A VÍTIMA ESQUECIDA DA ESCOLA BASE

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O caso Escola Base”, dirigido por Paulo Henrique Fontenelle, lançado pela Globoplay, esclarece o que se passou e como Pedicini foi inocentado

O norte-americano Richard Pedicini foi uma das vítimas do caso Escola Base. No afã de buscar indícios jamais encontrados, a imprensa soube que o americano deixava sua casa e sua piscina ser utilizada por meninos pobres da região. Em sua casa, encontraram o que supunham fotos nuas dos meninos.

O documentário “O caso Escola Base”, dirigido por Paulo Henrique Fontenelle, e lançado hoje pela Globoplay, esclarece o que se passou e a maneira como Pedicini foi inocentado: um enorme abaixo assinado das crianças e de suas famílias, em suas defesas.

As tais fotos não passavam de ensaios feitos por Pedicini embaixo d’água, com lentes especiais, captando imagens que nada tinham de pornográficas

Depois do artigo 

Recebi a seguinte mensagem de Pedicini

Caro Sr. Nassif,

Eu vi sua coluna “O segundo crime da Escola Base”. Você perdeu alguns pontos, que você pode querer incluir se retornar ao caso após a exibição da série de Fontenelle.

Há alguns anos, tive a oportunidade de agradecer pessoalmente por sua posição no caso da Escola Base, provavelmente em algum evento de aviação. Permita-me agradecer novamente.

Você observou que, no caso Bar Bodega, Valmir Salaro estava mais uma vez presente, mas não notou que o juiz, Galvão Bruno, novamente prendeu inocentes.

No veredicto sobre o caso Bar Bodega, o juiz (um diferente, Lourenço, se bem me lembro) disse, em letras garrafais, que o que a mulher vítima morreu por  falta de assistência médica. 191 foi chamado, mas não enviou uma ambulância porque o chamador não pôde dar o número da rua do bar.

A imprensa não notou esse fato muito digno de notícia, porque quando alguém é considerado inocente, eles pulam para o final do veredicto. Na hora da acusação, a imprensa tem um apetite insaciável por detalhes; na hora de ser considerada inocente, esse fato é dado — juntamente com uma repetição dos detalhes da acusação agora refutada.

Em seu livro “Bar Bodega. Um crime de imprensa”, Carlos Dorneles observa dois momentos na favela onde alguns dos acusados viveram. Eles foram recebidos em casa, mornamente, quando foram libertados da prisão. (Lembro-me de O Estado ter executado sua foto com a legenda, “Na Rua”, dificilmente uma afirmação de inocência.) Mas houve uma tremenda celebração quando os criminosos reais foram presos. Isso provou que os falsamente acusados eram de fato inocentes.

Voltando ao caso da Escola Base, Paula reclama que sua inocência não foi esclarecida. Parte é a imprensa, parte são os tribunais. Existem sete maneiras de dizer “inocente” no direito penal brasileiro, e Galvão Bruno, em vez de escolher o mais forte, que foi provado que o crime nunca ocorreu, foi com o mais fraco, “falta de evidências”. Quando um crime não aconteceu de fato, não há como encontrar o verdadeiro criminoso, ter a catarse que os inocentes no caso Bar Bodega finalmente alcançaram. Quando uma acusação recebe manchetes, os inocentes merecem dos tribunais a mais forte afirmação possível de inocência.

A imprensa também não tem uma “marcha ré”. O Estado fez uma recapitulação do caso da Escola Base há alguns anos e procurou os envolvidos. Um casal inocente, Saul e Mara, se me lembro, pediu para não ser nomeado, assim como Lúcia Eiko Tanoue, culpada das falsas acusações. O Estado nomeou Saul e Mara e não nomeou Lúcia. Parece não haver como passar da coluna dos acusados, aqueles que perpetuamente “alegam”, para a dos inocentes. “Não levantarás falso testemunho” é um dos Dez Mandamentos, mas os jornalistas brasileiros parecem ter medo da possibilidade de declarar um homem culpado inocente.

O livro de Alex Ribeiro de fato começou como seu TCC, e foi publicado substancialmente inalterado, se bem me lembro. Ele me disse que conseguiu seu primeiro emprego, na Rádio Eldorado, se bem me lembro. Depois de não muito tempo, ele estava trabalhando em Brasília, e quando o caso Mirandola aconteceu, ele disse que avisou os colegas que não fazia sentido. Eles não ouviram.

Um dos aspectos mais surpreendentes do caso da Escola Base foi o desinteresse absoluto da imprensa pela verdade. Na noite em que fui preso, apontei a alguns repórteres que uma das evidências contra mim, o livro “Sexo na Cabeça”, foi o trabalho do notório pornógrafo gaúcho Luis Fernando Verissimo. Eu me virei para falar com outra pessoa, e quando olhei para trás, alguém empurrou algumas fotografias sobre o nome do autor, para evitar que a realidade interferisse na reportagem.

Falei com o pessoal de Valmir Salaro para seu documentário, por cerca de oito horas: um dia na minha casa, uma noite com Valmir no Marechal Deodoro, e tudo acabou no chão da sala de corte. Talvez porque eu mantive o que você disse em seu ensaio: a imprensa não aprendeu nada com o caso, que eu ilustrei liberalmente com casos muito piores desde o da Base da Escola. Alguns dos quais eu consegui melhorar ou reverter.

Claro, poderia ter sido que Valmir não tivesse gostado quando eu disse a ele que, como não posso mais fazer o tipo de trabalho que costumava fazer — ser preso na TV limita suas opções de carreira — agora faço o que ele faz, só que faço melhor.

A imprensa brasileira não procura informar, mas acusar. Qualquer fato que discorde da acusação é descartado, por mais pertinente e bem fundamentado; qualquer rumor que defenda a acusação é tratado como ouro. Quando os acusados discordam em algum ponto menor, eles “entram em contradição”, quando a polícia muda completamente sua história, “a investigação tomou novos rumos”.

A tragédia do Gol 1907 foi outro linchamento da imprensa, com qualquer acusação contra os pilotos americanos sendo descartada apenas quando poderia ser substituída por outra. O colunista do New York Times, Joe Sharkey, fez um bom trabalho ao lutar – ele foi acusado de se envolver em uma ” Briga de canto” com o Ministro da Defesa – até que alguém começou a envenenar sua fonte de notícias em inglês sobre o Brasil. Imaginando que o Gol 1907 não duraria mais do que o caso da Escola Base, comecei a enviar traduções da cobertura da imprensa local para ele e para os advogados americanos (isso foi pré-Google Translate).

No entanto, a cobertura do acidente continuou, na capa da Folha sete vezes no ano seguinte, se bem me lembro. Lembro-me de voltar para casa ao amanhecer do desfile do Carnaval em Anhembi para encontrar a Folha na porta com cinco páginas completas de cobertura. 

A tarefa acabou sendo milhares de páginas de tradução, incluindo 180 páginas do relatório preliminar do CPI da Câmara dos Deputados. Eventualmente, fiz pesquisa e tradução para o documentário do National Geographic Channel, e fui eu quem traduziu os veredictos para os pilotos. Observe que os advogados dos pilotos receberam informações minhas, e não vice-versa.

Todo o Brasil ouviu falar do transponder do Legacy, mas eu sou o único jornalista no Brasil que viu os transponders e o TCAS do N600XL. O controlador de tráfego aéreo que deu a folga fatal de “37.000 pés para Eduardo Gomes”, já havia derrubado outro avião com uma folga ruim. Dois jornalistas respeitados da Folha me disseram que sabiam do acidente anterior, um disse que não relataria sobre isso sem um documento oficial. Presumo que fosse amplamente conhecido entre a imprensa, certamente era bem conhecido entre os controladores. No entanto, ninguém foi atrás da informação, porque os pilotos americanos foram os que foram acusados.

Consegui o processo judicial sobre o acidente anterior (N219AS, 19 de setembro de 1986) indo ao tribunal em São José dos Campos e pedindo por ele. Recebi o relatório CENIPA, que aparentemente havia sido classificado (você conhece o governo militar) com um pouco de sorte, mas a sorte vem para aqueles que estão preparados. E sim, os passageiros do Gol 1907 morreram porque vinte anos antes, culpar os pilotos americanos era mais fácil do que consertar as falhas no sistema ATC.

A filosofia da segurança das companhias aéreas é que não se pode corrigir um acidente, mas pode-se evitar que ele aconteça novamente. Eu, em vários casos, inclusive de falsas acusações de abuso sexual, consegui fazer a diferença e, em alguns casos, uma diferença essencial. Eu gostaria de ter realmente conseguido que a imprensa mudasse seus caminhos, mas há inocentes que não morreram na cadeia porque eu escolhi lutar. Isso terá que ser o suficiente. O caminho que Valmir escolheu é lamentar o passado. Eu não considero isso construtivo.

E em parte, eu acredito, porque eu sou eu, enquanto a Globo é apenas a Globo.

LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)

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