Depois que o ministro-relator do caso das joias da Arábia Saudita, no Tribunal de Contas da União, o gaúcho Augusto Nardes, deu parecer, em caráter liminar, cujo mérito será julgado pelo plenário de oito ministros do TCU, presidido pelo ministro Bruno Dantas, claramente favorável ao ex-presidente Jair Bolsonaro, tornando-o “fiel depositário” do conjunto de joias avaliadas em cerca de R$ 500 mil da famosa ourivesaria suíça Chopard – um relógio de ouro com pulseira de couro, um anel, um par de abotoaduras, uma caneta rosa gold, e um masbaha (espécie de rosário islâmico) rosa gold – em flagrante contradição legal, uma vez do que o conjunto entrou de forma clandestina no país, trazido na bagagem pessoal do então ministro das Minas e Energia, almirante Bento Albuquerque, sem ser declarado à Alfândega, que reteve o relado maior, um conjunto de colar, broche e brincos de diamantes, da mesma marca, avaliado em R$ 16,5 milhões, que seria presenteado à primeira-dama Michelle Bolsonaro, e que estava escondido na bagagem de mão do assessor de do ministro, o tenente da Marinha, Marcos André dos Santos Soeiro, não dá para não ligar o caso ao famoso livro de contos das “Mil e uma Noites”. Os contos, que reúnem tradições orais da Índia, da Pérsia e das Arábias (as rotas das caravanas de comércio do Ocidente com o Oriente), foram compilados e traduzidos para o francês em 1704, por Antoine Galland, um estudioso das culturas orientais, tornando-se classe da literatura mundial.
Calma, amigo leitor. Para começo de conversa, como faria Xerazade, tentando enrolar o Rei persa Xariar, da dinastia dos Sassânidas, que depois de ter descoberto ter sido traído por uma das esposas, que mantinha relações com um dos escravos quando se ausentava, mandou matar a ambos como decidiu, daí em diante, que não teria mais uma esposa fixa, vamos fazer um paralelo. Para garantir que não seria traído, o Rei dormia com uma virgem a cada noite e a executava na manhã seguinte. Quando quase não havia mais virgens no reino, sempre trazidas pelo vizir, chegou a vez das próprias filhas do vizir irem para o sacrifício. Xerazade, cuja irmã, Duniazade, seria a próxima, pediu-lhe que avisasse quando seria a sua vez. Ela já estava preparada para entreter o Rei com histórias rocambolescas que nunca acabavam. Escolheu para começar a extraordinária “História do mercador e do gênio”, que se desdobrava no destino de três Xeiques árabes. Antes de amanhecer, Xerazade, espertamente, disse que continuaria na noite seguinte. Curioso pelo final da história, o Rei poupou a vida de Xerazade e a convocou na noite seguinte para o término da saga, que ela não punha fim. Como a imaginação da jovem era fértil, de conversa em conversa, ao fim de mais de três anos (1001 noites), ela já tinha tido três filhos com o Rei, que a ela se afeiçoou e passou a confiar cegamente, desistindo da vingança.
O caso das joias apreendidas em 26 de outubro de 2021, na Alfândega da Receita Federal do Brasil, no Aeroporto de Guarulhos, guarda semelhanças não apenas pela origem, mas pelas versões, a cada dia mais rocambolescas, para uma história interminável que, no fundo, é simples. Para começar, a data coincide não com 1001 dias de governo Bolsonaro. Mas com um mês a mais: 1.031 dias, contando os 366 dias do ano bissexto de 2020. A apreensão da parte mais valiosa do regalo, que tinha como “mula” o assessor do ministro das Minas e Energia, almirante Bento Albuquerque, o tenente da Marinha do Brasil Marcos André dos Santos Soeiro, estava sendo escamoteada da Receita Federal do Brasil como contrabando. Se fosse eu ou você, caro leitor, trazendo um “laptop” com valor superior a US$ 1 mil, teríamos que declarar o bem, apresentar a nota fiscal e pagar 50% de imposto sobre o valor da NF, convertida pela cotação do dólar. Se quiséssemos dar o famoso “jeitinho brasileiro” que a comitiva do MME conseguiu parcialmente, pois os regalos destinados ao presidente da República do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, passaram sem ser revistados, na bagagem do ministro-almirante e, por azar, acendeu o sinal vermelho para a revista justamente quando o assessor tentava atravessar com a muamba mais valiosa, estaríamos cometendo o crime de contrabando (caso das joias apreendidas) ou “descaminho”, caso das joias não declaradas por Bento.
‘O Estado e governo são meus’
Se tudo era para o 1º mandatário e sua esposa, era simples: bastava a comitiva ter feito uma declaração de que os presentes eram destinados ao governo brasileiro. Entretanto, como escrevi aqui semana passada, o uso do cachimbo fez a boca torta. De tanto usarem e abusarem da apropriação indébita de dinheiro público, mediante o crime de peculato implícito nas operações de “rachadinhas”, que é a nomeação de funcionários para trabalhar em seus gabinetes legislativos em troca da devolução dos salários [pagos com o seu, o meu, o nosso dinheiro] dos funcionários contratados – a maioria parentes ou apadrinhados, modelo inaugurado nos gabinetes do deputado federal Jair Bolsonaro e replicado pelo filho 01, Flávio Bolsonaro, na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), o clã passou a ter uma noção totalmente equivocada da coisa pública, sem fazer distinção entre o público e o privado ou entre o governo e o Estado. Luís XIV, o famoso “Rei Sol”, absolutista francês proclamava: “L’ État c’est moi” (O Estado sou eu, ou Eu sou o Estado); Bolsonaro, em sua visão absolutista, autoritária e antidemocrática, traduziu toscamente para “O Estado e o governo são meus”.
Foi nesta direção que tratou de aparelhar o controle das Forças Armadas, a Polícia Federal, a Advocacia Geral da União, a ABIN, a Receita Federal do Brasil em benefício próprio e dos amigos. A ameaça que fez na famosa reunião de 22 de abril de 2020, que levou à demissão, no dia seguinte, do ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro, quando adiantou que “trocaria a Polícia Federal e até o ministro”, mas que não ia deixar “foder (sic) minha família e meus amigos, de sacanagem”, foi levada ao pé da letra depois da troca de Moro por Anderson Torres. Infelizmente, para Bolsonaro não foi por “sacanagem”, mas apenas no estrito cumprimento do dever funcional. O auditor fiscal da Receita Federal, Mario de Marco Rodrigues Sousa, fez o mesmo que costuma fazer no seriado “Área Restrita”, do Discovery, que se passa no Aeroporto de Guarulhos, o de maior movimento no Brasil. Se Bento e assessores fossem assíduos, teriam tomado outra decisão. Mas, a partir do momento em que o assessor lhe comunicou ter sido apanhado, o almirante não se manifestou sobre o que portava para o presidente da República e preferiu enveredar por caminhos tortuosos e tentar liberar a carga mais valiosa, apelando para o Secretário da Receita Federal. Na época, José Tostes deu total cobertura à atuação dos auditores alfandegários e delegados locais. Mas uma semana depois foi exonerado e substituído, cinco dias após, por Júlio César Vieira Gomes, um ex-oficial de Marinha que fez concurso para a Receita e era próximo ao clã Bolsonaro. As oitivas que serão feitas esta semana vão situar melhor o papel e o papelão de cada autoridade.
Até o dia 28 de dezembro de 2022, na antevéspera de deixar o país em avião da FAB, rumo a Orlando (EUA), o gabinete do presidente da República tentou por todos os meios (legais ou ilegais, sob as mais variadas formas de “carteirada”) impor a vontade presidencial para liberar o botim mais valioso. O secretário da Receita, que sabia de tudo, cometeu, no mínimo, o crime de “prevaricação”. Foi Júlio Cesar Vieira Gomes quem alertou, por telefone, o presidente Bolsonaro, em outubro (o chefe da Receita tinha canal direto com a Presidência), que as joias apreendidas estavam listadas para ir a leilão desde outubro). Após ordenar a retirada do lote da lista de bens a serem leiloados, o chefe da Receita tratou de instruir, passo a passo, o chefe da Adjudância de Ordens da Presidência da República, tenente coronel Mauro Cid, para tentar liberar as joias.
[Cid é aquele mesmo contemplado pelo ex-presidente com o comando de um importante batalhão do Exército em Goiás e que o presidente Lula ordenou a revogação da nomeação, depois dos atentados de 8 de janeiro, ao novo comandante do Exército, general Tomás Paiva, que sucedeu ao general Júlio Cesar de Arruda, por se recusar a cumprir a ordem de demissão de Cid – e nem se sabia de suas gestões no caso das joias]
A última tentativa foi no dia 28 de dezembro em Guarulhos, dizia que seria incorporado ao acervo do presidente da República. Os dados dos itens que entraram ilegalmente no país, uma caixa com relógio, caneta e outros itens de ouro, mesmo entrando ilegalmente no país, já estavam cadastrados no sistema do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica.
Faltava cadastrar as joias apreendidas. De acordo com os planos de Bolsonaro, negociados previamente com Julio Cesar Vieira Gomes, os diamantes deveriam ser retirados da alfândega de Guarulhos naquele mesmo dia, quinta-feira, 29 de dezembro de 2022. Faltavam só dois dias para o encerramento de seu mandato. No dia 30, Bolsonaro e Michelle pegariam um avião com destino aos Estados Unidos. A ordem no Palácio do Planalto, partida da Chefia de Ajudância de Ordens da Presidência (tenente-coronel Mauro Cid) era adiantar o cadastro das joias que ainda estavam retidas nos cofres da Receita. Só que a tarefa não cabia a Mauro Cid, e sim ao Gabinete Adjunto de Documentação Histórica, num indício de que as joias ficariam com o casal e não no acervo público da Presidência da República. Ou seja, não ficariam sob o controle do Estado brasileiro. Com a resistência inflexível do auditor fiscal da Receita em Guarulhos, Marco Antônio Lopes Santanna, que resistiu até mesmo a atender telefonema do chefe da Receita, a retirada das joias não ocorreu. Mas como tudo parecia já engatilhado e dado como favas contadas. Júlio Cesar Vieira Gomes foi nomeado dia 30 de dezembro pelo presidente e exercício Hamilton Mourão, que assumiu o cargo com a partida de Bolsonaro para Orlando, adido da Receita em Paris. A nomeação foi anulada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em janeiro. Também em 3 de janeiro, já na gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, segundo o G1, a funcionária responsável pelo Departamento de Documentação Histórica excluiu os ofícios do registro oficial. Tudo será averiguado pela Polícia Federal.
Se tivesse sido reeleito, certamente o caso nem viria à tona. Todos os crimes iriam para baixo do tapete. Mas os servidores do Estado, concursados e com estabilidade (caso dos fiscais e auditores da Receita Federal do Brasil, dos agentes da Anvisa, da Polícia Federal e diversos escalões da administração pública), cumpriram o seu estrito dever para com o Estado brasileiro.
O contorcionismo de Nardes
O gaúcho Augusto Nardes, político conservador e de direita, é um notório simpatizante de Jair Bolsonaro. Natural de Santo Ângelo, ele fez carreira na Arena, seu sucessor, o PDS, até se filiar ao PP, o mais importante do centrão. Acusado de peculato e concussão (exigir vantagem indevida para si ou para outrem no exercício de função pública), renunciou ao mandato, evitando a cassação, e foi indicado pelo PP para o Tribunal de Contas da União, em 2004, na vaga aberta com a aposentadoria do ministro Humberto Souto. Nas investigações da “Operação Zelotes”, foi citado em reportagens dos jornais “O Estado de S. Paulo” e “Folha de S. Paulo”, nas quais o Ministério Público Federal em Brasília, que comandava a apuração, teria encontrado “indícios do seu envolvimento no esquema de corrupção no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).
Seu parecer liminar conflita com a jurisprudência do órgão auxiliar o Poder Legislativo, que em 2016 decidiu, de forma colegiada, que presentes de alto valor não podem ser desfrutados pelos agentes públicos e devem ser incorporados ao Patrimônio da União. A decisão de transformar Jair Bolsonaro em “depositário fiel” é uma heresia jurídica. Como pode ser declarado “depositário fiel” de uma coisa pública quem foi infiel, do princípio ao fim, desde os preparativos iniciais na partida da comitiva do MME, de Riad, capital da Arábia Saudita, ao fim de uma visita de quatro dias ao país; quem tentou de todas as formas ludibriar os controles alfandegários (que foram driblados no caso dos presentes masculinos) e insistiu, por mais de 14 meses, em reaver por meios legais e ilegais os bens de alto valor feminino retidos na Alfândega?
Negócios da China
Após os mal-sucedidos “negócios das arábias” de Bolsonaro, quem trilha os modernos caminhos da “Rota da Seda” em direção à China, maior parceiro comercial brasileiro, é o presidente Lula. Além de querer incrementar as vendas de produtos agrícolas (soja, milho, açúcar café e cernes bovinas e de frango são os principais itens), minerais (minério de ferro e petróleo) e semimanufaturados, como celulose, que garantiram receitas de quase US$ 90 bilhões em 2022 e um saldo comercial de US$ 29 bilhões, quase metade do total do ano, Lula quer seduzir o presidente chinês Xi Jinping, recém-conduzido por 2.952 votos a zero pelo Partido Comunista Chinês, e vai ter oportunidade de conhecer o primeiro-ministro Li Qiang, nomeado ontem por Xi Jinping.
Mas o alvo maior do presidente Lula é seduzir empresários e políticos de sua ampla e eclética comitiva a fornecer-lhes apoio político nas duras negociações que terá na Câmara e no Senado para fazer avançar as reformas que propõe. Eleito sem base sólida (teve dificuldades até para aprovar a PEC da transição, que em parte resolvia restos a pagar e despesas ignoradas por Jair Bolsonaro), Lula precisa exercitar ao máximo seu inegável poder de sedução para atrair apoios improváveis.
Foi pensando nisso que, além de convidar o virtualmente aliado presidente do Senado (e do Congresso), Rodrigo Pacheco (PDS-MG), o partido de maior bancada no Senado, convidou também o ensaboado presidente da Câmara, o deputado Arthur Lira (PP-AL), que foi eleito com a maior votação já registrada por um presidente da Câmara. Lira sempre rezou pela cartilha de Bolsonaro. Pode até rezar junto com Lula, que já o tachou de agir como um “Imperador do Japão”. Mas será sempre uma negociação caso a caso. Entretanto, se os ares chineses conseguirem efeitos semelhantes aos que Xerazade conseguiu sobre o Rei Xariar, será um ganho imenso.
GILBERRO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)