A VOLTA DO JORNALISMO DE ESGOTO E A GUERRA DOS ÍNDICES

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Eles não temem a manipulação da estatísticas: temem o que as estatísticas podem mostrar.

Foi uma reestreia em grande nível da pior fase do jornalismo brasileiro: o jornalismo de esgoto, através do qual a mídia difundia as acusações mais inverossímeis visando estimular o estouro da boiada, o gado que atuava de maneira irracional nas grandes ondas de linchamento.

Lembrou as acusações de Cuba enviando dólares ao PT através de garrafas de rum, as FARCs invadindo o Brasil, a ABIN espionando o Supremo, Ministros recebendo propinas nas garagens do Palácio, e factóides em geral.

Criaram um crime impossível e atribuíram a um “inimigo”, usando o recurso do “SE”, que suporta tudo. “Se minha avó fosse roda, eu seria bicicleta”, por exemplo.

O crime impossível: a manipulação dos dados do IBGE.

Como explicou Sérgio Besserman, ex-presidente do IBGE e intelectualmente muito mais honesto que Edmar Bacha, outro ex-presidente, é impossível qualquer manipulação de dados no IBGE, devido à estrutura profissional dos funcionários do órgão.

A última manipulação ocorreu no período Delfim Netto, na primeira metade dos anos 70 – com plena aprovação do sistema Globo, que comanda o atual linchamento. Como reação, surgiram inúmeros outros índices, o do DIEESE (Departamento Intersindical de Estudos e Estatísticas), o da FGV (Fundação Getúlio Vargas), da FIPE (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas), da Universidade de São Paulo. Além deles, todas as grandes instituições financeiras montaram seus próprios levantamentos de preços.

Depois de criar o crime impossível, criaram o suspeito do “SE”: se o futuro presidente do IBGE, Márcio Pochmann, manipular as estatísticas, ocorrerá o mesmo que ocorreu com o IBGE argentino. E “se” Pochmann não manipular as estatísticas? Aí perde-se o gancho.

O que poderia ser uma crítica técnica ao pensamento de Pochmann, tornou-se um caso de linchamento público desmoralizante para o jornalismo da Globo. Após a primeira suspeita lançada, seguiu-se um festival de ataques de jornalistas analfabetos econômicos, zurrando como sábios contra os estudos de Pochmann, sem a menor noção sobre o papel do IBGE ou sobre temas tratados por Pochmann e sobre a própria biografia de Pochmann, “acusando-o” de ter posições ideológicas. E Roberto Campos Neto? Esse tem posição técnica.

Cronista esportivo, coube a Milly Lacombe, da UOL, enxergar o rei nú: em um país em que a economia é dominada pela ideologia do mercado, as acusações a todos que não concordam com isso é serem “ideológicos”.

Em suma, um movimento que em nada ficou devendo aos movimentos do gado bolsonarista, as mesmas suposições sem base factual, o mesmo terraplanismo, a mesma intenção de fazer o gado pensar com o fígado.

Depois de um dia de ataques bárbaros, capitaneados por Miriam Leitão, restou uma única crítica válida: o anúncio do Secretário de Comunicação Paulo Pimenta, antecipando-se à Ministra do Planejamento Simone Tebet, uma grosseria, sem dúvida. E a soberba lição de civilidade de Tebet, quando cercada pelo gado setorista e indagada sobre o que achava das acusações sobre o crime impossível de Pochmann:

  • Já fui julgada muitas vezes na minha vida e não vou julgar ninguém sem conhecer os fatos.

A briga dos índices

Por trás dessa baixaria completa, está o receio da grande guerra pelos índices.

O ponto central da ideologia mercadista é vender o peixe de que todas as medidas beneficiando o mercado são “técnicas”, e não políticas.

A consolidação dessa ideologia se deu através do monopólio dos indicadores e pela exclusão de qualquer análise sistêmica sobre medidas econômicas.

Vende-se a ideia de que gastos públicos aumentam a inflação prejudicando os mais pobres. E se começarem a ser desenvolvidos trabalhos mostrando os efeitos das taxas de juros sobre o emprego e sobre a situação dos mais pobres?

Em pleno período de ataques aos aumentos do salário mínimo, o IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas) divulgou um estudo, com base no IBGE, mostrando que em mais de 50% das famílias, com um aposentado ou pensionista, eles eram o arrimo econômico. Ou seja, o aumento do salário mínimo beneficiou a saúde, pelo fato de ajudar a alimentar a família; a educação, permitindo às crianças entrar mais tarde no mercado de trabalho; a segurança, tornando as crianças menos suscetíveis às investidas do crime organizado.

E se o IBGE utilizasse seus levantamentos para analisar, por exemplo, as externalidades positivas dos investimentos públicos ou dos gastos sociais? Por exemplo: o dinheiro gasto em uma estrada reduziu em xis porcento as perdas com transporte e com carga, permitindo um ganho adicional de ypisilone para a economia brasileira.

Ou a visão sistêmica sobre os financiamentos do BNDES?  Hoje em dia, o mercado meramente compara os custos de financiamento do BNDES com a taxa Selic – e diz que a diferença é déficit público. E se forem incluídos nas contas as empresas criadas, os fornecedores, os empregos e o pagamento de impostos desse novo universo produtivo? Aí se poderia saber que, além de gerar empregos e investimentos produtivos, os financiamentos do BNDES ajudam na arrecadação fiscal. E seriam desmascaradas as análises rasas que sustentam muitos dos estereótipos econômicos que alimentam a mídia.

Em suma, há uma grande batalha ideológica em torno dos índices. O medo desse pessoal não é com a manipulação de índices, mas como a elaboração de novos índices, bem embasados academicamente, podendo comprometer a sua própria manipulação de conceitos. Eles não temem a manipulação da estatísticas: temem o que as estatísticas podem mostrar.

LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)

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