf (SP), deu uma entrevista coletiva em Brasília, na qual anunciava a ideia de convocar uma Assembleia Nacional Constituinte para, em dois anos, preparar uma nova Constituição e, posterior eleições gerais e ainda uma viagem aos Estados Unidos e países da Europa para retomar as pontes com os regimes democráticos, após 21 anos de ditadura, já não conseguia disfarçar o incômodo e as dores causadas pela diverticulite. Uma das ideias de Tancredo era nomear dois “embaixadores plenipotenciários”, para renegociar a dívida externa, encalacrada desde dezembro de 1982, respectivamente, o ex-embaixador e banqueiro Walter Moreira Salles, nos Estados Unidos, e, na Europa, o ex-embaixador em Londres, Roberto de Oliveira Campos, o avô do atual presidente do Banco Central.
A imagem não me sai da cabeça: de terno, Tancredo sempre colocava a mão por baixo do cinto comprimindo o locai da inflamação. Temendo que os militares, que não engoliam o vice José Sarney, chamado de “traidor” por ter renunciado à presidência do PDS (ele apoiava, com Antônio Carlos Magalhães, a candidatura do ministro do Interior, coronel Mário Andreazza), não lhe dessem posse, Tancredo adiou o mais que pôde a cirurgia.
O último presidente da Ditadura, o general João Batista Figueiredo, passou a odiar Sarney. Não esteve presente à posse no Palácio do Planalto para lhe passar a faixa presidencial. Tinha a companhia birrenta do então ministro do Exército, general Walter Pires. Mas outro general Pires, o ministro do Exército escolhido por Tancredo Neves, Leônidas Pires Gonçalves, e o chefe da Casa Civil, João Leitão de Abreu, que conhecia um mínimo de leis constitucionais (mesmo sob um regime de exceção em seus últimos suspiros), bateram pé firme e disseram a Sarney: “É você que tem de assumir”.
Quase quatro décadas separam os dois episódios. E lá se vão 62 anos desde a farsa de Jânio Quadros, mas os espíritos antidemocráticos que tramaram contra Getúlio Vargas, JK, e produziram a longa noite da Ditadura, seguem assombrando o país. Mas prevaleceu o Estado Democrático de Direito, restabelecido pela Constituição de 1988, que o PT de Lula não assinou e que, agora, quando a Democracia prevaleceu, ele deve reconhecer que foi um erro.
A gangorra dos juros
Por falar em Roberto Campos Neto, o presidente do Banco Central que levou ao extremo a condição de independência da Autoridade Monetária perante o Poder Executivo, para só esta semana ter a 1ª reunião com o presidente Lula, com a intermediação do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, aqui vai uma conta dos erros de sua gestão ao manter os juros reais (descontada a inflação) excessivamente altos nos últimos dois anos. O fato foi reconhecido num box e em gráfico (pouco explícito) no Relatório Trimestral de Inflação, divulgado pelo Banco Central dia 28 de setembro, na manhã do encontro com Lula.
Em dois anos, de agosto de 2021, quando os gastos acumulados com os juros da dívida somavam, em 12 meses, R$ 335,703 bilhões, para agosto de 2023, quando a taxa Selic teve a 1ª queda em 2 de agosto, de 13,75% para 13,25% e agora está em 12,75, a conta subiu para R$ 689,380 bilhões.
Ou seja, como gosta de dizer o jornalista Élio Gaspari, o andar de cima, que tem recursos para fazer aplicações financeiras reguladas pela taxa Selic, nadou de braçada e ganhou R$ 353,677 bilhões.
Nem somando as verbas extraordinárias do Auxílio Emergencial criado na pandemia, aos gastos turbinados do Bolsa Família se chega a essa conta.
E vale dizer que os investidores milionários que têm fundos exclusivos (gestão individual exclusiva num banco ou “asset management”) não pagavam Imposto de Renda, como os comuns investidores em fundos de investimento, sujeitos à tributação semestral do “come-cotas”. O mesmo acontecia com os brasileiros que mantêm na pessoa física, ou por interpostas empresas, “off-shores”, que nada mais são que empresas de gavetas em paraísos fiscais, que, isentas de tributação, ficam fazendo arbitragens com a diferença de juros entre o que paga o Tesouro Nacional e o Tesouro dos Estados Unidos.
Ninguém reclamou dos ganhos excessivos da especulação financeira, causados pelo fato de ter o Banco Central, através do Comitê de Política Monetária (Copom) mantido os juros elevados em 2022 e 2023 para derrubar a inflação. Ela caiu em 2022 e 2023 não por êxito do Copom. Ao contrário.
No ano passado a inflação anual acumulada desceu de 12,13% em abril, para 5,79% em dezembro, porque Paulo Guedes cortou em fins de junho os impostos de combustíveis, energia elétrica e comunicações para tentar melhorar as chances eleitorais de Bolsonaro.
Já em 2023, o Copom, manteve os juros altos, temendo o repique inflacionário da volta dos impostos. Lula e Haddad não fizeram isso. Adiaram e espaçaram o retorno dos impostos, em níveis mais baixos. A supersafra de grãos derrubou os preços da alimentação em domicílio, e a nova política de preços da Petrobras, em lugar do reajuste automático aos preços internacionais pela PPI, evitou uma escalada dos combustíveis).
Os juros altos estão custando bilhões ao Tesouro Nacional, às famílias endividadas, à indústria de bens de consumo e às empresas comerciais. Á parte as Americanas, o vermelho é quase geral nos balanços ante a retração do consumo e o alto custo do giro dos estoques.
Mas bastou Fernando Haddad propor tributar essa gente, como os demais investidores, para refluir a onda de simpatia que Haddad conquistara com a promessa de controle dos gastos no Arcabouço Fiscal. Acontece que a tributação sobre quem ganha dinheiro com sofisticadas variações de juros no mercado financeira seria justamente uma das fontes para bancar os gastos com governo com o andar de baixo em programas sociais como Bolsa Família.
Para que serve o Censo?
O governo está absolutamente certo em querer cortar um pouco dos gastos da Saúde, fugindo aos limites rígidos estabelecidos pela Constituição para Saúde e Educação. Lá se vão 35 anos e três Censos Decenais para mostrar que as composições etária e da pobreza da população brasileira se modificaram.
Se antes a taxa de natalidade crescia a 1,8% ao ano, agora está abaixo de 0,7%, é hora de se verificar, pelos dados do Censo, que atenção à saúde está menos na pediatria e mais na terceira idade. Isso se aplica à Educação. Os orçamentos devem ser maleáveis à realidade do país, mostrada pelo Censo.
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)