Contribua usando o Google
8/1 foi fruto de uma doença social e parte dos afetados foi vítima, que rezava para pneus e acenava para discos voadores
Tem algo de profundamente errado no julgamento das manifestações de 8 de Janeiro.
Primeiro, os pontos positivos:
- Tem que tratar com severidade qualquer ataque à democracia.
- As operações de 8 de Janeiro tiveram o objetivo de provocar uma GLO (Operação de Garantia de Lei e Ordem), visando permitir uma intervenção militar.
A partir daí, entra-se em uma discussão penal que me deixa completamente confuso. Sigo os ensinamentos do ex-ministro Sidney Sanches quando, nos longínquos anos 80, o consultor geral Saulo Ramos tentava me enrolar com um jurisdiquês empolado:
- Analise a lógica do que está sendo discutido. Se constatar que está errado, não é a interpretação jurídica que definirá que é certa.
Refiro-me ao conceito de crimes de multidão. O que diz a teoria:
“No caso de crimes de multidão, a teoria da cumplicidade eventual pode ser aplicada para responsabilizar pessoas que participam da multidão, mesmo que não tenham a intenção de cometer o crime. Por exemplo, uma pessoa que está em uma multidão que invade um prédio pode ser responsabilizada pelo crime de invasão de domicílio, mesmo que não tenha a intenção de invadir o prédio”.
Ou seja, não há a necessidade de individualizar o crime: todos são culpados pelo mero comparecimento ao local.
Vamos por partes.
Que houve uma conspiração, não se tenha dúvida. Aliás, a conspiração mais explícita da história, a ponto da filha adolescente do coronel Cid mandar uma mensagem gravada para uma amiga, explicando o golpe: levar o povo para a rua, fazer uma bagunça e provocar uma GLO. Os argumentos dos ministros bolsonaristas são humilhantes para o Supremo.
A questão central é analisar a organização e, especialmente, os fatores psicossociais envolvidos nessa história, para separar responsáveis e vítimas.
Na última década, o país foi vítima de uma doença social – aliás, devidamente analisada por Sigmund Freud no livro “Psicologia das Massas”, nos anos 20. Forma-se uma frente em torno de alguma liderança alucinada, especialmente quando há mudanças nos mercados de opinião. O sentimento de grupo cria a sensação de que todos os limites podem ser superados. A partir daí, o grupo fica suscetível a teorias conspiratórias das mais esdrúxulas. E torna esse público massa de manobra para todo tipo de oportunistas.
Dito isso, para não se cometer injustiças, há que se identificar adequadamente os principais atores do espetáculo dantesco.
As responsabilidades por esse fenômeno são múltiplas e envolvem as principais instituições do país:
Mídia – foram 15 anos de discurso de ódio e de delenda o inimigo. De 2005 a 2020 foi um volume incessante diário de ódio incutido na veia da opinião pública.
Ministério Público Federal – desde Antonio Fernando de Souza a Rodrigo Janot, explorou de todas as maneiras o discurso de ódio e o álibi da anticorrupção, do mensalão à Lava Jato, como instrumento de poder.
Supremo Tribunal Federal – abriu caminho para a eleição de Bolsonaro, com votos vergonhosos visando tirar Lula da parada. A desmoralização começou com Joaquim Barbosa, no mensalão.
ONGs – das ONGs do Partido Democrata à ultradireita da Foxnews, houve o uso despudorado das redes sociais para mobilização da multidão contra um governo legitimamente eleito.
Forças Armadas – com papel central na eleição de Bolsonaro e, especialmente, na organização das manifestações próximas aos quartéis.
Evangélicos – várias igrejas evangélicas explorando a superstição para mobilizar politicamente os crentes.
Embaixo desses atores, diretamente afetados por eles, o lumpen, englobando pequenos empresários, aposentados, baderneiros, autoritários, senhores e senhores pios. Foi uma doença social e parte dos afetados foi vítima, que rezava para pneus e acenava para discos voadores.
Como colocar todos no mesmo balaio?
A organização do golpe
O golpe foi uma organização ampla, com personagens bem definidos.
Confira o esquema simples montado acima, por hierarquia de gravidade.
Na ponta, havia Bolsonaro e família, amparado pelos grupos de ultradireita da indústria de armas, cassinos e mineração financiando Steve Bannon.
Depois, os planejadores centrais, acantonados no Palácio do Planalto – provavelmente comandados pelos filhos e por Braga Neto. E, juntos, o Exército ajudando a organizar os acampamentos na frente de quartéis de todo o país.
Na ponta, havia a interlocução com planejadores regionais e financiadores. E, na ponta, o lúmpen, os aposentados, as senhoras rezadeiras, os que acreditavam ser patriotas.
Mesmo a ponta do esquema, os que atuaram em dezembro e no 8 de janeiro em Brasília, há distinções nítidas:
- Havia terroristas nos acampamentos, que planejavam inclusive jogar bombas no saguão do aeroporto de Brasília.
- Havia militares de várias patentes garantindo a presença desses terroristas nos acampamentos, mesmo depois de explicitadas suas intenções.
- Entre os que invadiram o Planalto havia tipos distintos. Havia militares, juízes, da reserva ou da ativa, advogados, cuja condição é agravante. Havia os provocadores profissionais. E havia os iludidos, achando que estavam salvando o país.
Pergunto: como colocar todos no mesmo balaio? E como aplicar indistintamente penas de até 17 anos sem individualizar a atuação?
No dia de hoje, a diversão dos comentaristas de TV foi desancar os advogados dos primeiros réus. Com exceção do vergonhoso ex-desembargador, eram advogados simples do interior, sem nenhum nível. O que significa isso? Que os réus não dispunham sequer de bons advogados para defendê-los.
A Nação institucional, então, aplica penas severíssimas a esse lúmpen, e vai dormir em paz, julgando que foi absolvida de todos seus pecados, sua responsabilidade na criação desse ambiente.
A maluquice maior desse julgamento é o fato de que os baderneiros de 8 de janeiro foram condenados a até 17 anos, e os terroristas que pretendiam explodir o aeroporto foram condenados de 5 a 9 anos de prisão.
E, assim, tem-se mais uma justiça de transição à brasileira.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)