A RECEITA DO BOLO

CHARGE DE SALVADOR

Na ebulição de pequena reforma ministerial, forçada pelo imperativo de uma convivência mínima do governo com partidos representados no Congresso Nacional, o líder do PT no Senado, Jacques Wagner (PT-BA), com a experiência de quem conhece bem as subidas e descidas do Bonfim, traz a fórmula de convivência com os que têm voto na Câmara, e podem influir na tramitação de matérias importantes. Diz o senador baiano que o jeito é satisfazer a quem chega, sem maltratar quem está, solução mágica que, na semana passada não funcionou no Turismo, onde a ministra foi defenestrada, em nome de composições, o que conflitou claramente com a receita wagneriana. Compor não é fácil para Lula, ele sabe disso, porque os interesses são muitos e limitada a capacidade de atendimento.

As circunstâncias desafiam o presidente, que se elegeu sem levar a reboque uma sólida bancada parlamentar; daí a necessidade das composições, algumas vezes à custa do sacrifício de veteranos companheiros. Mas a ele o que se impõe é a indispensabilidade do governo poliforme.

(Muito antes, quando já fazia água nos porões do Império, quem viveu situação semelhante foi o conselheiro Carneiro Leão, que tentou um Gabinete mais ou menos assim, capaz de contentar a conservadores e liberais. Não deu, porque a origem de seus ministros conflitava demais, mesmo quando o chefe, inspirado no próprio nome, tentou conviver, na jaula comum do poder, a candura do carneiro com a ferocidade do leão… Não deu).

Qualquer governo, não apenas o atual do Brasil, que se firme na coalizão, para não correr o risco de colisão, é sempre chamado a fazer concessões, com o cuidado de adotar a medida em que os premiados sintam-se satisfeitos, mas dentro de espaços suficientes. É a história da conciliação no bolo político de que falava Lawrence J Peter ( 1919- 1990): a arte de dividir o bolo, de forma que cada um pense ter recebido o pedaço adequado. O bolo lulista já se revelou generoso, o que não deixa de ser perigoso para o governo no oitavo dos 48 meses, ainda muito para caminhar. Com tanto tempo pela frente, como andará a gulodice dos amigos?

Os aliados não escapam de grave responsabilidade com a governabilidade, porque da mesma forma como lhes acode o direito de participar, ocupar cargos e funções, têm o dever de serem comedidos nas exigências. Precisam saber que nem tudo é possível. O presidente tem procurado transmitir imagem de quem vem agindo sem pressões; chega a afirmar que não discute ministérios com o Centrão. Mas a realidade é outra, porque os partidos que pretendem subir a rampa do Planalto são pragmáticos, não fazem questão de esconder que votam na linha das contrapartidas. É impossível negar essa evidência. Que tem tudo para preocupar.

Crime perdoado

Num país de grandes e pequenas impunidades, não há razão de espanto na proposta de Emenda Constitucional destinada a perdoar, mais uma vez, os partidos políticos que são contumazes descumpridores de obrigações; como se deu na reserva de espaço para negros e mulheres nas chapas de candidatos; conquista que foi passo importante para conter o ímpeto elitizante nas eleições proporcionais. O assunto deve retomar discussão nesta semana, o que já permite certa estranheza, pois temas muito mais importante mereceriam a atenção parlamentar. Certamente o país será obrigado a ouvir, de novo, o desfaçamento da justificativa: os partidos não entenderam bem o que a lei pretendia…

Quanto à aprovação do pretendido retrocesso é forçoso prever que se dará com facilidade, pois a favor inscreveram-se quase todos os partidos, num raro episódio em que estão ombreados lulistas e bolsonaristas. Ainda assim, são necessários os votos de 308 deputados e 49 senadores.

É um dos fatos da semana, que se soma a outros, muitos outros, para mostrar que a organização partidária, como está, não tem mais jeito de sobreviver. É preciso reformá-la, começando por desinchá-la. Temos partido demais.

Voto escravizado

Os catorze meses que nos distanciam das eleições não são tempo vasto demais, contrariamente ao que pensam alguns dirigentes partidários. Pode ser que a indicação de candidatos e a formulação de propostas demandem prazos, o que não quer dizer que grandes questões ligadas ao bom desempenho do pleito sejam transferidas, não se sabe para quando. Há questões que já deviam estar ocupando atenção, até agora apenas tratadas superficialmente, como o papel que será confiado às redes sociais nas orientações ao colégio eleitoral. Justificam-se os temores, porque elas não parecem muito animadas a expor temas notáveis, sem part pris e sem compromissos, ajudando o eleito a entender o que querem e o que propõem os candidatos. As redes preferem cardápio político de prato feito, contra ou a favor. E já agora são capazes de justificar tal preocupação, empenhadas em continuar dividindo o Brasil como veio da última eleição, isto é, metade lulista, metade bolsonarista, com mensagens raivosas, não raro agressivas e ofensivas. Seria péssimo para o Brasil se permanecesse refém desse conflito.

Uma discussão que se torna mais delicada, quando penetra a linha tênue que define direitos e deveres no campo da informação, de opinião e expressão, manifestadas livremente e a salvo das intolerâncias.

Outra preocupação, ainda com vistas aos rumos da democracia e da liberdade preservadas – preocupação nossa e do mundo inteiro, universal – é o papel da inteligência artificial na campanha dos candidatos. Tudo a temer, porque a IA, se, por um lado cria e expande recursos a serviço do homem, também dispõe de competência tecnológica para substituir ou limitar seu poder de inteligir e criar. Com dois braços, ela exalta a pessoa, mas também a escraviza. Não se pode brincar com isso, até porque há toda evidência de que as campanhas eleitorais vão se tornar, num futuro não tão distante, totalmente subsidiadas pela máquina intelectual.

Se essa artificialidade apossar-se da política, certamente com o grande benefício das candidaturas milionárias, o eleitorado estará retrocedendo à barbárie, mera peça do star system, à menoridade do raciocínio. Seria bom pensar nisso com seriedade.

WILSON CID ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)

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