Vou abordar a política num sentido mais amplo, que mistura com a economia e se traduz em uma aspiração fundamental para qualquer sociedade: o desenho de um projeto nacional. Os Estados Unidos cresceram muito e se tornaram a potência mundial dominante quando investiram maciçamente em educação, que facilitou sua industrialização, a inovação tecnológica e a infraestrutura, que integrou as quatro direções de seu mercado interno, a poderosa base de seu desenvolvimento econômico, político e social, esteios da pujante democracia. A participação na 2ª Guerra ampliou o cacife americano. Mas, Tio Sam percebeu que, com parte da Europa e o Japão destruídos, faltavam parceiros para as trocas comerciais. O Plano Marshall nasceu com esse sentido, de recuperar a Europa e atraí-la para a órbita do livre comércio e, de quebra, frear a influência comunista da União Soviética, que dominava o Leste europeu.
No fim dos anos 60, o jornalista francês Jean-Jacques Servan-Schreiber, fundador da revista “L’Express”, escreveu “O Desafio Americano”, um livro que alertava o mundo empresarial europeu para o risco de seus homens de negócios se submeterem aos capitais e à tecnologia norte-americana em uma Europa em atraso, resistente à inovação. Schreiber vendeu a “L’Express” em 1977 a Jimmy Goldsmith, e faleceu em 2006. Atirou no que viu e não percebeu o que se passava ao longe no cenário: a movimentação da China, que se abriu ao mundo, após a visita de Richard Nixon, em 1980. Alertada, a Europa tinha reagido não apenas ao desafio americano (e ao avanço da tecnologia japonesa) que eram abordados no seu mais famoso livro), mas à China, criando amplo espaço, sem fronteiras, transformando o limitado Mercado Comum Europeu na União Europeia, de 1992, que incluiu a união monetária, com a criação do Euro, a moeda única, a partir de 1º de janeiro de 1999.
Mas sete dos 27 países que formaram a UE não aderiram ao Euro. A começar pela Inglaterra, que preferiu manter a Libra. Mais tarde, em 2016, por indução meio que fraudulenta de Boris Johnson, os britânicos optaram por sair da união alfandegária da União Europeia. Johnson, já como primeiro-ministro, colheu os ônus de seu passo errado e o Reino Unido pena por isso até hoje, com forte desaceleração econômica e desemprego. Apesar da pompa e circunstância, a coroação de Charles III se deu nesse cenário de esvaziamento econômico, aumento do desemprego e perda de poder de compra da Libra. Cresce, assim, a desconfiança dos súditos à efetiva contribuição da monarquia para o país.
A crise mundial da pandemia da Covid-19 mostrou a vulnerabilidade que as cadeias produtivas do Ocidente e do Oriente, dependentes da produção industrial na China, para tirar partido de seus baixos custos (e direitos) trabalhistas, e dos subsídios do Estado. A falta de autonomia para a produção de máscaras, luvas e equipamentos de proteção individual, além de respiradores e insumos farmacêuticos, foi o 1º sinal de alerta do risco estratégico da submissão das populações nacionais à extrema dependência do suprimento estrangeiro. Os sucessivos “lockdowns” das cidades chinesas ao longo de 2021 e 2022 interromperam os fornecimentos de chips e equipamentos eletrônicos. As linhas de montagem de celulares, aparelhos de TV e automóveis foram atividades que sofreram muito no Brasil. O impacto na cadeia produtiva era proporcional ao uso dos equipamentos chineses nas linhas de montagem. Os governos dos EUA, Europa, Japão e Coreia do Sul perceberam o risco e trataram de ampliar os índices de nacionalização. As consequências da invasão da Ucrânia pela Rússia voltaram a agravar os problemas da cadeia de suprimentos, com custos elevados e incerteza nos insumos energéticos para a Europa. Os EUA se mobilizaram para garantir suprimento de gás e combustíveis, a custos mais altos. O efeito foi o aumento da inflação, levando os bancos centrais à política de juros altos que derrubou a recuperação econômica pós-pandemia.
O ultraliberalismo X autonomia
O cenário que exigia reações no sentido do aumento da autonomia foi negligenciado no Brasil, pela adoção de um discurso de um liberalismo tóxico nos últimos quatro ou cinco anos. Tratava-se de um contraponto ao excesso de dirigismo estatal anterior, que fracassou, não só por erro de concepção, mas porque a conjuntura internacional frustrou completamente as expectativas – em 2006/07 as projeções eram de que o barril de petróleo estaria valendo hoje entre US$ 250 a US$ 400, e a Petrobras foi acionada para operar várias frentes.
Veio a crise financeira mundial, nascida nos Estados Unidos, em 2008, e derrubou as cotações e os sonhos dos projetos de autonomia nacional. Um dos primeiros megaprojetos arquivados foi o do Comperj (Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro), em Itaboraí. O Plano de Construção Naval para que os navios tipo FPSO (navio flutuante de produção, armazenamento e descarga), que separa a água que vem junto com o petróleo e o gás extraídos das profundezas do pré-sal, e os armazena em tanques específicos. Os diversos FPSOs encomendados pela Petrobras e outras companhias para operar nos gigantescos campos do pré-sal (com até 300 kms de distância da costa fluminense, paulista ou capixaba), têm capacidade para processar de 70 mil até 225 mil barris/dia de óleo e até 6 milhões de m3 de gás. Numa quadra de pregação ultraliberal, falar em projetos de autonomia virou heresia.
Essa discussão não foi feita na campanha eleitoral. Trocaram-se mais acusações vazias de conteúdo, mas ricas de ofensas entre o presidente que fracassou redondamente pelo negacionismo e o candidato que foi reabilitado pela Justiça e pelas urnas. Tirante a troca de governo, o resultado foi a eleição de um Congresso esquizofrênico no 1º turno, em 3 de outubro de 2022. Uma parte ligada ao clima de “laissez faire, laissez aller, laissez passer”, ideia do liberalismo francês do século XVIII. Uma tosca tradução foi feita aqui no Brasil na famosa reunião ministerial, de 22 de abril de 2020 (que selou a demissão do ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro), pelo então ministro de Meio Ambiente. Ricardo Salles sugeriu que o “governo aproveitasse que a imprensa estava entretida com a ameaça da Covid-19” (que mal foi debatida na reunião) para liberar geral deixando “a boiada passar de baciada”. Outra parte ligada à ortodoxia passada. Temos, por isso, um Congresso disfuncional. As primeiras votações na Câmara e no Senado evidenciam isso.
Em meio a esse tiroteio, liderado pela “bancada da bala” e ultradireitistas, algumas das propostas da terceira via não puderam ser escutadas. Cito duas ou três importantes ideias do candidato Ciro Gomes (PDT). Uma delas, que sustenta desde as eleições de 2018, era de que o endividamento excessivo das famílias brasileiras, causado pelo excesso de juros, impede o mercado consumidor interno de ser ampliado, o que daria economia de escala à produção industrial doméstica para competir de forma mais equânime (à parte a necessidade de redução dos impostos na cadeia produtiva, via reforma tributária, para taxas mais a renda e o patrimônio que o consumo e os salários, e a baixa dos juros reais). O governo Lula absorveu a ideia, mas até hoje o projeto “Desenrola”, para aliviar o endividamento, sobretudo das famílias que ganham até dois salários-mínimos (R$ 2.640, a partir de 1º de maio), não chegou aos guichês de bancos, lojas comerciais e concessionárias de serviços públicos, onde as pessoas estão com o nome negativado.
Outra proposta de Ciro Gomes era explorar o potencial favorável de alguns setores industriais brasileiros, que receberiam concentração de investimentos, e seu efeito multiplicador de emprego e renda faria a roda da economia girar mais. Estavam neste seleto grupo o complexo de fármacos e equipamentos para o setor médico hospitalar. E, mesmo sendo um país praticante e defensor da Paz, o complexo armamentista (não com a proliferação de armas nas mãos de CACs e toda a sorte de milicianos disfarçados, como pregava Bolsonaro para ter uma brigada própria armada capaz de ajudá-lo a dar um golpe, como o fracassado de 8 de janeiro), mas no avanço tecnológico para a progressiva fabricação de aviões e armas de defesa. A Embraer é um sucesso mundial com os seus aviões Tucano (vendidos a Portugal na recente viagem do presidente Lula ao país) e o cargueiro KC-190. Submarinos e armas de apoio são valorizados no mundo. Em nome da Paz, o Brasil de Lula recusou fornecer armas à Ucrânia, que só causaria a ampliação do conflito e mortes e tornaria mais distante a possibilidade de Paz, com efeitos benéficos ao mundo todo.
O exemplo da Shein
Mas a pregação ultraliberal de Paulo Guedes fez escola. O ex-ministro da Economia, que era discípulo da ortodoxia monetária da Escola de Chicago, onde foi aluno de Milton Friedman, sempre militou no mercado financeiro e pouco se preocupou com a economia real, com os métodos de produção, inovação e geração de emprego e renda na economia real, seja no setor industrial, incluindo as indústrias extrativa mineral e de construção civil, comercial ou de serviços, com foco mais nas atividades financeiras e nas desregulamentações, vai voltar em breve (quando a quarentena de seis meses terminar) a seu mundo, como gestor financeiro da Legend, uma gestora de investimentos ligada ao BTG-Pactual. É quase uma retomada de caminho no mercado de capitais. Guedes era assessor econômico do Ibmec, o Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais, mantido pela Bolsa de Valores do Rio de Janeiro e outras entidades da área financeira e com subvenções do Ministério do Planejamento, quando foi convocado, em 1983, para se juntar a outros dois sócios, o banqueiro Luiz Cesar Fernandes (ex-Garantia) e o operador André Jakurski, para fundar a Pactual Distribuidora (com a sigla das iniciais do trio). Anos mais tarde, a distribuidora virou o Banco Pactual. Todos os sócios originais deixaram a instituição, cujo controle é de André Esteves, desde 2009, quando recomprou o controle do suíço UBS, atribulado com a crise financeira mundial de 2008, e o transformou no BTG-Pactual.
A pregação liberal de Paulo Guedes mostrou sua face equivocada no recente episódio da reação do governo Lula, sob a liderança do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para estabelecer algum tipo de controle sobre as operações do poderoso site Shein de venda eletrônica de mercadorias a baixo custo. O site, registrado no paraíso fiscal de Cingapura, driblava a Receita Federal, que isenta as operações de remessas de divisas vinculadas à compra de bens entre uma pessoa física do Brasil para outra no exterior, até US$ 50. A medida visava a facilitar a vida de estudantes brasileiros no exterior, que podiam receber ou enviar livros e discos a familiares e amigos no Brasil. Mas a Shein e sites chineses, como Shopee e AlliExpress, distorciam o benefício, fingindo que pessoas físicas eram as vendedoras de objetos no exterior. Essa prática típica de camelôs e muambeiros estava arrasando com a indústria e o comércio de roupas, calçados e acessórios nacional, com perda de emprego e renda. Mas, quando o governo, seguindo exemplos dos países europeus, fechou o cerco à Shein, vozes na internet (lideradas por “influencers” que monetizam seus conselhos) criticaram pesadamente o “intervencionismo” do governo. Em menos de uma semana a própria Shein e os demais sites reconheceram que estavam agindo errado e se apressaram a fazer acordos para comprar da própria indústria nacional. Pelo mesmo critério liberal se aceitou passivamente, no final do governo Temer, a instalação de dezenas de sites estrangeiros de apostas no Brasil, sem pagar qualquer tributação. Como todos sabem que no jogo do bicho e no cassino a banca sempre ganha, esses sites viraram “aspiradores de divisas” do país. Só agora, após o previsível escândalo da corrupção de jogadores (que quase destruiu o futebol italiano), o governo Lula vai aplicar fiscalização e tributação sobre as casas de apostas e ganhadores.
Política com P maiúsculo
Quantas oportunidades de geração de emprego e renda (e receita de impostos para o governo atender às áreas carentes do país) não estão sendo perdidas pelo excesso de liberalismo? Um dos maiores grupos empresariais do país, o Votorantim (108 anos), que está na 3ª geração, deu um passo importante, esta semana, para entrar numa área sensível do país: a produção de medicamentos com a compra da Hypera Pharma, que controla várias importantes marcas de remédios no país. O grupo Votorantim atua na agroindústria, na geração de energia, da qual é grande consumidor, na indústria de base, com a Cimentos Votorantim, a Companhia Brasileira de Alumínio, além de níquel, cobre, zinco e prata através do controle da Nexa Recursos Minerais, que atua também na América Latina. E possui 50% do Banco Votorantim. Há um imenso potencial de articulação a ser feita entre os diversos setores estratégicos da economia brasileira para que se possa produzir aqui mais produtos e serviços. A Petrobras, que vai passar por uma cruzada de transição energética (providência negligenciada no governo Bolsonaro), está articulando com o BNDES a criação de comissões para estudar o potencial de fornecedores locais. O nome disso é política industrial pró-ativa. A retomada do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social Sustentável abre enorme oportunidade para isso. Os empresários do comércio e da indústria parece que vinham deixando de trocar cartões até mesmo por falta de reuniões lideradas pelo governo. Mais distante dos trabalhadores e sindicatos.
Há muito a ser construído e reconstruído no país, que precisa da negociação política na sua essência. Não a política do toma lá-dá cá, que é praticada há décadas pelo “baixo clero” da Câmara dos Deputados e do Senado e cujo vício se repete nas assembleias legislativas e câmaras municipais. A Política com P maiúsculo deve pensar primeiro no interesse nacional.
Que os nossos políticos (de oposição e de situação e os que ficam em cima do muro esperando a direção que o vento vai soprar) mirem-se no exemplo do grande Affonso Arinos de Mello Franco. O histórico político mineiro, era líder da UDN, conservadora, que fazia ferrenha oposição a Getúlio Vargas (PTB). Foi um dos líderes do “Manifesto dos Mineiros”, em 1943. Mas acabou tendo o seu nome inscrito na história com duas importantes leis progressistas no 2º governo Vargas, eleito pelas urnas. Em 1951, Arinos conseguiu aprovar a Lei que leva o seu nome e que foi pioneira em criminalizar a discriminação racial no Brasil. Depois, em meio à memorável campanha “O petróleo é nosso”, deu o apoio decisivo da UDN à promulgação da Lei 2004, que estabeleceu o monopólio do petróleo (que completa 70 anos em outubro e já foi revisto) e criou a Petrobrás no ano seguinte.
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES”” JORNAL Do BRASIL” ( BRASIL)