OS GENERAIS QUE EVITARAM O GOLPE

CHARGE DE MIGUEL PAIVA

Os dados animadores no “front” econômico, que vai bem melhor do que o cenário imaginado pelo freio puxado dos juros do Banco Central, já seriam suficientes para o Brasil virar a página do passado e pensar no futuro. Mas, politicamente, o país ainda está atrelado aos resultados de outubro de 2022, que não foram assimilados pelo governo Bolsonaro e seus apoiadores. O país esteve a um triz de um golpe militar que foi ensaiado várias vezes. Muita gente não entende por que deu chabu. Pois aqui e ali vai sendo montado o quebra-cabeças do golpe que não aconteceu porque prevaleceu a legalidade nas Forças Armadas.

Uma das linhas veio das investigações nos celulares do ajudante de ordens do Gabinete do presidente da República Jair Bolsonaro, tenente-coronel Mauro Cid, o faz-tudo do ex-presidente, que poderá ser julgado inelegível pelo Superior Tribunal Eleitoral na próxima sexta-feira, pela convocação aos embaixadores estrangeiros no Palácio da Alvorada, em julho de 2022, para falar mal das urnas eletrônicas e da lisura do processo eleitoral brasileiro. As ações de Cid vão muito além das tratativas do ajudante de ordens para fraudar cartões de vacinação para o ex-chefe e sua filha, Laura, além da própria família do militar, que acompanharia o já ex-presidente na permanência em Orlando, na Flórida, de janeiro a março.

No intervalo das variadas investidas para liberar as milionárias joias destinadas à primeira-dama Michelle Bolsonaro, apreendidas na Alfândega de Guarulhos, em outubro de 2021 – tarefa para a qual moveu aviões da FAB e oficiais da Marinha até 29 de dezembro de 2022, véspera do embarque da família Bolsonaro para os Estados Unidos (Michelle aproveitou viagem, em 2021, para se vacinar nos EUA), Mauro Cid se dedicava a trocar informações com vários oficiais do escalão intermediário das forças armadas em torno da ideia de um golpe militar para impedir a posse de Lula, que compreenderia o fechamento do Congresso e a prisão dos ministros do Supremo Tribunal Federal.

Não se sabe agora se a nomeação de Cid por Bolsonaro para comandar o 1º Batalhão de Ações e Comandos, do Batalhão de Operações Especiais, em Goiânia (GO), tinha sido em reconhecimento aos serviços prestados ao presidente e família, ou era parte do golpe militar ao qual o tenente-coronel dedicava parte do seu experiente. O 1º BAC é uma das divisões mais operacionais do Exército e a que fica mais próxima da capital federal. Seria mobilizada rapidamente em caso de golpe contra o novo governo.

Antes mesmo do ministro Alexandre Moraes determinar a prisão de Mauro Cid e apreensão de seus celulares, cujo exame pela Polícia Federal encontrou alguns dos elos que faltavam ao quebra-cabeças da tentativa frustrada de golpe que foi manifestada logo após o 2º turno da eleição, com a vitória apertada de Lula, apesar da enxurrada de dinheiro despejada pelo governo para conquistar o eleitor e das batidas da PF no Nordeste, sobretudo na Bahia, estado da maior vitória de Lula no 1º turno, para constranger os eleitores que viajavam de ônibus para os locais de votação. Como comandante supremo das Forças Armadas, Lula já tinha ordenado a anulação da promoção de Mauro Cid, por sua falta de idoneidade na falsificação dos registros de vacinação.

O comandante do Exército, general Júlio César de Arruda, que fora nomeado em 6 de janeiro, praticamente na véspera do golpe contra os três Poderes em 8 de janeiro, em Brasília, e resistira à ordem do presidente Lula, alegando a lisura da nomeação, foi sumariamente demitido no dia 21 de janeiro e substituído pelo general Tomás Miné de Paiva, que liderava o poderoso Comando Militar do Sudeste, com sede em São Paulo, a quem estavam subordinados o Comando de Aviação do Exército, de Taubaté e a 1ª Brigada de Artilharia Antiaérea, de Guarujá. No 18 de janeiro, enquanto o general Arruda fazia corpo mole, o general Paiva, em duro discurso de dez minutos, perante a tropa formada no quartel-general do Comando Militar do Sudeste (CMSE), afirmou que “o resultado das urnas tem de ser respeitado”. Tornado público no dia 20 de janeiro, o discurso soou como música aos ouvidos de Lula, que decidiu empossar o general Paiva no Comando do Exército no lugar de Arruda.

A história já registrou, embora com a omissão do conteúdo das mensagens trocadas, o agradecimento de então candidato Jair Bolsonaro ao pronunciamento do ex-comandante do Exército de fevereiro de 2015 a janeiro de 2019, general Eduardo Villas-Boas. Um pronunciamento do comandante do Exército às vésperas do julgamento do ex-presidente Lula levou à sua prisão, em 2ª instância pela Operação Lava-Jato, abriu caminho ao “impeachment” da presidente Dilma, em 2016 e, com a desmoralização política do PT nas revelações da Lava-Jato, abriu caminho para que um “outsider” da política tradicional, como o deputado e ex-capitão Jair Bolsonaro, fosse eleito em outubro de 2018. Após audiência de despedida com o general Villas-Boas, Bolsonaro exclamou “o que nós discutimos fica entre quatro paredes”.

Mas o general Villas-Boas, que padece de doença que lhe tolhe os movimentos, sendo obrigado a usar cadeira de rodas, ainda está longe de se retirar da cena política, exercendo grande influência sobre uma ala importante das forças armadas. Entre as revelações cada vez mais bombásticas e comprometedoras da participação do entorno do presidente Jair Bolsonaro no estímulo a um golpe militar (a minuta do decreto de intervenção federal no STE, em 12 de dezembro, data da diplomação do presidente Lula e do vice-presidente Geraldo Alkmin, e a troca de mensagens com militares da reserva), surgiu a revelação espantosa de que a mulher do tenente-coronel Mauro Cid, Gabriela (contemplada pelo marido com laudo falso de vacinação), trocava informações instigando o golpe com a filha do general Villas Boas, a jornalista Ticiana Villas-Boas, ex-apresentadora do “Jornal da Band” até se casar com o empresário Joesley Batista, um dos donos do grupo Friboi e do conglomerado J&F, controlador do Banco Original. Ticiana deixou o jornalismo, se separou do empresário, mas continua a transitar pelos escaninhos do poder. O pai sabe?

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[General Villas Bôas com o então presidente Jair Bolsonaro] “quatro paredes” (Foto: Valter Campanato | Agência Brasil)

Por que o golpe gorou?

Foi a resistência de generais legalistas que integravam o Alto Comando que impediu que exortações golpistas como as do coronel Jean Lawand Junior, então subchefe do Estado Maior do Exército, ao tenente-coronel Mauro Cid, desde a derrota de Bolsonaro, em 30 de outubro, tivessem curso. Num dos mais patéticos apelos de golpe, sob a liderança do presidente da República, Lawand apela: “Pelo amor de Deus, Cidão, ‘o presidente vai ser preso na Papuda”, exagerou o coronel. Nomeado por Bolsonaro para o apetitoso cargo de adido militar na embaixada do Brasil nos Estados Unidos, após as revelações da revista “Veja” a nomeação foi revogada, sexta-feira, 16 de junho, em reunião entre Lula, o ministro da Defesa, José Múcio, e o comandante do Exército, general Tomás Paiva. Lawand terá, agora, de estar à disposição da Justiça e da CPMI que investiga o “Golpe de 8 de janeiro”.

Vídeos que circularam abertamente pelas hostes bolsonaristas na internet, de novembro a janeiro, apontavam três generais como “Traidores”. Acompanhados das respectivas fotos, eram nomeados como “melancias” (velho termo das Forças Armadas no tempo da ditadura militar, que descrevia o militar de esquerda – verde-oliva por fora, e vermelho por dentro”). A lista era encabeçada pelos generais Richard Freire Nunes, que chefiara o Comando Militar do Nordeste, Tomás Miné de Paiva, que era chefe do Comando Militar do Sudeste, e André Luiz Novaes, comandante Militar do Leste. Também houve reações contra o general Valério Stumpf, que dirigiu o Comando Militar do Sul e passou comandar o Estado Maior do Exército. Como se viu, os comandantes dos principais contingentes do Exército se pautaram pela legalidade. E cumpriram o seu dever para com a pátria e a Constituição.

Sobraram críticas ainda ao general moderado Sérgio Etchegoyen, que foi chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) no governo Temer. No governo Bolsonaro, o GSI esteve a cargo do general Augusto Heleno, velho conspirador desde a trama pela qual o então ministro do Exército, Sílvio Frota, de quem era ajudante de ornes (papel exercido por Mauro Cid junto a Bolsonaro), tentou dar um golpe no presidente general Ernesto Geisel. Geisel percebeu a manobra e destituiu Silvio Frota, chamando para o seu lugar um suposto aliado com que Frota contava, o general Fernando Bethlem, comandante do então poderoso III Exército (Sul do país). Augusto Heleno será ouvido na CPMI para explicar sua participação, sobretudo a omissão dos oficiais do GSI no dia 8 de janeiro.

Pela composição atual do Alto Comando do Exército, sob indicação do general Tomás Paiva, percebe-se uma clivagem para afastar os comandantes que foram impregnados pela cantilena bolsonarista. No Comando Militar do Leste (com sede no Rio de Janeiro), o general Tomás Paiva visitou nesta terça-feira, 13 de junho, o comando exercido pelo general André Luís Novaes Miranda. Dos três últimos generais promovidos a quatro estrelas (general de Exército), em fevereiro, destacam-se Kleber Nunes de Vasconcellos, atual comandante da 1ª Divisão de Exército no Rio, que passou a chefiar o Comando Militar do Oeste; Hertz Pires do Nascimento, vice-Chefe do Estado-Maior do Exército, que assumiu o Comando Militar do Sul; e Luiz Fernando Baganha, ex-chefe da Segurança e Coordenação Presidencial no governo de Jair Bolsonaro, que vai comandar a longínqua Região Norte. Outros oficiais que tiveram suas imagens vinculadas à gestão anterior, porém, foram preteridos. Caso do general Carlos José Russo Assumpção Penteado, que foi secretário-executivo de general Heleno no GSI e está na mira das investigações de Moraes e da CPMI. Os generais e oficiais golpistas merecem execração. Os legalistas, a gratidão por cumprirem com o dever cívico de respeito à hierarquia e à Constituição.

A Saúde e a saúva

Macunaíma, o genial personagem criado pelo grande escritor Mário de Andrade, está mais atual do que nunca, um século após a Semana de Arte Moderna de 1922. Macunaíma, personagem principal do seminal livro lançado em 1928, tinha uma frase lapidar: “Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são!” Pois o noticiário da semana, com investigações da Polícia Federal que fecham o cerco sobre familiares e assessores do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), um dos líderes do Centrão, mostra que Mário de Andrade estava certíssimo pela verve de Macunaíma, apelidado pelo próprio autor de “o herói sem nenhum caráter”. Não concordo com o reducionismo de se concluir que Macunaíma (o brasileiro nascido no “fundo da mata virgem”) fosse um mau caráter. É que por tantas influências, mistura de índio com negro, que vira branco ao banhar-se numa fonte, Macunaíma não tinha um caráter dominante. Era melífluo. Ou seja, não tinha um caráter definido, mas não era mau caráter.

Vou falar de um assunto antes que o projeto de lei, de autoria da deputada Daniela Dytz da Cunha, do União Brasil-RJ – votado a galope esta semana na Câmara (não houve publicidade prévia, a ponto de o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, do PSD-MG, afirmar desconhecer o projeto, que terá de passar pelos crivos da Câmara Alta) – criminalize quem criticar ou fizer restrições a nomear parentes de políticos. Para quem não está ligando o nome à pessoa, Dani Cunha é o nome político da filha do primeiro casamento do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha. Cunha teve anulado em 29 de maio, pelo Supremo Tribunal Federal (SRF), uma condenação a 15 anos e 11 meses por corrupção e lavagem de dinheiro em um dos processos da Lava Jato. O STF acolheu o argumento da defesa de que o processo deveria ter sido conduzido pela Justiça Eleitoral, e não pela Justiça Federal em Curitiba. Mais uma incompetência do ex-juiz Sérgio Moro, eleito senador pelo União Brasil.

Se a lei for aprovada, o que o Senado, uma casa de homens públicos mais experientes, deve rejeitar, deveria ser chamada de Lei de Blindagem do Nepotismo. Como a história ensina, nos tempos em que os papas e cardeais podiam se casar (e ter várias mulheres e amantes) e exerciam forte influência política nas cortes europeias católicas, costumavam nomear sobrinhos (nepotes) para altos cargos da administração. Depois, o celibato virou dogma da Igreja Católica. Impedido de se divorciar da espanhola católica Catarina de Aragão, que não lhe dera filhos, o Rei da Inglaterra, Henrique VIII, criou sua própria igreja a Anglicana, em 1933, para poder se casar com a amada Ana Bolena. Mas o volúvel e cruel Rei ordenou a decapitação da esposa em 1536.

No Brasil a prática do nepotismo corre à solta no Executivo, no Legislativo e no Judiciário. Mas, quase todos evitam ficar com a cabeça exposta à guilhotina das investigações da imprensa ou da Polícia Federal. O disfarce mais comum é um político ou magistrado trocar chumbo com um colega: seus filhos ou sobrinhos são indicados para atuar no gabinete ou no feudo de um colega. No caso dos governos que têm base política fluida no Congresso – como tiveram Bolsonaro e agora Lula –, aumentam as pressões dos influentes deputados e senadores para que possam emplacar apaniguados em alguma sinecura do governo (de preferência as que tenham muitas verbas e atuação capilar em todo o país), em troca de apoios em votações cruciais para o governo.

Nem todos agem com o simplismo direto do ex-presidente da Câmara Severino Cavalcanti, também do PP, mas com reduto eleitoral no município de João Alfredo-PE. Eleito, de surpresa, em fevereiro de 2005, Severino foi direto em conversa com o então presidente Lula: “queria indicar um diretor para a Petrobras, daqueles que furam poço”. Durou pouco no cargo e não nomeou ninguém na Petrobras: teve de renunciar em 21 de setembro de 2005, ao mandato de deputado federal (e à presidência da Casa), por ter sido apanhado exigindo propinas para renovar a licença do concessionário do “bandejão” da Câmara.

Arhur Lira, que já era poderoso no governo Bolsonaro, pilotando o Orçamento Secreto que repartia verbas de até R$ 19 bilhões (até ser declarado inconstitucional pelo STF em dezembro do ano passado), mostrou mais força na largada do governo Lula, que enfrentou uma base mais próxima a Bolsonaro no Legislativo. Ao ser eleito com o impressionante placar de 464 votos, num universo de 509 votantes, vem tentando impor sua força ao governo Lula, a quem garantiu na votação da PEC da Transição (e de quebra a Bolsonaro, que não podia deixar gastos eleitoreiros sem cobertura) a expansão de R$ 145 bilhões este ano. Ele tentou, na ocasião, negociar uma indicação para o Ministério da Saúde. Junto com a Educação, a Saúde é a pasta com mais verbas e capilaridade nacional, envolvida com governadores e prefeitos de mais de 5.700 municípios. Lula fez ouvido de mercador e indicou a presidente da Fiocruz, a respeitada sanitarista Nísia Trindade, para o ministério, visando resgatar campanhas nacionais de vacinação. Com as dificuldades de Lula para conseguir apoios nas votações importantes (Lira usa o artifício de pautar temas opostos às diretrizes do governo, para expor o perfil arredio da Câmara), ele voltou a insinuar interesse na Saúde. Seu candidato era o deputado federal (PP-RJ) Luiz Antônio Teixeira Junior, mais conhecido como Dr. Luizinho. Em janeiro, ele foi nomeado secretário de Saúde do Estado do Rio de Janeiro pelo governador Cláudio Castro, e é um virtual candidato à prefeitura do Rio de Janeiro, em 2024, com apoio do clã Bolsonaro.

No caso da intermediação de verbas no poderoso Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação de Base (Fundeb), as investigações da Polícia Federal, acionadas pelo Ministério Público de Alagoas, encontraram em um cofre do ex-assessor de Lira, o também alagoano Luciano Cavalcante, R$ 4,4 milhões em reais e dólar. Luciano Cavalcante é investigado como um dos elos da venda superfaturada de kits de robótica a prefeituras de Alagoas, com desvios estimados em R$ 8,1 milhões. Na ocasião, Lira ficou tão aborrecido, que cobrou do ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, a quem está subordinada a PF, explicação para a “batida” policial contra aliado próximo. O ministro disse que não sabia das diligências, requisitadas pelo MP de Alagoas e autorizadas por Juiz Federal local. Contrariado, Lira fingiu aceitar.

Agora, uma investigação publicada pela “Folha de S. Paulo”, na sexta-feira, desvenda outra ponta de atuação do clã Lira: no Ministério da Saúde, bingo! Um filho de Lira (Arhur Lira Filho, de apenas 23 anos) e uma filha de Cavalcante (Maria Cavalcante, de 25) são sócios numa bem-sucedida empresa, a Omnia 360, que negocia com agências de publicidade contratadas pelo governo federal a distribuição de campanhas para veículos de mídia, como outdoors ou internet. Segundo a “Folha”, as empresas de mídia que a Omnia representa receberam cerca de R$ 6,5 milhões em campanhas publicitárias do Ministério da Saúde (até 2022). O site “Metrópoles” informa que foram R$ 34 milhões nos últimos dois anos. Mais uma vez, Lira recorreu à distinção do CPF e diz que nada tem a ver com os negócios do filho nem com os de Cavalcante. Esse talento para negócios, o filho herdou de quem?

GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL ” ( BRASIL)

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