Acaba de voltar à cena um personagem conhecido pela delação nos anos de chumbo, pintado como vil, abjeto, perverso, mitômano, sedutor, que passou à História como um infame traidor, responsável por incontáveis mortes de companheiros, o que inclui uma sangrenta chacina em que seis militantes foram trucidados em Pernambuco. Volta e meia essa desprezível criatura reaparece. Morreu impune, aos 80 anos, em 2022.
Como agora, numa excelente série documental da HBO Max, “Em busca de Anselmo,” dirigida pelo roteirista e documentarista Carlos Alberto Jr. Em cinco episódios, a série o toma como fio condutor de uma parte desta grande tragédia brasileira ainda não de todo revelada, à espera de seu momento vereadora Marielle Franco, cujo assassinato começa a ser desvendado cinco anos depois. Trata-se uma historia pontuada por pontos obscuros, disfarces, traições e covardia. Pode parecer absurda e surreal, em especial para os principiantes, mas também é aterradora para os já iniciados.
Integrantes de minha geração, que sobreviveram ao cárcere, à tortura e ao exílio, consideram demasiado insuportável rever a cínica máscara do traidor outra vez. É um ser desprezível, me disse um deles, constrangido. Me deu pesadelos, mexeu com minhas emoções. Estive perto de Anselmo duas ou três vezes, mas não o encarei nos olhos, descritos como maliciosos, ou apertei suas mãos. Abismado, acompanhei de longe sua trajetória de quase dez anos em organizações de esquerda e da luta armada, pelo Rio, São Paulo e Recife, com passagens pelo Chile e Cuba.
São acontecimentos que se passaram a partir de revolta dos marinheiros que se amotinaram em assembleia no Sindicato dos Metalúrgicos, no Rio de Janeiro, na véspera do golpe de 1964, início dos tempos sombrios e de terror da ditadura. Que ficaram encobertos pela censura, pela ação de colaboracionistas e a recusa das Forças Armadas em abrir seus arquivos. Continuam trancados, os governos Luma e Dilma evitaram enfrentar o poderio dos milicos armados, responsáveis pela institucionalização de tortura nos interrogatórios.
A série da HBO segue os fatos com uma impressionante riqueza de imagens da época, novas tomadas nos lugares por onde ele passou e uma rica seleção de depoimentos de pessoas que vivenciaram a história. O fio condutor são as entrevistas realizadas pela equipe de produção com o farsante. Mentiroso, loquaz, dotado de autocontrole e boa memória, ele reconta sua trajetória com descarada cara de pau, remodelada por uma plástica feita para viver na clandestinidade. Quando pego em contradição pelo diretor, sorri cinicamente para dizer que se enganara.
O sergipano José Anselmo dos Santos, o cabo Anselmo, foi um combatente atípico e excêntrico para os padrões exigidos para a época. Em quase dez anos de militância, grande parte dos quais numa organização de luta armada, a VPR, nunca participou de um assalto a banco ou de uma ação de sequestro de embaixadores. Não foi deslocado para fazer treinamento de guerrilha no campo. Viveu da glória do episódio que o projetou nacionalmente, a liderança na rebelião dos marinheiros, seguido de sua prisão, fuga da cadeia e ida para Cuba. Tornou-se um líder consagrado na esquerda.
Outra particularidade é a de que ao longo deste processo não há registro de uma companheira a seu lado. Nas pesquisas que fiz, não encontrei uma mulher que tenha sido sua namorada, com quem pudesse ter tido um contato mais íntimo. Numa fase em que o amor era tratado com extrema liberdade entre os jovens guerrilheiros, que viviam juntos em aparelhos clandestinos. Exceção a esse comportamento era a intolerância e o preconceito contra os homossexuais.
Anselmo não foi um caso isolado. Houve outros traidores na esquerda, de menor expressão. São casos típicos de situações de derrota, encurralamento, estresse e quedas. Mas sua convicção foi maior, alcançou plena adesão ideológica com a ditadura e seus horrores, São reveladoras as avaliações de dois dirigentes da VPR, que o conheceram na militância e em Cuba, onde passou cinco anos em isolamento total e treinamento.
Herbert Daniel e Ângelo Pezzutti, dois jovens e brilhantes mineiros que chegaram à direção da VPR, tratam do Anselmo traidor que conheceram numa entrevista dada ao Pasquim, no exílio em Paris. Consideram sua ação semelhante à de um torturador. Para Herbert, uma história obscura, na qual o traidor merecia o mesmo tratamento dado a cada um dos torturadores criminosos da ditadura. Traiu seus companheiros já vencidos, o que indica covardia e baixeza. Corria que era homossexual. Considero um machão, que vivia em conflito com sua sexualidade.
Para Ângelo, era um cara inteligente e inescrupuloso. Sensível, lia muito, gostava de música e poesia. O grande mérito de Anselmo foi ter usado contra a esquerda não a tática policial clássica da espionagem ou da contra-informação, mas os mecanismos internos viciados da própria esquerda, envenenando-a com seu próprio veneno
Pezzuti resume a trajetória do cabo em três pontos. É falso que tenha sido um policial infiltrado desde 1964. Aproveitou- de uma VPR rachada e em crise para consumar seu plano tenebroso. Foi seguido e preso em São Paulo ao voltar de Cuba. Torturado durante uma semana pelo Cenimar e a equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury, virou de lado e se entregou a Fleury que se tornou seu mentor e pai. Dado como morto, depois solto e monitorado. Andava pelas ruas cobrindo pontos, levando a quedas de muitos militantes da VPR e ALN. A partir deste momento já começa a trabalhar com Fleury na montagem da grande operação em Pernambuco.
Dirigido e em perfeita comunhão com a equipe de Fleury, montou a sua mais sórdida e criminosa operação, o massacre de seis guerrilheiros da VPR, entre eles duas mulheres, Pauline Reichstul e a paraguaia Soledad Brarret, sua companheira, grávida de seu filho. Na série, ele nega a gravidez.
A sangrenta chacina da Chácara São Bento, nos arredores de Recife se dá em janeiro de 1973. num momento em que as informações sobre a traição do cabo, codinome Daniel, já eram do conhecimento das organizações de luta armada. Soledad, uma experiente miltante, talvez enamorada por Daniel, resiste a crer, “na única vez que minha mãe baixou a guarda,” segundo a filha a jovem Nasaindy, em longa entrevista para a série.
A operação de retorno do grupo foi costurada por Anselmo no Chile, com a aprovação do sargento Onofre Pinto, um dos dirigentes da organização rachada no exílio. A execução da matança foi obra de oficiais militares da agência local do DOI Codi, instalada no quartel do 4º Exercito. Os corpos mutilados foram levados para a proximidade da chácara, para simular confronto, e fotografados em detalhes. Como num Estado totalitário, sumiram com os corpos. São considerados desaparecidos, apesar de exibidos publicamente.
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ornais deram manchetes dias depois com a foto de cada um, revelando a morte “de seis terroristas em confronto com a órgãos de segurança”. Consumado o extermínio, Anselmo tomou o seu uísque, brindando o êxito da operação com Fleury, pegou um avião e voltou para São Paulo. A tragédia da bela paraguaia está contada no livro “Soledad no Recife”, do jornalista e escritor Urariano Mota. A trama real inspirou o romance de Urariano, que narra na primeira pessoa, apaixonado por sua personagem. Leiam.
Os crimes cruéis, confessos e abjetos de Anselmo, praticados em nome do regime totalitário que o acolheu, continuam impunes, numa afronta á sociedade brasileira, segundo o documentarista Carlos Alberto Jr., que seguiu os seus meandros macabros.
ALVARO CALDAS ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)
*Jornalista e escritor