A tocaia é um estratagema usado pelos caçadores para surpreender as presas. A tática foi usada como arma de guerra, sobretudo de guerrilha, ao longo dos séculos. No Afeganistão, cujo território montanhoso dá acesso à China, caravanas vindas da Pérsia, da Síria ou da Turquia, levando tecidos e especiarias chinesas ou indianas às ricas cortes europeias, foram alvos constantes de assaltos (na ida e na volta) dos bandoleiros afegãos, conhecidos como traficantes de haxixe (hashish em inglês), extraído da papoula. Isso gerou a corruptela de chamar os afegãos dos primeiros “hashshashins” da Humanidade. A índole sanguinária segue mantida até hoje.
No Brasil, uma das tocaias mais famosas foi a da polícia alagoana, que surpreendeu Virgulino Ferreira, o Lampião, Maria Bonita e seu bando, na manhã de 27 de julho de 1938, na Fazenda Angicos, divisa entre Sergipe e Alagoas. Depois de 15 anos de atuação, também com tocaias e cercos às pequenas cidades e fazendas do sertão nordestino, da Bahia ao Ceará, com roubo de gado e sequestro para a obtenção de resgate, Lampião e mais dez cangaceiros foram mortos com tiros de metralhadoras. Corisco e outros cangaceiros conseguiram fugir, mas Lampião, Maria Bonita, Enedina, Luís Pedro, Elétrico, Moeda, Alecrim, Colchete, Quinta-Feira, Mergulhão e Macela morreram ali mesmo. Todos foram decapitados (Maria Bonita, Quinta-Feira e Mergulhão, ainda vivos) e suas cabeças seriam expostas em todas as cidades por onde a volante passaria, até chegar a Maceió. Multidões se reuniriam para ver as cenas macabras e saudar o fim “do terror do sertão”.
Aguarda-se alguma tocaia política de Arthur Lira (Foto: reprodução da internet) |
A tocaia na internet, TV e celular
Pois antes dos fatos e versões viajarem rapidamente pela internet e pelo celular, a tocaia fez escola na política em Alagoas e em boa parte do interior do país. Esta semana, em Brasília, e em Alagoas, terra do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), tivemos exemplos explícitos da tocaia na política brasileira, quando o líder inconteste do “centrão” tentou chantagear o governo Lula, deixando para os momentos finais da prorrogação a votação das medidas provisórias (já esvaziadas pela Câmara) do desenho administrativo do governo Lula. Se a medida não fosse aprovada (e foram, afinal, com 337 votos a favor e 125 contra), o governo teria de encolher os 37 ministérios e voltar ao desenho de 23 pastas que prevaleceu no final do governo Bolsonaro.
O efeito da chantagem de Arthur Lira, que podia ter abreviado a questão pondo a medida em votação na semana anterior, e não na 25ª hora (na prorrogação do prazo de 31 de maio, não sem antes embaralhar, como ameaça, temas nos quais a Câmara se mostrava hostil ao governo), foi amplificado pela postura quase histérica de alguns comentaristas e formadores de opinião na TV. Lula estaria mais entretido com as articulações internacionais, do que com os destinos internos do governo. Algumas palavras aduladoras para Nicolás Maduro, da Venezuela, com pronta reação de outros chefes de Estado sul-americanos, ajudaram a ferver o caldeirão contra o governo.
Os comentários lembravam a atuação dos “cabras” que ajudavam a espalhar o “terror” de Lampião e companhia, com ameaças de amputação de uma orelha, um dedo ou algo pior para as famílias feitas reféns. Na era da internet, bandidos digitais usam e abusam de golpes pelo celular, se passando como “filho” ou “filha” sequestrados. Muita gente cai. Sites falsos de ofertas relâmpagos atraem tolos a digitar suas contas bancárias ou os números do cartão de crédito. Lula não chega a ter a experiência política de Leonel Brizola, que dizia vir “de longe”, por ter vivido a transição da República Velha para a reconstrução do Estado brasileiro com o também gaúcho Getúlio Vargas. Mas está longe de não ter instinto político para resistir ao “primeiro canto da sereia”.
O crescimento de 1,9% do PIB nos primeiros três meses do ano (embora influenciado pela safra agrícola, plantada ano passado e colhida no 1º trimestre) levou os bancos (Bradesco, Itaú e Santander) a reavaliarem para cima o PIB de 2023. Todos acima de 2,1%. O Santander agora prevê 2,4%, mais que o dobro que projetava até maio. O Itaú elevou a previsão de 0,9%, em dezembro, para 2,1%. O Ministério da Fazenda prevê 2,5%. Tudo isso dá mais segurança ao cumprimento das metas do Arcabouço Fiscal – que opera com o crescimento da economia como fator indispensável para gerar recursos para o governo cumprir a promessa de campanha de atacar as mazelas sociais, agravadas na gestão passada. Para o enredo dar certo, faltam ser neutralizadas duas travas: 1- a dos juros, que seguem subindo enquanto a inflação cai (a previsão é de que o IPCA de maio, que o IBGE divulga 4ª feira, reduzirá a taxa em 12 meses para 4%, mas a Selic segue em 13,75% ao ano); 2 – as tricheiras de Arthur Lira, na Câmara dos Deputados.
Tocaia derruba República Velha
Um dos casos mais famosos de tocaia na política aconteceu em Montes Claros, no norte de Minas Gerais. E suas consequências levaram ao fim da República Velha, com a deposição do presidente Washington Luiz, a dissolução do Congresso Nacional e a ascensão de Getúlio Vargas, como líder da Revolução de 1930. Era noite de 6 de fevereiro de 1930, em Montes Claros, quando um tiroteio envolvendo os militantes da caravana dos Conservadores contra os da Aliança Liberal precede o movimento político que veio pôr abaixo a Velha República. Era a Revolução de 1930 que se iniciava em Montes Claros. Na História, registra-se que este movimento irrompeu no dia 3 de outubro e terminou no dia 24 do mesmo mês com a deposição do presidente. Vale registrar que, na época, a chamada “política do café com leite”, quando o café que estava em São Paulo, alternava o poder com o leite vindo de Minas Gerais (hoje o café está basicamente em Minas e o leite é mais de São Paulo), prevalecia praticamente o bi-partidarismo. E Montes Claros reproduzia a divisão política em duas facções: o Partido de Cima, apoiado pela Aliança Liberal e chefiado por Honorato José Alves, e o Partido de Baixo, dos Conservadores – liderado pelo deputado Camilo Filinto Prates.
Assim como hoje o agro quer influir na política, na época do Brasil rural e com indústria incipiente, na ocasião, uma feira do agro (em torno do algodão e cereais) era o chamariz para que inimigos políticos do vice-presidente da República, Fernando de Melo Viana, viessem a fazer propaganda eleitoral em favor da candidatura de Júlio Prestes para presidente da República, quebrando, assim, a tradição da Política do Café com Leite. Quando a comitiva desceu da Estação Ferroviária em direção ao evento, ocorreu um tiroteio de tocaia. A reação preconceituosa do presidente Washington Luiz, um paulista, que taxou o movimento de “Tocaia dos Bugres”, gerou forte reação do povo de Montes Claros (e de muitos mineiros). Todos se sentiram insultados como “gente semicivilizada”. O castigo veio a cavalo. Washington Luiz foi deposto e Getúlio Vargas assumiu o poder que durou uma década e meia.
Lembram da reunião de abril de 2020?
Há muitos casos lamentáveis na famosa reunião ministerial de 22 de abril de 2020. O país estava em suspense com o avanço da Covid-19, declarada pandemia pouco mais de um mês antes. O governo Bolsonaro já tinha trocado o diligente ministro da Saúde, o médico Luiz Henrique Mandetta, que vinha fazendo catequese diária a favor de medidas profiláticas, uso de máscaras e isolamento, que desagradaram o presidente Jair Bolsonaro. Quando se esperava que o governo e o país acatassem as orientações do novo ministro da Saúde, o também médico Nelson Teich, Bolsonaro partiu para cima do então ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, dizendo que “não ia admitir que minha família e meus amigos” fossem surpreendidos por ações “de sacanagem” da Polícia Federal e completou que precisava ter informações antecipadas dos fatos (e dos bastidores das ações) nem que para isso tenha que trocar “os superintendentes, diretores da PF e até o ministro”.
No dia seguinte, Moro pediu demissão e saiu atirando. Foi substituído pelo agora encrencado com a Justiça, pela omissão, nos episódios do frustrado golpe de domingo, 8 de janeiro de 2023, Anderson Torres, que assumira o cargo de Secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, mas antecipou as férias (que começariam oficialmente em 9 de janeiro) para a noite da 6ª feira, quando embarcou para a Flórida, onde se encontraria com o ex-presidente, que para lá viajou dia 30 de dezembro. Teich durou menos de um mês. Foi substituído em 15 de maio pelo general Eduardo Pazuello, que foi um desastre completo na pasta da Saúde, retardando a compra de vacinas, até dar lugar ao 4º ministro, o médico Marcelo Queiroga, que, pelo menos, se empenhou pela vacinação.
Como jornalista há mais de 51 anos, já me acostumei a atravessar várias crises. Na economia e na política. Creio que os analistas devem ser ponderados e não embarcar em versões unilaterais. Há uma pergunta que sempre devemos fazer a nós mesmos: “A quem aproveita a crise?” Por isso citei o caso da reunião ministerial de 22 de abril de 2020, para fazer um “link” com o que aconteceu nesta 5ª feira, 31 de maio.
O Deus da Tecnologia
Enquanto Arthur Lira manipulava seus cordéis para tentar emparedar o governo na votação da MP dos ministérios (ele não se conforma com o Supremo Tribunal Federal ter declarado inconstitucional o Orçamento Secreto, através do qual manipulava R$ 19 bilhões para distribuir a políticos amigos), a Polícia Federal de Alagoas deflagrou a “Operação Hefesto”. Os nomes das operações da PF são muito criativos. Hefesto, filho de Zeus e Hera, era considerado na mitologia grega o deus da Tecnologia.
A “Operação Hefesto” investiga possíveis crimes ocorridos entre 2019 e 2022 na compra dos kits de robótica para 43 municípios no estado de Alagoas com verba do Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação (FNDE). Foram cumpridos 27 mandados de prisão, sendo oito no Distrito Federal. A investigação da Polícia Federal apontou que a licitação para a compra dos kits de robótica incluía, de forma ilegal, restrições para direcionar os contratos a uma única empresa. Segundo a PF, foram desviados com o esquema R$ 8,1 milhões. Num total de R$ 18,1 milhões.
Bingo! A operação da PF achou R$ 4,4 milhões (entre notas de reais e dólar) escondidos em armário num dos endereços de Maceió de Luciano Cavalcante. Ele foi assessor do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira. O FNDE foi presidido no governo Bolsonaro por Marcelo Lopes da Ponte, ex-chefe de gabinete do ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP-PI), presidente do PP e que divide com Lira o comando do centrão. O orçamento do FNDE é R$ 42 bilhões e cerca de R$ 1 bilhão do fundo presta-se às emendas parlamentares, incluindo aquelas do “Orçamento Secreto”. Quase 100% Centrão.
O esquema já era alvo do Tribunal de Contas da União desde junho de 2022, quando o TCU determinou ao governo federal a suspensão dos contratos e os repasses para a compra dos kits. O TCU suspeitou de irregularidades na destinação de R$ 26 milhões, pelo Ministério da Educação e o FNDE, para a compra do material por municípios alagoanos, no valor individual de R$ 14 mil.
Por coincidência, Alagoas foi o estado que mais recebeu verba do FNDE. Segundo levantamento de dados no sistema Siga Brasil (do Senado Federal), realizado pelo portal UOL, foram empenhados mais de R$ 40 milhões do FNDE para Alagoas, em prefeituras, empresas e fundações. Ao todo, foram mais de R$ 100 milhões em repasses de emendas ao estado de Lira. A maior parte desses recursos é do “orçamento secreto”, que era usado pelo governo para manter a base no parlamento por meio de distribuição de verbas.
O FNDE foi alvo de investigação, junto com o Ministério de Educação, na gestão do ex-ministro Milton Ribeiro. O ministro era aquele por quem Bolsonaro disse que colocaria “a cara no fogo”, para afiançar sua honestidade. Indicado pela primeira-dama Michelle Bolsonaro, Ribeiro não resistiu a dois dias de noticiário sobre seu envolvimento nas maracutaias para o empenho de verbas em troca de propina, intermediadas pelos pastores Gilmar Santos e Arílton Moura, da Assembleia de Deus. O FNDE tem orçamento mais folgado que o do próprio MEC, e se presta a liberar recursos para a compra de ônibus escolares e reforma/construção de escolas municipais. Dois focos de corrupção. Fechando o cerco, outro detido na operação foi Alexsander Moreira. Funcionário do MEC, no governo Bolsonaro era coordenador-geral de Apoio às Redes e Infraestrutura Educacional, área que transferia os recursos para a compra dos kits. Ele foi exonerado da pasta no mesmo dia da operação da PF.
O próximo capítulo da tocaia
Ainda assim, lembrando do que disse o ex-presidente Bolsonaro, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, um experiente juiz e por duas vezes governador do Maranhão, estado pelo qual se elegeu senador, foi visitar, no mesmo dia, o presidente da Câmara. Dino foi dizer a Arthur Lira que desconhecia a ação da Polícia Federal de Alagoas (subordinada à sua pasta), lembrando que a PF de Alagoas apenas cumpriu os mandados de busca, apreensão e prisão expedidos pela Vara Federal de Alagoas. Num país republicano, esse tipo de explicação seria desnecessário. Mas esse não é o cenário no qual circula o presidente da Câmara dos Deputados. Arhur Lira exibiu a sua invariável “poker face”. A cara de paisagem, com a qual blefa sem demonstrar raiva, ódio ou alegria. Por dentro, seu fígado reagia.
Aguarda-se alguma tocaia política de Arthur Lira. Se não nesta semana (com o feriado de “Corpus Christi” na 5ª feira, 8 de junho, as votações da Câmara serão feitas pelo celular, remotamente, o que dá margem a fraudes – quem garante que o votante é mesmo o deputado a quem pertence o número?), nas próximas votações de temas de interesse do governo Lula.
A retroescavadeira, trator que executa importantes serviços de terraplanagem e abertura de valas para escoamento de água ou assentamento de tubulações de água e esgoto, é um dos objetos de desejo com os quais deputados e senadores afagam prefeitos e respectivos eleitores nos municípios de seus estados. As retros viram moeda de troca nas cotas de emendas que deputados federais e senadores podem “morder” do Orçamento Geral da União. Por coincidência, “tratoraço” passou a ser um jargão político para qualificar a ação arrasadora de Arthur Lira na Câmara.
Vem troco aí.
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)