Ex-juiz Baltasar Garzón em Santiago do Chile.. Imagem: EFE
O protagonista da decisão que em 1998 modificou a situação jurídica e social no Chile, após o longo processo de extradição do ditador.
O ex-juiz espanhol Baltasar Garzón ganhou atenção mundial em 1998, quando emitiu um mandado de prisão contra o ditador Augusto Pinochet. Garzón, em visita a Santiago para a comemoração do 50º aniversário do golpe de Estado, conversou com Página/12 sobre o significado dessa decisão. “Isso se refletiu em uma mudança na situação jurídico-social no Chile”.
–Seu pedido de prisão de Pinochet marcou um ponto de viragem para o Chile. Como você se lembra disso?
–No dia 16 de outubro deste ano completará 25 anos. No contexto dos 50 anos do golpe militar, é muito interessante porque talvez nesse momento não se perceba o que está acontecendo ou o significado concreto de emitir um mandado de prisão contra alguém que cometeu os atos mais atrozes da sua vida. país, que foi divinizado por uma parte da população e ainda o é, a tal ponto que a direita e a extrema-direita negam que tenha havido um golpe de Estado. Com o passar do tempo, percebe-se que teve grande relevância e que se refletiu em uma mudança na situação jurídico-social no Chile; Havia uma certa esperança de que pudesse haver uma reação contra aqueles que tinham todo o poder e o expandiram até aquele dia, no sentido de que não havia capacidade para processar crimes tão graves. Lembro-me perfeitamente que em janeiro de 2000, que foi o segundo turno entre Joaquín Lavín e Ricardo Lagos, o próprio Lavín (candidato da União Democrática Independente) pediu que Pinochet voltasse ao Chile para que pudesse ser julgado no país. Ouvir aquela expressão da direita, que havia crescido até o peito de Pinochet, dizia que algo estava mudando. Acho que foi aquele soco no estômago que o fez reagir. E foi também um apoio muito importante às vítimas e às organizações de direitos humanos que até então lutavam, como na Argentina, desde o início do golpe de Estado. Neste caso foi uma ação judicial de fora, e o maravilhoso e ao mesmo tempo incontrolável que aconteceu com o governo e as instituições chilenas é que não puderam fazer nada. Um juiz espanhol ordena a detenção de uma pessoa para um terceiro país, a Grã-Bretanha, dizendo: “Sim, eu prendo-o e iniciamos um processo de extradição”. Foi a tempestade perfeita para as instituições políticas chilenas.
–De qualquer forma, houve muita pressão e a Grã-Bretanha finalmente o libertou.
–Sim, eles pressionaram por 503 dias. Houve pressão política, queriam uma arbitragem internacional. A Grã-Bretanha libertou-o, mas ainda assim foi a tempestade perfeita para as vítimas e para a acção da justiça que neste caso funcionava pelo princípio da jurisdição universal. Eles não conseguiram detê-lo. Mesmo a decisão política da Grã-Bretanha não poderia ocorrer num momento anterior. O processo judicial teve que terminar e com muitos incidentes, mas foi finalmente acordado por Jack Straw (então Ministro do Interior) para continuar o procedimento em abril de 1999. A extradição foi ganha em 8 de outubro de 1999. Ronald Bartle decidiu a extradição para favor de Espanha por tortura, conspiração para tortura e tortura psicológica, como fiz na resolução para 2148 casos de pessoas desaparecidas. É a partir daí que se vê seriamente que avançava numa velocidade de cruzeiro que não ia parar. Um torpedo teve que ser lançado na linha d’água de extradição e esse lançamento foram os pareceres médicos que mais tarde se mostraram não tão corretos quanto diziam. Pinochet foi capaz de resistir ao processo judicial. Lembro-me que só havia uma condição, que era que não houvesse sessões experimentais com duração superior a quatro horas para um problema que ele tinha nas pernas, mas fora isso ele estava perfeitamente qualificado. O que aconteceu? Pois bem, foi aí que a política e o acordo de um país com outro tiveram impacto. A Espanha não agiu contra isso, não fez nada para impedi-lo porque naquele momento fiquei neutralizado pelo facto de os meus pedidos terem sido atrasados ou cruzados. Mas o diabo sabe mais porque é velho do que porque é um demônio. Como havia outros países que também estavam de visita, recorremos à Bélgica para solicitar as decisões que foram finalmente concedidas. Jack Straw, anos depois, disse que foi enganado e publicou um livro em 2013 dizendo que, com o que sabia então, não teria tomado essa decisão.
–E também quando viu Pinochet se levantando da cadeira de rodas e sorrindo…
–Mas claro. Aquela pancada no peito de Jack Straw chamou minha atenção. Pinochet era o mestre do disfarce, da aparência. Era típico da arrogância e ao mesmo tempo da covardia do ditador, porque não conseguiu enfrentar a justiça.
–Pinochet morreu sem ser condenado por violações dos direitos humanos no Chile.
-Sim, mas não podemos esquecer que ocorreu a reparação da ação judicial. Porque tanto pelo processo de extradição de Pinochet em Londres, como pela atuação do juiz Juan Guzmán Tapia aqui no Chile, no caso da Caravana da Morte e alguns outros, quando Pinochet retorna ao Chile perde a jurisdição, ele é processado, permanece em prisão domiciliar. Ele nunca mais foi livre até o dia em que morreu. Aí tem essa simulação de que ele estava doente, mas ele comete aquele ato de arrogância de aparecer num programa de um canal de Miami dizendo que estava bem, e aí a decisão do juiz é renovada e ele teria sido levado a julgamento, se não porque a morte vem. É verdade que já se passaram seis anos desde que ele voltou ao Chile em 2000, mas esse é outro capítulo de que se pode falar, a demora na justiça. Porque já se passaram 50 anos do golpe militar e no dia 28 de agosto foi proferida a sentença final pelo assassinato de Víctor Jara. 50 anos…
–E isso por que? Por que houve tanta impunidade nestes anos?
–Houve impunidade, houve resistência por parte dos próprios perpetradores e das forças de inteligência ou da polícia militar a que pertenciam, porque nunca houve colaboração por parte do exército como não houve na Argentina, apenas como normalmente se impõe o Estado de Direito, a lei do silêncio, a omertá entre todas elas. A mí me llama la atención, y esto es una reflexión muy crítica frente a las instituciones democráticas: se cede a temas como los de la amnistía, la media prescripción y demás, y falla un elemento fundamental para que se adopten esas medidas, que es a verdade. Se não houver verdade não pode haver justiça transicional, é um elemento essencial. E aqui não houve verdade porque há um partido que se recusou a fazer qualquer colaboração, qualquer avaliação e ainda há ficheiros secretos.
–Agora acaba de ser lançado um plano de busca aos desaparecidos, que responde um pouco ao que você tem dito.
–Mais vale tarde do que nunca. O que me entristece é a atitude da direita, da extrema direita ou de qualquer opção política que seja. Se estamos numa democracia, presume-se que sejam forças democráticas, embora eu tenha as minhas dúvidas quanto à extrema-direita. Eles devem contribuir e concordar com esse plano. Podem melhorar, mas o que não se pode fazer é pedir que as vítimas não sejam procuradas. É uma aberração antidemocrática, involucionista, negacionista e é muito grave porque nenhuma democracia se sustenta com estas abordagens porque a garantia de não repetição não é cumprida. O que quero dizer com isto? Que deixemos a porta aberta para que algo semelhante aconteça novamente. O que está acontecendo é terrível, o que está acontecendo na Argentina também é terrível com Javier Milei e outros.
–Milei e sua companheira de chapa, Victoria Villarruel…
–Sim, a vice sempre exaltou os militares, agiu contra qualquer opção de compromisso crítico contra a ditadura e temos o exemplo recentemente quando atacou Estela de Carlotto, sua filha desaparecida. Você pode discordar, pode até insultar, mas não pode chegar à indignidade de alguém que está concorrendo à vice-presidência de um país ter essa filosofia de vida. É muito sério, mas não sei que mecanismo existe para dizer às pessoas para terem cuidado. Já sabemos aonde esse caminho nos leva. A história argentina é muito clara nisso. Cada vez que houve uma opção deste tipo, a única coisa que aumentou foi o neoliberalismo e terminou fatalmente. E aqui no Chile acontece exatamente a mesma coisa. Um país que tem sido exemplo de neoliberalismo,
–No Chile, os setores de direita relativizam as violações dos direitos humanos.
–Esse é o discurso do fascismo e da extrema direita. Deveria ser muito preocupante para os chilenos. Permanecer indiferente nestes momentos é quase ser co-responsável pelo que pode acontecer. Devemos bater à porta das forças progressistas. Algo está sendo feito de errado e algo precisa ser corrigido. É hora de integridade, de unir forças, de avançar. Não podemos estar em conflitos internos que só favorecem quem não tem problemas em ter alguns princípios hoje, outros amanhã e outros diferentes no terceiro dia, parafraseando Groucho Marx. Existem bons políticos e existem políticos maus. E nesta perversão incluo todos aqueles que colocam o seu próprio interesse antes do interesse dos cidadãos. Existem alguns com nome e sobrenome e seria necessário refletir. Se não conseguirmos transmitir isso, então será difícil.
MERCEDES LÒPES ” SANTIAGO/ PÁGINA 12″ ( ARGENTINA)