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CHARGE DE MIGUEL PAIVA

Lula é intimorato, mas o ritmo frenético de sua atuação, cortando o Brasil ou fazendo escalas internacionais, está um pouco puxado para quem tem 77 anos

Perdão, caro leitor. O nome do filme vencedor do Oscar 2023 é “Tudo em todo lugar – ao mesmo tempo”, mas o título não caberia no espaço da coluna. O que usei parece sintetizar o turbilhão de coisas (da política, da economia, do crime e da conjuntura internacional) acontecidas esta semana, que culminou com o sensato adiamento da viagem do presidente Lula à China, para tratar de uma pneumonia. Antes, na vida real, umas palavras sobre o Oscar 2023. O filme trata da disruptiva dos tempos atuais. E a edição 2023 marcou a disruptiva da festa com o cinema, tradição desde a criação da premiação, em 1927 (a 1ª festa para comemorar a vitória de “Wings”, como o melhor filme, foi em maio de 1929). O ano de 1927 marca também o 1º filme falado, “O Cantor de Jazz”, com Al Johnson “maquiado” de negro. A cerimônia, sem cobertura de rádio (ou da televisão que nem existia) era uma celebração dos grandes estúdios e de suas grandes estrelas (ideia de Louis B. Mayer, poderoso chefão da MGM). A Academia de Artes Cinematográficas era presidida por Douglas Fairbanks Jr. Para render homenagem a expoentes do cinema mudo, Charlie Chaplin e Warner Brothers foram agraciados com prêmios honorários.

Encurtando a história. Neste ano não se viu rugido de leão nem um grande estúdio ou um grande astro ou estrela premiada (alguns disputaram, mas não levaram). Estavam lá Pixair, Estúdios Disney, Spielberg (daqui a pouco será lembrado pela refilmagem de Jurassic Park, com numeração tipo “Sexta-Feira 23º”). Sem importância como fonte de renda (há merchandising, facilidades de locação nesta ou aquela cidade), a exibição nas “mágicas” salas perdeu o glamour, o ritual do “escurinho do cinema”, como dizia Rita Lee, (excitante em início de namoro), antecedido ou esticado por um bom jantar com vinho. Agora, as obras são vistas em casa, em “streamings”. Há telas gigantes de TV. Mas o ambiente, claro, com os assistentes escarrapachados no sofá ou deitados, com pausa nos controles para responder um zap, um pulo no banheiro, uma cerveja ou taça de vinho, tirou a magia. “Hollywood” deixou de ser uma fábrica de propaganda do “way of life” americano. Mas poucos criticam suas mazelas. Os estúdios abusam da familiaridade dos jovens aos ambientes de videogames violentos, como o “Fortnite”, que meus netos já abandonaram, para animar histórias em quadrinhos de “heróis” ficcionais e atrair a nova geração. Isso é disruptiva do cinema e não tem mais nada a ver com a “festa do Oscar”. Virou uma cerimônia caída, com raras atrações musicais, como Rihanna. Desconhecidos desfilam modelitos estravagantes, sob entusiasmo de narradores/as que parecem “colegas de auditório” de Sílvio Santos.

Da ficção à realidade brasileira

Tudo aconteceu na semana. Na economia, a crise do Silicon Valley Bank se alastrou para o Signature e para o First Republic Bank, levando o Federal Reserve Bank a intervir com bilionárias linhas de acesso às centenas de bancos pequenos e médios do país. Na crise de confiança, o dinheiro parou de circular. A contração do crédito desacelera a economia americana e contrai a demanda de forma mais rápida e eficaz que uma alta de juros. A crise atravessou o Atlântico e atingiu o Crédit Suisse, com as autoridades da Suíça forçando o UBS a assumir o CS em troca de ações. E ameaça o Deutsch Bank. No Brasil, o patamar da Selic em 13,75% ao ano sobe o piso dos juros reais (descontando a inflação, que ronda os 5,6%) a 8% ao ano. Difícil com o ambiente conturbado pelo tombo levado pelos grandes bancos e grandes fornecedores na recuperação judicial das Americanas. A companhia apresentou, 2ª feira, último dia da RJ, proposta mais viável de capitalização e desconto de juros pelo trio de acionistas de referência (os bilionários Jorge Paulo Lemann, Carlos Alberto Sucupira e Marcel Telles, com 30% das ações com direito a voto). As partes têm 90 dias para evitar piora na crise de crédito.

Nos Estados Unidos, o Fed percebeu que a contração dos empréstimos pode ajudar seu esforço de conter a demanda. A ameaça de elevar as taxas básicas em 0,50 ponto percentual foi trocada pela manutenção do nível de 0,25 p.p., que colocou o piso na faixa de 4,75%-5%. E o Fed terá 45 dias para decidir se para por aí (se a retração do crédito esfriar a demanda). Lá, o Fed tem o mandato de proteger a estabilidade da moeda e garantir o pleno emprego. Aqui, as coisas não são muito diferentes. Ao conquistar o “status” de independente perante o Poder Executivo, com a Lei 179, de fevereiro de 2021, o Banco Central do Brasil ganhou como missão, aprovada pelo Congresso (Câmara e Senado) “Garantir a estabilidade do poder de compra da moeda, zelar por um sistema financeiro sólido, eficiente e competitivo, e fomentar o bem-estar econômico da sociedade”. As duas primeiras missões eram inerentes ao BC. A obrigação de “fomentar o bem-estar econômico da sociedade” foi fixada pelo Congresso como contrapeso à sua independência.

O presidente Lula considera o Banco Central um corpo estranho à sua política econômica voltada às camadas de menor renda da sociedade, que o elegeram. O Banco Central opera com metas de inflação pré-estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional com dois/três anos de antecedência. A meta de 2023 (3,25% de inflação + 1,50 p.p. de tolerância, com teto máximo de 4,75%) foi estabelecida em junho de 2020, pelo CMN, então presidido pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Roberto Campos Neto, presidente do BC, integrava o Conselho, junto com o secretário do Tesouro Nacional. O BC não cumpriu a meta de 2021 (3,75% de inflação +1,50%= 5,25%, deu 10,06%), nem a de 2021. Teve de escrever cartas aos presidentes do CMN em 2021, que era Paulo Guedes, e para o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em janeiro de 2023, se desculpando pela falha de 2022: o teto era de 5,0% e deu 5,79%. Quase fica em 2ª época, mas o “mérito” da queda da inflação que estava em dois dígitos quando o BC elevou a Selic a 13,75% não foi do Banco Central. E sim do pragmatismo eleitoreiro de Paulo Guedes. Percebendo que o BC não teria êxito em derrubar a inflação – antes derrubaria a economia, como está ocorrendo e tornaria inviável a reeleição de Jair Bolsonaro – o ministro interferiu diretamente nos preços dos produtos de maior peso na inflação, como combustíveis, em especial a gasolina, e energia elétrica, mediante a renúncia de impostos federais e estaduais (o ICMS, que parte vai para os municípios).

As medidas eleitoreiras valiam de 1º de julho a 31 de dezembro de 2022. A volta destes impostos (que desfalcaram os tesouros federal e estaduais) está agora pressionando a inflação (não como os números de 2022, que subiram muito no 1º semestre pelos impactos da guerra da Rússia na Ucrânia). A grande safra agrícola de 2022/23 está derrubando os preços dos alimentos, o que não aconteceu nos últimos três anos. Como a indústria, o comércio e o setor de serviços (que depende muito da renda e das atividades dos demais setores) estão patinando rumo à recessão, cabe à agropecuária evitar uma recessão técnica (queda de dois trimestres seguidos, pois já houve queda de 0,2% no PIB do 4º trimestre). A situação incomoda Lula. O BC insinua que mesmo com o teto da meta de 2023 furado, assim como a de 2024 (4,50%), precisa manter o freio de mão puxado (as lonas soltam fumaça e as pastilhas rangem) porque o governo não apresentou plano fiscal consistente.

O Comitê de Política Monetária do Banco Central (Copom), que se reuniu 4ª feira, com três horas para pensar melhor após a decisão do Fed, usou essa desculpa para fazer ouvidos de mercador aos apelos crescentes para a redução dos juros. Fora o desconhecimento do arcabouço fiscal e sua sustentabilidade, um argumento falacioso foi o risco de repique da inflação no 2º semestre (com o corte dos impostos houve deflação acumulada de 1,32% nos meses de julho, agosto e setembro de 2022). O Copom manteve a retórica de que “não hesitará em elevar os juros se a conjuntura o recomendar – [toda autoridade monetária repisa isso]. O presidente Lula e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, ficaram furiosos com o Copom. Lula fustigou novamente Roberto Campos Neto, acusando-o de “estar descumprindo parte da missão do Banco Central – de “fomentar o bem-estar da sociedade”. A verdade é que o governo só ia amarrar o arcabouço fiscal após a volta de Lula da China e Emirados Árabes Unidos. Com o adiamento de uma semana, para garantir o combate da pneumonia, há chance de o arcabouço sair antes da viagem.

Muita gente criticou Lula, acusando o presidente de criar um “mal-estar” com o Banco Central. Estou com Lula, prefiro o “bem-estar da sociedade”. Os dados do IPCA-15, que o IBGE divulgou na 6ª feira, confirmaram que o Banco Central está vendo fantasmas. A prévia do IPCA cheio de março, a ser conhecido dia 11 de abril, apontou queda expressiva tanto no índice geral, que declinou dos 0,76% de fevereiro para 0,69%. O destaque foi a desaceleração dos preços de alimentos e bebidas (itens de maior peso no IPCA, que mede as despesas das famílias que ganham até 40 salários-mínimos e do INPC, onde atem peso ainda maior para quem ganha até cinco salários-mínimos). Depois de subir 0,55% em janeiro, os alimentos subiram 0,39% em fevereiro e apenas 0,20% em março. No 1º trimestre, enquanto o IPCA-15 acumulava alta de 2,01%, a alta acumulada de alimentos e bebidas ficou quase 50% menor: 1,14%. Eu não esperava baixa dos juros agora. Mas alguma sinalização positiva para 3 de maio e sobretudo, para 21 de junho, quando o Fed já terá definido melhor sua ação, que o Copom leva em conta por influir na cotação do dólar. Sempre uma pressão na inflação. Na minha visão, o excesso de conservadorismo do Banco Central (que abaixou demais a Selic na pandemia, a 2% – devia ter mantido em 5% – e demorou a subir os juros, sempre atrás da inflação em 2021 e 2022) está parecendo a história dos bombeiros que demoram tanto e só chegam para fazer o rescaldo. Quando o BC ceder, será tarde para a economia.

Se o gato sai, o rato toma conta

Foi bom adiar a viagem à China, articulada pelo assessor especial e ex-chanceler Celso Amorim para relançar o Brasil a outro patamar de negociação (virando a página do país “pária” na triste gestão de Ernesto Araújo). Lula é intimorato, mas o ritmo frenético de sua atuação, cortando o Brasil ou fazendo escalas internacionais, está um pouco puxado para quem tem 77 anos. Seus médicos foram responsáveis ao vetar os riscos da longa viagem de avião.

Como parte das negociações já foi resolvida pela missão exploratória de ministros e empresários que estão em Pequim e Xangai há mais de uma semana, sobretudo o pessoal do agronegócio que está ampliando o leque de exportação de carne (bovina, suína e de aves) à China, adiar uma semana para as tratativas de chefe de Estado e a assinatura de acordos fará bem (ainda que, se as vendas crescerem muito, pode atrapalhar a intenção da volta do churrasco com cerveja). Nos tempos iniciais da Nova República, quando o presidente José Sarney viajava, o então senador Fernando Henrique Cardoso (PSDB-SP) dizia que “a crise viajou junto”. Com Lula fora, a crise poderia se elevar na temperatura política da oposição. Os ânimos dos bolsonaristas e apoiadores do ex-juiz, senador Sérgio Moro (União Brasil-PR) estão acalorados após Lula confessar em entrevista ao portal Brasil 247 que sonhava, enquanto estava preso em Curitiba, “em foder (sic) Moro”. A declaração imprudente ganhou mais combustível quando, no dia seguinte, por determinação da juíza Gabriela Hardt (ela sucedeu a Moro na 13ª Vara Federal de Curitiba, de quem era substituta, quando ele aceitou ser ministro da Justiça e Segurança Pública de Bolsonaro, em fins de 2018), a Polícia Federal iniciou prisões e fez busca e apreensões em residências de meliantes do PCC, que teriam tramado a morte de Sérgio Moro em setembro de 2022. Juristas já disseram que o mesmo argumento que anulou as sentenças de Moro contra Lula (a incompetência do foro) se aplicaria ao caso PCC, pois as investigações eram centradas em São Paulo e lá deveriam ficar. É em cima deste argumento que Lula viu maquinações e criticou a decisão da juíza de tirar o sigilo do caso.

Num ambiente de arrufos entre as diversas bancadas do Congresso, a irritabilidade contra o União Brasil de Sérgio Moro, que emplacou três representantes nas 37 pastas do Ministério, mesmo número do MDB, mas sem o mesmo comprometimento nas votações. Ficando no Brasil mais uma semana, Lula poderá evitar o aumento da temperatura política. O que pode facilitar a conquista de apoios à aprovação das MPs que podem caducar após 120 dias, como a ampliação dos ministérios de 23 para 37. Lula tinha convidado o presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), e o presidente do Senado e do Congresso, Senador Rodrigo Pacheco (PDS-MG), visando pacificar a tramitação de projetos no Congresso. Lira declinara do convite e Lula (antes da viagem ser adiada em uma semana) fez derradeira reunião com Lira na 6ª feira buscando um armistício entre Câmara e Senado no encaminhamento das votações. Pela Constituição, o Senado tem preferência. Na pressa de aprovar as medidas na pandemia, a Câmara ficou com a liderança e Lira “tratorou” à vontade, usando o voto à distância, por celular, para aprovar medidas e aumentar seu cacife junto a Bolsonaro, com o reforço do Orçamento Secreto. Após a eleição de Lula e a normalização democrática, o presidente do Congresso quis voltar a cumprir o que diz a Constituição. Foi um “Deus nos acuda”. Ficando no país, Lira prometia a Lula, na sua ausência, cativar votos para aprovar emendas pendentes. Ficando no país, Lula irá negociar e não precisará que o inimigo de ontem vire aliado fiel.

O que fará Bolsonaro?

Imaginando que está se zerando perante seus apoiadores com a devolução, à Política Federal, da metralhadora e da pistola automática que recebeu, em 2019, como presidente da República, em visita aos Emirados Árabes Unidos, e guardou para si, assim como o conjunto de joias masculinas avaliadas em R$ 500 mil, das quais foi portador o ministro das Minas e Energia, almirante Bento Albuquerque, na viagem à Arábia Saudita, em outubro de 2021, o ex-presidente Jair Bolsonaro pensou aproveitar que Lula não estaria aí para lhe dar trocos verbais e assim explorar a celebração do golpe militar de 31 de março, entre os militares da reserva e os seus aliados da ativa. Por orientação do governo Lula, as Forças Armadas não farão menção ao ato nas “Ordens do Dia”. Mas, mesmo em meio expediente, Lula estará atento para responder à altura.

Bolsonaro imaginava que a devolução dos regalos das Arábias (seu conjunto fazia par com as mais valiosas joias, avaliadas em R$ 16,5 milhões, destinadas à primeira-dama, apreendidas pela Alfândega de Guarulhos em 26 de outubro de 2021, quando um assessor do almirante tentava ludibriar a Alfândega (ainda ocorreram várias tentativas de liberação na Alfândega até os últimos dias de governo) apagará a imagem de que tentou levar para si coisas pertencentes ao Estado brasileiro. Seria a extensão do conceito de Bolsonaro de liberdade?

Retardando a visita à China em uma semana para cuidar da saúde, Lula não deixará de ocupar as manchetes, que Bolsonaro, de retorno dos Estados Unidos ao Brasil, dia 30, 5ª feira, vindo de Orlando (onde está desde 30 de dezembro) imaginava conquistar. O objetivo de Bolsonaro é mesmo fustigar Lula nos primeiros 100 dias de governo, tentando estabelecer comparações. Mas não há universo paralelo na vida real e na política. Só em filme.

GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)

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