Minha geração, nascida nos anos 40 do século passado, passou por poucas e não tão boas. Nascemos na parte final da Segunda Guerra Mundial e talvez em algum refolho de nosso inconsciente tenha ficado impresso o clarão das bombas atômicas de Nagasaki e Hiroshima como advertência de que adentrávamos um mundo perigoso.
A distância geográfica entre o teatro da guerra e o Brasil poderá nos ter dado a sensação de que estávamos numa redoma impenetrável aos holocaustos e aos totalitarismos e nossos passos seriam atapetados pela racionalidade trazida pela assinatura da Carta de São Francisco e a consequente criação da Organização das Nações Unidas como garante de uma paz enfim duradoura.
Mal saídos das calças curtas, porém, os jornais radiofônicos vieram salgar nossos jantares em família com quase impronunciáveis nomes de cidades da Coréia, a paradoxal noção de que uma guerra poderia ser fria e que um Secretário-Geral das Nações Unidas poderia ser vítima de um desastre aéreo como retribuição a uma missão de bons ofícios.
Entrados na adolescência, com hormônios em clave de sol, vivemos os inesquecíveis anos 60 com a revolução trazida pelo Rock and Roll, pelos Beatles, pela Bossa Nova e pela pílula a nos abrir as portas do amor e pela psicanálise a nos mostrar que há situações-limite e limites para toda situação.
No Brasil, poucos anos antes, com o suicídio de Getúlio Vargas e os anos JK, perdemos a inocência política e para muitos de nós o Brasil, seu papel no mundo, passou a ser uma vocação irresistível seja nas carreiras civis seja nas militares. Também nos anos sessenta vivemos a melhor fase do debate parlamentar com políticos de reconhecida força oratória e domínio do vernáculo, da sintaxe e da gramática a nos fazerem acompanhar os duelos no Congresso com especial atenção e os transbordamos para os Diretórios Acadêmicos das Universidades em que acabávamos de ingressar.
O 31 de março de 1964 foi o primeiro de abril de nossa geração.
E deste faz de conta saímos quase trinta anos depois já em nossa maturidade física e intelectual, casados uns, cassados outros, todos a carregar a marca inapagável de nossas opções.
Mas, nada nos anos 50 a 90 nos poderia fazer imaginar que o novo milênio nos traria no outono de nossas vidas a desolação e a perplexidade com que nos defrontamos hoje. Nada, nem mesmo os piores dias da Ditadura, nos lançou num Brasil em que a clivagem social e política viesse a ser tão profunda e dramática.
Daí por que nossa geração não tem o direito de envelhecer. É bem verdade que o fenômeno que nos atinge não decorre de decisões exclusivas nossas mas nos fazem recordar o mesmo sentImento de ambivalência que vivemos nos primeiros dias de nossas vidas em que o terror nuclear parecia sugerir a inevitabilidade da paz. Hoje, porém, não são poucos os que nos pretendem arrastar para o autoritarismo totalitário como se pudéssemos esquecer que deste totalitarismo surgiu a guerra, o holocausto, a destruição nuclear. E a essas maleitas se soma a deterioração ambiental com suas mais do que temíveis alterações climáticas.
Assusta particularmente que movimentos autoritários e totalitários estejam a florescer em países tradicionalmente comprometidos com a Democracia e a liberdade. O recrudescimento das sanguinárias lutas raciais nos Estados Unidos da América, a intolerância religiosa e a discriminação contra o imigrante se misturam explosivamente com uma ideologia dita neoliberal profundamente divisiva, econômica e politicamente.
O Brasil não ficou imune a esses movimentos, em especial nos últimos anos. Felizmente, começa a se vislumbrar na sociedade brasileira uma crescente repulsa ao aprofundamento desta barbárie a atingir a horripilante violência contra crianças e escolas.
Mas, o Brasil por diversas razões, em especial por sua dimensão territorial, por sua miscigenação racial, por sua tolerância e sincretismo religiosos já surge como nova forma de potência na configuração geopolítica mundial. Uma ascensão que incomoda em muito os que nos viam e pretendem continuar a ver como pastoreio e latifúndio de um mundo segregacionista. Incomodamos, porque pouco a pouco abandonamos nosso surrado ufanismo verde-amarelo. A cada dia ficamos mais longe dele.E mais próximos de nossa responsabilidade social, primeiro com os brasileiros e, em seguida, com nossos compromissos com a Carta dos Direitos Humanos e com a Carta de São Francisco, esta última mutilada por um direito de veto no Conselho de Segurança das Nações Unidas, que o desfigura.
A geração de 40, a despeito de seu erros e desvios passados, tem ainda muito a ajudar na criação do Estado de Bem-Estar Social, meta central de nossa Constituição de 1988. E aqui é bom reconhecer sem preconceitos: só o faremos se e quando reconhecermos que a Constituição de 1988 é nossa carta política que nos obriga a todos, civis e militares.
É igualmente o que leio na inspirada letra de “Que tal um samba?” de Chico Buarque, ele também da geração dos anos 40, um dos maiores poetas dela, que amanhã receberá finalmente o Prêmio Camões, vitória não desprezível contra o autoritarismo e a arbitrariedade.
Desde a “Banda”, mal-interpretada pelos ditadores, passando por “Cálice”, e por “Olhos nos Olhos”, duas joelhadas respectivas na censura e no machismo, Chico musicou nossa geração, regeu o ritmo de nossas marchas cívicas e nos demonstrou que uma “Construção” indevida pode atrapalhar o trânsito. Matar vidas.
XXXXXX
QUE TAL UM SAMBA
Um samba
Que tal um samba?
Puxar um samba, que tal?
ADHEMAR BAHADIAN ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)
*Embaixador aposentado