O BRASIL DE MANUEL BOMFIM, O PAÍS QUE NÃO SE FEZ

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Tira de Caxias e outros a glória de ter garantido a unificação pelas armas. E fala de revoltosos que recusaram independência por visão única de país

O viralatismo brasileiro tem raízes profundas e históricas. É interessante acompanhar o processo de formação do Estado brasileiro, e a maneira como a história foi continuamente deturpada, para comprometer a ideia de Nação.

Dia desses, aproveitei para reler a obra final de meu pensador predileto, o sergipano Manoel Bomfim: “O Brasil na história: deturpação da tradição, degradação política”.

Bomfim viveu de 1862 a 1932. O livro provavelmente é de 1930.

É uma edição de 2013, da Topbooks, com prefácio da Ronaldo Conde Aguiar.:

No Brasil, notou Bomfim, o Estado jamais representou ou defendeu os interesses gerais da sociedade, mantendo ao mínimo as ações de “utilidade pública”—ou seja, os “gastos sociais”, como dizemos hoje—em favor das despesas com a manutenção da máquina governamental e, principalmente, tal como acontece ainda hoje, com o pagamento dos empréstimos externos.

Daí considerar—bem antes de Caio Prado Júnior, cujo livro de estreia é de 1933—que o futuro da nação brasileira já estava, em linhas gerais, “delineado” no seu passado, nas etapas anteriores da sua formação, todas elas marcadas, a ferro e fogo, por tensões entre dominadores e dominados— ou, para sermos mais atuais, entre globalizadores e globalizados.

A tese de Bomfim é que, precocemente, consolidou-se um sentimento nacional, unindo regiões tão díspares como os estados do sul e do norte. Foi esse sentimento que fez com que os brasileiros segurassem as investidas holandesas, inglesas, francesas, salvando a própria América espanhola.

Esse brasileiro primordial, o caboclo, o índio, o negro, refletia os valores iniciais de Portugal, na colonização. Depois, há uma decadência de Portugal e uma tentativa dos Bragança de manter o poder, através do que se poderia chamar de “monarquia de coalisão”.

Tira de Caxias e outros mitos a glória de ter garantido a unificação pelo poder das armas. Mostra vários casos em que revoltosos se recusaram a buscar a independência de seus territórios, em benefício da visão única de país.

Especialmente, mostra os conflitos entre duas correntes de historiadores, o inglês Robert Southey, autor da primeira história do país, e o historiador oficial, Francisco Adolfo de Varnagem, que tratava a história como muitos constitucionalismos contemporâneos: como uma sucessão de datas e fatos. Antes dele, Capistrano de Abreu já detonava a visão oficialista de Varnhagem, criando falsos heróis da nacionalidade, especialmente na figura débil e acomodatício de Pedro 2o.

É essa história oficial, segundo Bomfim, que esconde do país o destino manifesto do início da ocupação territorial, e que acabou não se realizando. Quando escreveu o livro, Bomfim estava muito doente, no final da vida, muito decepcionado com o país, mas sem perder a esperança.

Alguns trechos da obra:

Sobre o pensamento coletivo que forma as nações

Em verdade, todos os motivos de ação repercutem na consciência; mas os interesses gerais da espécie—moral, justiça, humanidade—, como não são irradiações imediatamente egoístas, tomaram formas de inteligência, em ideias, e, com isso, multiplicam-se em representações, nítidas, correntes, como as mesmas ideias. Então, repetidas em todas as relações sociais, multiplicadas e explícitas como valores mentais, elas se contrapõem vantajosamente aos puros motivos individuais, ainda que sejam estes mais intensos e vivazes. E,

Sobre a relevância do Brasil para a América Latina

Nos meados do século XVII já havia o Brasil. Bateu, para continuar na tradição em que se fizera, a potência mais poderosa do mundo de então. E não tarda que, dilatando-se, nas próprias forças, desbrave e conquiste o interior do continente, modelando-o definitivamente. Plantado na costa oriental desta América, destinado, assim, a receber os ataques dos que pretendiam despojar os primeiros colonizadores, o Brasil soube defender-se integralmente, e, com isso, defendeu toda a terra sul-americana, salvo na parte que já ficava fora do seu resguardo, ao Norte. 

(…) Com toda a propriedade, podemos dizer: as colônias espanholas da América do Sul garantiram-se por trás do Brasil. Se os povos que tentaram estabelecer-se nesta parte do continente não tivessem encontrado essa defesa, que foi obstáculo definitivo; se, em vez disso, eles se tornassem senhores das colônias que tentaram, outra seria a sorte da América castelhana.

Sobre a unidade nacional precoce

Um século, apenas, de vida, e da colônia emerge uma nova pátria. O nome—Brasil—impõe-se no jogo das nações, ao mesmo tempo que, particularizado em pernambucanos e paulistas, o povo brasileiro entra para a história universal. Enquanto isso, a América do Norte oscilava entre as pretensões dos franceses, holandeses e ingleses, a aproveitaram-se da insuficiência castelhana.

Sobre a vocação frustrada

Primeira nacionalidade a definir-se e afirmar-se no Novo  Mundo, condensação demonstrada de preciosas energias humanas, qual seria a situação atual do Brasil, se lhe fosse dado prosseguir na escala do seu primeiro desenvolvimento?… Por que razão  não lhe foi possível continuar a marcha em que vinha, e manter  a primazia inicial?… Os feitos do primeiro Brasil, isto a que chamamos de idade heroica, tiveram repercussão explícita na conformação do mundo atual; mas vivemos como se não soubéramos  disso; de fato, quase não o sabemos. A miséria em que vergaram  os nossos destinos abafou as nossas legítimas tradições, substituindo-se, nelas, o halo de glória pelas emanações do que o bragantismo deu ao Estado português, e que nos foi imposto. E, feitos de epopeia, sumiram-se sob o bolor que foi a vida pública do  Brasil — de 1650 em diante.  Será legítimo falar de tradição

Sobre a alma nacional

Não pareça de somenos importância o motivo—pirataria. Toda a expansão marítima holandesa fazia-se ostensivamente com esses intuitos; as grandes Companhias das Índias—Orientais, Ocidentais—eram, de fato, empresas de pirataria, destribuindo dividendos na razão das naus e dos galeões que apresavam. As expedições formavam-se em caráter um tanto livre, como se foram empresas privadas, porque era esse o eufemismo da pirataria oficial; mas, em essência, a ação era do Estado.

Então, há o milagre de energia patriótica: Pernambuco, único no mundo, resistiu às Províncias Unidas e bateu-as. Dir-se-á (e o argumento encontra-se, mesmo, em Histórias do Brasil) que os Insurgentes só venceram porque a Holanda havia entrado em declínio, batida pelos ingleses. Tanto vale mentir, para não dar à memória dos bravos pernambucanos um preito absolutamente merecido. Os holandeses foram batidos, sem mais remissão, de Tabocas à última dos Guararapes, em 1649, e, então, pelo resto do mundo, o seu poder era incontestado. 

(…) Mães pernambucanas, irredutíveis sob o domínio do batavo, e que oferecem à guerra, uns após outros, todos os filhos, como teriam tal ânimo de sacrifício, se já não houvesse nelas uma alma nacional própria—uma alma brasileira, afeiçoada na tradição de Pernambuco?

Sobre a tradição na formação de um país

E a vida da humanidade se reduz ao desenvolvimento desses agrupamentos, em que se incorpora a vida de uma tradição. Destarte, é a tradição mesma que se desenvolve, progride e se apura, como se amesquinha, decai e deperece. Nem outra coisa significa a morte de agrupamentos nacionais, como o registra a história. São tradições que pereceram e se extinguiram, ou porque se corromperam nelas mesmas, ou porque foram atacadas, vencidas, e assim tombaram e desapareceram. De qualquer modo, a realidade histórica é que elas foram suplantadas por outras tradições—nacionais, políticas, religiosas…

(…) Contemplando esse passado, fora, mesmo, de qualquer orgulho, podemos afirmar: as energias vencedoras, ali, já eram virtudes expressivas da pátria brasileira. Não só naqueles heróis,  mas em todos esses que dilataram o Brasil pelos longínquos sertões: pronuncia-se o surto de uma nacionalidade própria, americana, inteiramente distinta da que se impôs em Ourique. Sentiam-se brasileiros, e procediam em consequência, tomados pela  necessidade de manter e propagar a tradição a que pertenciam.

Sobre a igualdade como cimento da Nação

De todo modo, esse primeiro progresso reconhecido é realizado no espírito. E, como o caracteriza Condorcet? Em que hierarquias se define ele? Na conquista da igualdade entre os homens… justiça entre os povos… Ora, se tanto pretende e proclama a filosofia moderna é porque reconhece e proclama a igualdade de natureza moral entre os indivíduos. Foi,

Sobre a degeneração política

Há, no entanto, um aspecto bem característico da degeneração social, ou dos grupos: é a queda dos critérios de proceder. Tudo se liga, na degeneração psíquica, àquela qual incapacidade para os longos estímulos, que, em linguagem subjetiva, chamamos de aspirações, ideais, conceitos morais, critérios racionais… e, por isso, na inferiorização geral do grupo, essa incapacidade de longos estímulos se traduz, necessariamente, como restrição de todos esses mesmos motivos. Quando a generalidade dos indivíduos já é incapaz de conter os egoísmos e dominar a sensualidade pelo estímulo de moralidade, ou de patriotismo, o próprio critério moral se reduz, e o

Sobre a relevância de uma historiografia

Assim, desprezando os critérios interesseiros das grandes tradições, os humildes poderão verificar conscientemente o valor da sua tradição nacional, proclamá-lo desassombradamente, e tirar dessa mesma tradição indicações e estímulos, para a sua plena expansão.

(…) Se não pensamos nisso, não podemos dar à ação portuguesa o seu preço exato, e, se não lhe damos o devido apreço, não chegamos a alcançar todo o valor dos que fizeram o Brasil, e o mantiveram, contra todos os grandes e fortes do mundo.

Sobre a relevância da democracia

Naquele momento do mundo, com as condições de formação nacional, os povos americanos tinham que organizar-se em forma democrática livremente, sem restrições dinásticas, pois que em nenhum deles havia a necessidade histórica de que resultaram as monarquias constitucionais, pois que todos precisavam das possibilidades de iniciativa, como só as puras democracias podem ter.

Com a tradição do respectivo estado português, superposta à legítima tradição nacional, tivemos que fazer, mesmo depois de três revoluções, uma política tal que, em regime republicano, é esse monstruoso e infame oligarquismo como se organizou definitivamente a República brasileira—oligarquias de coelomas aparentados, com toda a podridão de ventres fartos, em organismos que só vivem para o ventre.

Sobre a violência dos bandeirantes

Comparem-se, no tempo, os nossos sertanistas com quaisquer outros ocidentais que tenham estado em contestação com as tribos americanas, se com valor para não serem detidos por elas, e vejamos se eles, paulistas, eram mais cruéis e desumanos do que espanhois, holandeses, ingleses, ou franceses…

Sobre as falsas narrativas 

Foi assim que a Insurreição Pernambucana deixou de ter significação, no silêncio em que a esqueceram, ao passo que se apuravam os opacos heroísmos no Prata; assim se criou a lenda mentirosa—de que “a unidade do Brasil foi resultado da independência com a monarquia bragantina, e que, autônoma, a nação se desencadeou em desordens e facções, finalmente dominadas pela força orgânica da política monárquica…”.

Sobre a obra de História do Brasil, de Robert Southey.

De tudo isso resultaram maiores males, para o Brasil, do que o imaginavam os próprios perseguidores da nova nacionalidade: a primeira história do Brasil era a revelação de um espírito novo, na novidade de uma tradição nacional própria; tinha em si, por isso mesmo, inspiração para novos modelos no historiar de uma pátria. Capistrano, depois de mostrar, em Frei Vicente, “… o amor da pátria e certeza do seu futuro, sentimentos raros naquele tempo…”, desenvolve o comentário: “Imaginemos que a história de Frei Vicente, em vez de ficar enterrada… viesse logo à luz as consequências podiam ter sido consideráveis: serviria de modelo. Os arquivos estavam completos e teriam sido consultados…

Sobre Varnhagem

Pouco lhe importam a verdade e a justiça. Dentro da tarefa que aceitou, Varnhagen afirma que a revolução de 6 de março de 1817 era absolutamente sem motivos e sem premeditação; que surtiu exclusivamente do conflito com que começou. E, para demonstração, volta-se para a consciência do leitor: “…diga—se podia haver razão para um tal movimento?…”. Depois, eleva-se na importância do papel que lhe deram, para zombar torvamente dos vencidos martirizados, incluindo-os nos humildes Luiz das Virgens e o negro Lucas Dantas, a quem infama com o epíteto de facinorosos. Conclui em náuseas, a pedir desculpas—“de tratar de assunto tão repugnante… Deixá-lo-ia em silêncio, se, historiador, pudesse desprezá-lo…”.

Sobre as revoltas na Bahia

Com a mesma pena, ao tratar da revolução de 1837, na Bahia, ele resume todos os conceitos no tachar os revolucionários de “partido recrutado na mais ínfima classe (o dr. Sabino, lente da Faculdade de Medicina!)… da plebe… com os instintos perniciosos da população…”

Sobre o mito Tiradentes

E assim se explica que hajam distinguido o pobre homem de São João del-Rei, para nele consagrar a aurora da nacionalidade. Era preciso, para esconder ao Brasil a glória dos seus verdadeiros libertadores, se, por acaso alguma liberdade resultou da crise de 1822. As histórias oficiais fizeram-se o túmulo infame, onde se soterraram os grandes brasileiros de 1817 e 1824. E o ingênuo esquartejado foi a pedra com que o fecharam. Em verdade, o afastado e isolado Tiradentes: que mal podia fazer ao bragantismo vicejante sobre o Brasil? Bem diferente era o caso, se a nação fosse levada a conhecer e venerar os próximos heróis de 6 de março, revolução triunfante, só vencida por ter sido generosa…

Sobre a unidade nacional

As manifestações eram locais, sim; nem se admite pudessem ter outra forma. Sem unidade de sentimento, porém, como explicar que a revolução de Dezessete alastrasse, como alastrou, e levasse as suas pretensões do Ceará até a Bahia e a própria sede da corte?…

LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)

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