Apaixonados por uma câmera, sonhadores, inconformados e proféticos, eles são de certa forma parecidos Considerados os maiores documentaristas brasileiros, tiveram trajetórias de sucesso semelhantes mas de universo temático muito diferentes. Um estaria fazendo 90 anos, e o outro, com 74, está numa cadeira de rodas. Encontrei-os no último domingo à noite em frente ao Sesc de Copacabana, na rua Domingos Ferreira.
Fui ver a estreia na direção teatral de um deles, que não se cansa de inventar novos projetos, e me deparei com o outro, saindo de um edifício em frente, justamente o Master, um prédio grande de apartamentos conjugados, onde ele filmou um de seus prodigiosos documentários. Um filme em que ele entrevista moradores anônimos, em conversas intimas permeadas de silêncios, em que mais ouve do que fala.
Quer coincidência melhor do que esta para um final de domingo? Romântico e otimista por temperamento, Silvio Tendler, um deles, sempre que olha para o país em caos encontra uma saída artística. A última é esta peça “Olga e Luiz Carlos, uma carta de amor para o futuro”.
Em cartaz no Sesc, ele coloca no palco do teatro de arena, como se estivessem em celas contíguas e imaginárias, a comunista alemã Olga (Mariana Mac Niven), e o tenente Luiz Carlos, (Julio Adrião), o Prestes Cavaleiro da Esperança, que ajeitam os pertences de suas celas e leem as aflitivas cartas de amor que troçaram entre si durante seis anos.
Ficaram presos primeiro nos calabouços da ditadura de Vargas, que entregou Olga Benário para a Gestapo nazista, grávida de Anita Leocádia Prestes, hoje historiadora e consultora da peça. De Berlim, na Alemanha, as cartas continuaram a viajar apesar de toda a censura e brutalidade. Muitas delas perderam-se, não chegaram. Levada para o campo de concentração de Ravensbrusk, a judia Olga foi assassinada.
Movido por suas utopias, com mais de 80 obras na bagagem, Tendler trabalha com o fervor de um iniciante. Comemorou, há pouco, os 40 anos de lançamento de “Os anos JK-uma trajetória política”, em que traça o perfil do presidente bossa-nova, seu longa-metragem de estreia lançado com grande sucesso em agosto de 1980. Depois fez “Jango”, “Marighella”, “Glauber” e tantos outros personagens da historia.
Vai fazer deste projeto Olga e Luiz Carlos um novo filme, baseado na peça. Mas quer contar desta vez uma história humana. Segundo o documentarista, estamos acostumados a enxergar Olga como uma combatente política deportada para a Alemanha nazista. E sua história de amor com Prestes como um trágico episódio em meio à guerra. Silvio pretende mostrar que além de uma revolucionaria comunista, Olga foi uma mulher apaixonada pelo homem pai de sua filha, com quem se correspondeu durante anos nos cárceres.
E que amou profundamente a filha Anita, nascida na prisão no campo de concentração, de quem teve que se separar quando ela tinha apenas 14 meses. O cineasta vai concentrar sua energia criativa para revelar a face humana e apaixonada da relação entre Olga e Prestes, esperando alcançar um público jovem, de olho em seus ex-alunos do curso de cinema da PUC Rio.
Aperto a mão de Silvio e observo ele se afastar, empurrado em sua cadeira de rodas. Caminho para a rua e noto Eduardo Coutinho saindo do Edifício Master, um prédio de 12 andares e 276 apartamentos conjugados, habitados por pessoas comuns de classe média. Ele para, acende um cigarro, dá uma tragada, parece recordar as cenas.
Conta que seu maior desafio ao pensar no documentário foi extrair um material interessante daquelas pessoas consideradas normais. Não queria fazer um filme sobre classe média, mas sobre um universo desconhecido. Coutinho é um tipo solitário e calado, de alma pessimista e conversas breves. Encontrei-o certa vez na porta do Café de uma livraria na rua Jardim Botânico, folheando um livro, com um cinzeiro absolutamente entupido por guimbas de cigarros a seu lado. Disse olá.
Entre os personagens do Edifício Master selecionados pela equipe para as entrevistas, havia um casal de meia idade que se conheceu pelos classificados de um jornal; uma garota de programa que sustentava a filha e a irmã; um ator aposentado; um porteiro desconfiado de que o pai adotivo, com quem sonhava toda noite, era seu verdadeiro pai. E Daniela, uma professora de inglês que morava sozinha com três gatos.
Daniela evita olhá-lo nos olhos. Fica na defensiva. Há uma mesa baixa entre os dois, Em meio às pausas e uma certa tensão, ele acaba conseguindo estabelecer uma relação de confiança. Este talvez seja o método Coutinho. Não há uma regra. O importante é como os personagens falam de si, e não o que eles estão falando. Não interessa que o relato seja verdadeiro mas que haja intensidade. E a montagem é sempre caótica. Ninguém na equipe tem certeza do que virá a seguir.
Eduardo Coutinho teria completado 90 anos dia 11 de maio. Entre as homenagens recebidas estão uma mostra de seis de seus filmes no Itaú Cultural Play e outras também no canal Brasil e Instituto Moreira Salles. E a publicação da antologia “Cabra marcado para morrer”. São 20 texos que examinam à luz do cinema e da história a obra-prima iniciada em 1964, retomada em 1981, consagrada nacional e internacionalmente.
*Jornalista e escritor
Três vezes Tendler, o cineasta dos inconformados
Silvio Tendler comemora os 70 anos com cerca de 80 obras na bagagem,trabalhando com o fervor de um iniciante. É maluco por cinema e fotografia. Acaba de ter o seu “Santiago das Américas – O Olho do Terceiro Mundo”, exibido no Festival É Tudo Verdade 2020 on-line,ao mesmo tempo em que comemora os 40 anos de lançamento de“Os anos JK-uma trajetória política”, em que traça o perfil do presidente bossa-nova, seu longa-metragem de estreia lançado com grande sucesso em agosto de 1980.
Com uma comprida barba branca que lhe dá a imagem bíblica de um pastor judeu marxista,que se desloca numa cadeira de rodas, o chamado cineasta dos sonhos interrompidos,que já rodou o mundo, continua sonhando em busca de novos personagens que possam contradizer e iluminara conturbada e trágica realidadedos nossos dias, dominada pela onda do fascismo negacionista.
Santiago das Américas,uma de suas últimas criações, é uma homenagempara celebrar o centenário de nascimentodo documentarista cubano Santiago Álvarez (1919-1998), autor do clássico“Now!”,e de um obraque revolucionoua linguagem docinema documental latino-americano. Com o relato de pessoas próximas, o longa discute a realidade cubana pós-revoluçãoe sua interferência no processo cultural, mesclandojornalismo ecinema. Uma contribuiçãohistórica que realça a visão do premiado Álvares, que Tendler conheceu em sua formação.
Sob o lema “faça do cinema uma arma de luta e de reflexão”, em que se nutre da memória e do acaso, três anos depois de JK,Tendler fez “Jango”, em 1984,prêmio Margarida de Prata da CNBB.Foi consagrado como um documentarista que leva seus temas aogrande público. Põe em cena a história, a política, a cultura, as revoluções. Estão lá, entre seus personagens, o geógrafo Milton Santos, opolítico mineiro Tancredo Neves, o guerrilheiro Carlos Marighela, o cineasta GlauberRocha e seus labirintos, prêmio horsconcours em Cannes. O poeta Ferreira Gullar, os advogados dos presos políticos e os perseguidos pela ditadura. E “O mundo mágico dos Trapalhões”, de 198l, que ultrapassou um milhão de espectadores.
Em “Utopia e Barbárie”traz à discussãoacontecimentos políticos marcantes dos últimos 50 anos, reunindo uma sequência de cenas e depoimentos de personalidades que estiveram presentes em momentos definidores da história recente. As revoluções socialistas,aqueda do muro de Berlim, a contracultura, a guerra doVietnã, onde entrevistou o lendáriogeneralGiap, 94 anos, o estrategista que derrotou os colonialistas franceses e norte-americanos.
Uma síntese cinematográfica e histórica que ultrapassa o registro documental,a partir de suas observações e experiência pessoal.Tendler teve como inspiração o “cinema verdade”, de Joris Ivens, em sua proposta de um cinema documental engajado,com posicionamento político. Fez uma parte de sua formação acadêmica e artística em Paris,onde se exilou na década de 70.Trabalhou com o francês Chris Marker, outra grande referência no setor, com quem teve a primeira experiência na realizaçãode um documentário, o filme “La Spirale” (1975).
Não há uma relação de proximidade entre os temas e a realidade captada pelas câmeras de Silvio Tendler e de Rainer Werner Fassbinder, que são contemporâneos. Mas o nome do alemão me veio à memória por um caminho subterrâneo.Talvez ligados pela ponte de uma vertiginosa produção. Em 13 anos de carreira,Fassbinder dirigiu alucinadamente 43 filmes. Sempre polêmico, escandalizou a sociedade alemã dopós-guerra com seu comportamento anticonvencional. Morreu aos 37 anos vitima de uma overdose,depois de ganhar o Urso de Ouro no Festival de Berlim com “O desespero de Veronica Voss”, em 1981.
Obcecado por seu trabalho, às vezes extenso e repetitivo, às vezes didático e com lacunas na montagem, Tendler realizou,com sua produtora Caliban Produções Cinematográficas, uma obra de 80 produtos fílmicos.Os mais notáveis estão saindo do baú e seria instrutivo que osjovens se aproximassem deste variado e rico banquete cinematográfico.Além da homenagem no É Tudo Verdade, “Santiago das Américas” foi exibido no cineclube Macunaíma, da ABI. Quase todos podem ser vistos no YouTube.
Três de seus curtas integram a programação do canal Curta!:“Os anos JK”, “Jango”, a trajetória política dopresidente João Goulart, deposto pelo golpe de 1964, e “Glauber O Filme, Labirintos do Brasil”. Ao longo da construção de sua paixão pelo cinema, Silvio Tendler tentou decifrar alguns destes labirintos que desviaram o Brasil de seu caminho.Neste momento de proliferação de séries de terror e seriados nas plataformas de streaming, seus filmes, que fazem um inventário da História recente, conservamo impacto inicial e merecem ser vistos e revistos.
ALVARO CALDAS ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)