“Andança” mostra os encontros e memórias da Beth Carvalho “cineasta”. “Cafi” esboça o perfil de um dos fotógrafos mais amados pelos artistas brasileiros.
A sambista que filmava
“Beth Carvalho cineasta!”, grita alguém na primeira cena de Andança – Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho. Atrás da câmera estava Beth gravando Mário Lago e Walter Alfaiate no meio de uma roda de samba num bar carioca. Ao longo de quase duas horas, vamos ver cenas relativamente íntimas da cantora no seu ambiente favorito, o samba, filmadas por ela ou por seu motorista-cinegrafista Antonio Carlos. Esse é o recorte e o dispositivo do filme de Pedro Bronz. Vale como uma revelação. Assim foram os filmes sobre o que filmavam Ingrid Bergman e Charles Aznavour. Beth Carvalho era uma “arquivista” dedicada. “Tenho cabeça de museu”, dizia. Havia sempre uma câmera registrando seus encontros com compositores, sessões de gravação, reuniões domésticas, onde reinava seu profundo carinho para com os sambistas. A amizade com Nelson Cavaquinho e Cartola, por exemplo, tem registros em áudio e vídeo providenciados por ela. Madrinha de blocos, de escolas de samba e do pagode, Beth cedo trocou o “elitismo” da Bossa Nova pelos ritmos do morro e da periferia. Andança quer mostrar essa devoção por meio do material que a própria Beth produziu.
Assim é que vemos momentos inestimáveis, como a audição de sambistas da Velha Guarda apresentando suas criações para ela montar um novo disco. Ou um desentendimento com o maestro na gravação do samba Nome Sagrado. Ou ainda as discussões que ela mantinha com os músicos em torno do seu estilo de cantar. Sem falar na gravação em áudio de uma conversa com Cartola em que ele a desaconselha a gravar O Mundo é um Moinho: “Essa é muito difícil pra você”
O critério adotado pelo filme tem suas virtudes, mas também seus senões. Uma montagem a meu ver complacente preserva conversas que se alongam sem rumo. Há mesmo uma sequência com Amir Guineto que vai muito além do necessário para pintar a relação expansiva entre ele e Beth. Um pouco mais de síntese faria bem ao conjunto do filme, até porque pouco se vê do engajamento político de Beth, marca forte de sua personalidade. Afora sua participação no comício das Diretas e uma viagem a Cuba – quando Fidel lhe pede que autografe uma nota de real para ele – nada consta da sua atuação na esquerda brasileira, de Brizola a Lula.
Andança tem o mérito inegável de trazer a público os materiais coletados pela cantora com sua câmera, ainda que a qualidade de preservação do VHS seja muitas vezes precária. Contudo, um olhar mais crítico sobre esse acervo e eventuais acréscimos comporiam um retrato ainda mais abrangente e preciso da queridíssima sambista.
>> Andança – Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho está nas plataformas Google Play, iTunes, Youtube Filmes, ClaroTV, VivoPlay, Oi Play e Go/Sky.
Os últimos encontros de Cafi
O fotógrafo pernambucano Carlos da Silva Assunção Filho (1950-2019), conhecido como Cafi, ganha um perfil mais rascunhado que pronto nesse documentário de Lírio Ferreira e Natara Ney. “Protegido” dos sons do mundo pelo seu inseparável fone de ouvido vermelho, Cafi é visto vagueando por meio Brasil para costurar seus flashes esparsos de memória. Só tira o fone para trocar lembranças com Alceu Valença, Macalé, Chacal, Lô Borges, Miguel Rio Branco, Zé Celso Martinez Correa e a ex-mulher Deborah Colker. Ele morreria pouco depois, em janeiro de 2019.
São colóquios mantidos em total informalidade, como se não houvesse mesmo a peocupação de produzir um documento, mas somente um microrretrato da relação pessoal e da parceria entre eles. Em meio à brodagem geral, sacamos alguns traços do artista: um certo misticismo (Mãe Stella de Oxóssi teria “consertado” sua câmera para que as cores do maracatu saíssem direito), a ênfase no afeto (“Tudo o que a gente faz é para ser amado”) e a fotografia como meio de encontro com os outros e com as coisas.
Além de fotógrafo brilhante das artes em diferentes manifestações e latitudes do país, Cafi é autor de centenas de capas de disco célebres para músicos nordestinos, mineiros e cariocas, principalmente. A história da gênese de algumas dessas capas é contada de maneira breve no filme.
O acervo fotográfico e, digamos, capográfico de Cafi bem merecia um pouco mais de vagar na exposição, às vezes apressada demais para que capturemos sua beleza e originalidade. Da mesma forma, o movimento Nuvem Cigana, os primórdios do Circo Voador e as aventuras teatrais do Asdrúbal Trouxe o Trombone, todos vivenciados e clicados extensivamente por Cafi, recebem menções muito inferiores a sua importância.
Mas o que talvez tenha interessado mais aos diretores foi simplesmente esboçar o caráter flaneur e o espírito gregário que habitavam aquele boa praça enquanto ele fingia apreciar a solidão fundamental do fotógrafo.
>> Cafi está nos cinemas.
CARLOS ALBERTO MATTOS ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)