Por não saber distinguir o público do privado, nem o que é governo e as funções de Estado, Jair Bolsonaro, ainda refugiado em Orlando (EUA), segue enrolado com as milionárias joias que recebeu em 2021, da Arábia Saudita, como presidente da República, parte destinada à primeira-dama Michelle, e que tentou transformar em regalos pessoais. O Tribunal de Contas da União ordenou que os bens, destinados à Presidência da República, assim como o fuzil e a pistola automática que recebeu em viagem de 2019 aos Emirados Árabes Unidos, sejam devolvidos ao patrimônio da União esta semana.
Já o presidente Lula pode aproveitar a viagem à China, de 26 a 31 de março, seguida de uma escala estratégica nos Emirados Árabes Unidos, cujo governo o convidou para uma visita de Estado, para colher muito mais joias que Bolsonaro imaginava. Por sorte de Lula, ele será o 1º chefe de Estado a visitar a China depois da pandemia da Covid – que surgiu por lá em fins de 2019 e voltou com grande força, provocando extensos “lockdowns” no ano – fazer o maior comprador de produtos brasileiros retomar o ritmo. De quebra, vai encontrar o presidente Xi Jinping no início do 3º mandato e vai conhecer o primeiro-ministro recém-escolhido, Li Qiang. Lula pretende fortalecer seu cacife de negociador político, tentando insistir junto a Xi Jinping para o estabelecimento de negociações de paz entre Rússia e Ucrânia. Um armistício baixaria a fervura bélica entre Vladimir Putin, aliado dos chineses, e o Ocidente, mais especificamente as forças da OTAN. De quebra, os preços do petróleo, combustíveis, fertilizantes e alimentos produzidos nos dois países em guerra poderiam cair. Isso abriria caminho para a redução dos juros e desviaria a economia mundial (e o Brasil), de uma rota de desaceleração, com risco de recessão, se os juros continuarem em escalada para debelar a inflação. Só conseguiram foi esfriar a demanda e aumentar o desemprego. Sobretudo aqui.
A enorme comitiva de até 240 pessoas, entre ministros e políticos, que estarão, a convite, no avião presidencial – durante a longa viagem de 37 horas (pouco mais de um dia e meio) – e empresários, que viajarão por conta própria, pretende aproveitar a oportunidade única para ampliar o espaço de relacionamento político e econômico do Brasil com o seu maior parceiro. Creio que a habilidade política do presidente Lula pode ajudar a pavimentar o caminho para as aprovações de MPs de instalação de seu governo. Imagino que ele teve isso em mente quando convidou os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco (PDS-MG), e da Câmara dos Deputados, Artur Lira (PP-AL), que estão afastados politicamente por desavenças sobre o rito de tramitação de Medidas Provisórias e demais projetos nas duas casas. Estabelecer um armistício, como propõe para a Rússia e Ucrânia, pode evitar que até a MP dos 37 ministérios possa caducar em 90 dias, bem como as reformas que vier a propor. Só ficaram de fora na lista de deputados e senadores escalados até aqui, representantes do PP (Arthur Lira é uma grife à parte e que pode conquistar votos no seu partido) e o Republicanos, que representa a Igreja Universal do Reino de Deus, de Edir Macedo. Estranhamente, não há representantes do União Brasil, que tem 3 assentos entre os 37 do Ministério.
Há muitas oportunidades a serem aproveitadas na viagem, mesmo que elas possam colidir com promessas de campanha do presidente Lula, como “a volta da picanha e da cervejinha”. A China é o maior comprador de carne de frango e de carne bovina do país. Foi o aumento da demanda por carne de boi, para suprir a eliminação de 50% do rebanho suíno do país, atingido pela peste suína africana, em 2015-16, que abriu espaço para o salto nas vendas de proteína bovina aos chineses. O movimento inflou os preços e tirou a picanha e outras carnes do alcance da renda dos brasileiros. Os “lockdowns” de 2021 e 2022, diminuíram a demanda de Pequim por carne brasileira. Em fevereiro, segundo o IBGE, os preços das carnes bovinas acumularam queda de 3% este ano. Mas a China está às voltas com outra onda de peste suína africana. Por isso, os irmãos Joesley e Wesley Batista, donos da JBS-Friboi, maior exportadora de carnes do Brasil, ganharam destaque na comitiva empresarial. Só do agronegócio há 80 representantes. A fome chinesa por proteínas, de soja, milho, e carnes (bovina, suína e de frangos, os dois últimos engordados com rações à base de milho e farelo de soja) pode gerar conflitos com a proteção do meio ambiente. No cerrado e na Amazônia. Mas o Brasil quer ampliar o leque de produtos, se possível, de manufaturados. O Brasil é grande exportador de commodities agrícolas e minerais (como minério de ferro, de cobre e petróleo) e matérias-primas semi industrializadas, como a celulose.
O grande negócio da China
Mas a venda de artigos manufaturados pelo Brasil à China seria uma façanha. O verdadeiro “negócio da China”, pois o que vem de lá para o Brasil são roupas, eletroeletrônicos e máquinas e equipamentos. O Brasil disputa com a Austrália, bem mais próxima, o posto de maior exportador de minério de ferro, mas o aço produzido pela China chega muito mais barato ao Brasil e toma espaço no mercado doméstico (por isso a reforma tributária é tão importante, em seguida ao princípio básico do arcabouço de equilíbrio fiscal) para tornar a economia brasileira capaz de competir com a China (de custos baixíssimos em matéria de juros, mão de obra e subsídios do Estado) e outros países. O Departamento Econômico do Itamaraty incluiu na comitiva empresários do setor de tecnologia, inovação, construção. Quem sabe não surgem parcerias? Até aqui, a China tem preferido fazer tudo sozinha e não transferir tecnologia. Que o digam os países da África, onde, ávida por matérias-primas, a China tomou o espaço do Brasil. Uma das armas foi entregar hospitais prontos (chave na mão). Entretanto, as difíceis soluções de manutenção de equipamentos fizeram muitos países africanos desconfiar dos “negócios da China”.
O diagnóstico da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda, de Fernando Haddad, o 1º feito esta semana no governo Lula, repôs a situação da economia brasileira, que “bombava” segundo os relatórios produzidos pela SPE no Ministério da Economia, de Paulo Guedes. A previsão de crescimento do PIB deste ano, baixou de 2,1% para 1,6% (ainda acima da média do mercado, entre 1% e 1,3%) e a inflação do IPCA foi elevada de 4,6% para 5,32%, em grande parte pelos impactos da reoneração dos impostos federais e estaduais derrubados eleitoralmente por Paulo Guedes até 31 de dezembro de 2022, na tentativa de reeleger o ex-presidente. Só que essa bilionária renúncia fiscal pesou na arrecadação da União, estados e municípios. E está atrapalhando o desenrolar da economia.
O principal fator de desaceleração, que já ocorreu no último trimestre do ano passado, quando o PIB encolheu 0,2%, é o nível do piso dos juros no país – a taxa Selic, fixada em 13,75% em 3 de agosto, quando a inflação rondava os dois dígitos. Com os cortes dos impostos, sobretudo na gasolina e energia elétrica, a inflação despencou para 5,79% em dezembro (ainda estourando o teto da meta de inflação do Banco Central, era de 5%) e seguiu em queda na base de 12 meses até 5,60% em fevereiro (deve cair à faixa de 4% em abril) mas o Comitê de Política Monetária do Banco Central alega que há incerteza fiscal e mantém o freio de mão da economia puxado.
Nos Estados Unidos, uma crise bancária já se espalhou para a Europa. O Goldman Sachs, um dos maiores bancos de investimento dos EUA, acredita que a crise de liquidez entre os bancos médios e pequenos, que originam a economia americana, vai contrair o PIB na mesma proporção que o esforço do Federal Reserve Bank em elevar de 0,25% a 0,50% a escala dos aumentos das taxas básicas para esfriar a demanda doméstica. E prevê que o Fed peça “mesa” na reunião de 22 de março e esperar para ver em maio.
Só o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central não percebe os estragos que sua política ultra-conservadora está causando, com aumento da crise de liquidez no comércio varejista (amplificada pelo caso Americanas) e o aumento da inadimplência das famílias. Um dado mais eloquente é que as vendas de automóveis no Brasil – um bem dependente do crédito – acumularam 1,5 milhão de veículos em 12 meses em fevereiro. Isso corresponde a menos da metade dos 3,151 milhões de carros novos emplacados em 2014. Junto com a indústria de construção civil, a cadeia de fornecedores da indústria automobilística é a que mais movimentou setores da indústria e de serviços. Num país de baixa renda, ambas dependem da oferta de crédito e do nível dos juros. E produção menor significa menos arrecadação.
A ‘reforma tributária cristã’
Uma decisão tomada 6ª feira pelo Supremo Tribunal Federal pode representar uma perda de R$ 3,7 bilhões nas arrecadações previstas pelo Orçamento Geral da União deste ano. O STF decidiu, por unanimidade, que a multa isolada de 50% cobrada aos contribuintes por não ter a compensação de crédito aceita pela Receita Federal é inconstitucional. A União alegava que a multa era necessária para evitar condutas abusivas. Já os contribuintes se queixavam de que a penalidade fere o direito à petição. A partir da decisão, não serão mais multadas se houver alguma incongruência com o pedido.
Em meio ao quadro geral de dificuldades – que leva o governo a querer taxar, em boa hora, a jogatina de sites nacionais e estrangeiros que entrou pelo mundo dos esportes – soa da maior desfaçatez a proposta das igrejas evangélicas, apresentada pelo ex-prefeito do Rio, o deputado federal Marcelo Crivella, do Republicanos, para criar uma reforma tributária à parte para elas. Ao que se saiba, a Igreja Católica Apostólica Romana não pediu nenhum tratamento fiscal extra para suas unidades no país. Mas as igrejas, como a Universal do Reino de Deus, de Edir Macedo, através de seu sobrinho, Marcelo Crivella, do Republicanos, o partido da IURD, pretende ampliar o leque de isenções das igrejas e seus pastores, os gerentes das “franquias” .
As igrejas se transformaram em grandes currais eleitorais e elegem forte bancada na Câmara e no Senado. Sob a liderança de Crivella e apoio declarado de Arthur Lira, tentaram botar um “bode na sala”, com a exigência prévia de discussão da Reforma Tributária (tipo “voto sim, mas dá cá o meu”). Assim conseguiram de Bolsonaro perdão discal de quase R$ 2 bilhões no governo passado. A Constituição do país, que é um Estado laico, assegura isenção a atividades religiosas. Mas negócios de turismo, transporte e outras atividades comerciais das igrejas têm de pagar impostos e contribuições sociais como os demais. Jesus precisa ver os novos “vendilhões dos templos”.
Bolsonaro já multiplicou por quatro, a R$ 4,8 milhões de faturamento, o limite de dispensa para as igrejas fazerem declarações de movimentações anuais à Receita Federal. E Edir Macedo ainda teve o desplante de fazer, esta semana, enquanto o sobrinho Crivella desembrulhava o “pacote fiscal evangélico”, uma declaração enviesada. Macedo reclamou de ter feito “um tratamento espiritual na garganta de Lula para ele vencer o câncer”, mas o atual presidente não lhe agradeceu por nada, nem agora nem nos governos anteriores. O “bispo” chefe da IURD disse que Lula “não deu nada” à Igreja. “O que ele deu à Igreja? O que ele deu à Record? [também controlada por ele e a IURD] Ele não deu nada. Ele apenas fez o que ele tinha que fazer, como fez com as demais emissoras. De propaganda, obviamente que pagou, honrou lá seus compromissos”. Isso é uma relação Republicana. Não para o Republicanos.
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)