Mentalidades fascistas e comunistas ganharam o fórum da Internet para simplificar o que não entendem ou não permitem ser entendido como complexidade. Reduzem o mundo em indescritível riqueza de seletividade abjetas e exclusões iníquas.
Basta conter a Peste (Albert Camus) e esmagar o Ovo da serpente (Igmar Bergman) para projetar uma nova sociabilidade em forma e conteúdo? Afinal, chegamos no século XXI com gigantesco déficit de modernidade e de Humanidade, acumulando-se contradições e o próprio antagonismo de classes em patamar da possibilidade destrutiva da vida no planeta e da impossibilidade reconstrutiva de horizontes a médio prazo. Contradições novas e velhas atravessam as derrotas nas quais os mais interessados, via delegação a seus representantes, os políticos, sofrem as consequências pagando o preço da repetição de erros e da manutenção de muitos status quo. Daí a recorrência à líderes populistas, autocráticos ou não, a golpes e transformismos, em nome da urgência de pragmatismos que podem conduzir à catatonia paralisante na política. Que tal um recuo-exercício sobre o nosso hoje refém do ontém cativando o futuro?
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Na Alemanha após a Primeira Guerra prevaleciam sentimentos de dor e humilhação, desesperança e insegurança. Pesou fundo nos alemães a derrota de 1918 e o medo do comunismo triunfante desde 1917. O ufanismo extremado por um novo Império germânico ressurgia com um apelo mais presente: a superioridade racial. Silenciosamente afirmava-se um “Nós brancos e arianos” contra todos os inimigos. E haja inimigos: judeus, comunistas, ciganos, homossexuais. Até nudistas expressavam, para nazistas, a degenerescência do que se tomava como povo sublime, a ser restaurado.
Para os homens a serviço de empreitadas megalomaníacas de empoderamento total, trata-se de “universalizar” suas visões de mundo e ideologias particularistas. Vale para o modus operandi dos eventos autoritários multicoloridos ensaiados mundo afora. São emergências aqui é acolá de uma peste conhecida, embora sob novas roupagens. A verdadeira ideologia anti-imigrantes logrou ser uma bandeira de todos, da esquerda, da direita, conforme Adam Przeworski (Crises da Democracia). Há outras exclusões imaginárias e reais. Direito de povos indígenas? Indaga-me um aluno de Direito. Em maior ou menor medida elas expressam desintermediação, desejo de.
Os totalitarismos, todos eles, como formas de poder absoluto, pressupõem a desinstituionalização de certa forma histórica de democracia, a liberal, seja ela realmente existente ou projeto capaz de envolver interessados. A mutações nos bigodinhos de Hitler e Stálin não descaracterizam as personalidades totalitárias, mas as atualizam sob contextos adversos àqueles de origem.
Mentalidades fascistas e comunistas ganharam o fórum da Internet para simplificar o que não entendem ou não permitem ser entendido como complexidade. Mentes totalitárias reduzem o mundo em indescritível riqueza de seletividade abjetas e exclusões iníquas. Daí a vulgarização, da parte dos autocratas em voga, do que entendem como solução definitiva para os males do mundo. Toda eliminação física é precedida por um exaltação do saneamento público via lacração de ideias e/ou pessoas. Um vereador de Caxias culpa os baianos por problemas no RS. Muitos sulistas acreditam sinceramente nesse preconceito. Mas a simplificação é geral, mais que nacional, sem fronteiras: o incremento dos crimes de feminicídio são atribuídos, sem um estudo detalhado, ao campo cultural bolsonarista, um exagero para o qual não faltam ilações exageradas sobre aquele tipo de crime e descontrole sobre armamento na sociedade civil. Muitos os extrapolamentos no ambiente polarizado. O recebimento não raramente irregular de oferendas (sejam joias ou obras de arte) por nossos governantes é recorrente, sendo banalizada: o descaminho é sempre uma conduta criminal do Outro. Há nessa confusão mental um sinal das consequências nefastas da anestesia do imaginário da política.
O pior de tudo advêm da biruta social que é confundir e embaçar o campo do político, empurrando-o para um redemoinho de falaciosas narrativas: a) importantes setores da direita liberal e dos socialistas democratas; b) amplos setores de classe média, mediana, desnaturando-os e com isso acirrando-os ainda mais no amar os censores e a desdenhar aqueles lá de baixo na pirâmide social, por regra.
A chegada de um homem medíocre ao poder supremo na Alemanha, através
do voto, logo entra em choque com os obstáculos institucionais, pois instituições refletem a tensa mediação (mesmo assimetricamente) de interesses da democracia liberal a la Bismark, de cima para baixo. Outros homens em muitos países, hoje, seguem esse padrão de intervenção da política direta, sobrepondo-a às instituições. Eles se encontram bem presentes na ascensão da ultradireita em pleno século XXI.
Mas grandes ideias e seus protagonistas, ou ideologias e suas conexões com consciências individuais e de grupos, relacionam senhores e subalternos, via setores intermediários. É o cenário daqueles milhões de indivíduos que mesmo não necessariamente fascistas, aqueles amigos ou parentes próximos, irmãos ou colegas de trabalho, entregam-se silenciosamente à sedução/anuência da onda autoritária. São seres humanos comuns, boas pessoas, trabalhadoras, religiosas, tomados por um patriotismo capaz de conectar projetos patrióticos em nome da eliminação dos “inimigos”. Entre intelectuais, professores universitários é comum a reprodução de preconceitos com povos indígenas, pretos e pobres, nordestino ou não. Eles expressam um senso comum ultraconservador muito mais enraizado nas estruturas sociais que a presença das bandeiras progressistas universais.
Na imagem da hierarquia militar generais organizam seus recrutas graças aos seus cabos, sargentos, tenentes, de maneira que a burocracia e o poder atinjam seus objetivos. Os setores medianos altamente diferenciados socialmente e segmentados no mercado, emprestam, mormente em momentos nebulosos de mudanças no trabalho e na cultura, a legitimação ao que na política lhes parece ter maior sentido para reorganizar a ordem em tempos de desordens. Desordens tributadas, por inúmeras razões, às elites, nelas incluídas as elites de esquerda com seus sucessivos e repetidos erros e cacoetes conceituais e de ações práticas na história.
O experimento abominável da política nos socialismos reais deu sua contribuição para essa ojeriza à esquerda da parte de amplas classes médias (pequena burguesia moderna, assalariada, e tradicional, autônoma). Seguem com maior grau possível de “discernimento a “racionalidade” ou às racionalizações de seus superiores no cenário da política geral. Quanto mais subalternas as classes sociais mais parecem seguir o que se lhes apresenta de maneira simplificada. Idiotas da ultraesquerda condenam como furto salarial a renda auferida por proprietário de imóveis em locações. Idiotas da ultradireita divulgam que comunistas vão eliminar a propriedade privada ou socializá-la com os mais desprotegidos. “O festival de besteiras que assola o país” (Febeapá) de Stanislaw Ponte Preta é muito atual.
A propaganda é a alma do negócio da política destrutiva do campo da política liberal, de Goebbels a Stálin, obviamente. Com a massificação plena de meias verdades e grandes mentiras, penetra no universo popular a descrença na ordem liberal “burguesa”. Isso há quase cem anos, e hoje tudo se repete. As fake news tiveram no nazifascismo sua mais efetiva máquina territorial-estatal, um ambiente propício para o tudo ou nada diante de tantos desesperos, pavor e medo disseminados. Hoje no tempo virtual, um território não físico de conformação da nova luta de classes permite a desinfirmação quase total.
A tendência da desinstitucionalização é muito mais célere e abrangente. A fadiga do liberalismo político evidência o divórcio anunciado com o mercado e este no formato de hoje (neoliberal) parece adequar-se mais à fórmulas políticas autocráticas bem personalizadas em líderes de vários países como China, República Checa, Rússia ou Polônia. Curiosamente esses líderes são uma novidade no mercado político, sob a narrativa de transformação da política tradicional e em muitos desacertos reais no campo das esquerdas.
Mas o recurso à “pós-verdade” ganha proporções inimagináveis em redes de narrativas que atingem países sem tradição liberal municionados, aproveitando países do centro e semiperiféricos. Trump e Bolsonaro, entre muitos correligionários de projetos reacionários, inauguram uma “nova política”. Todavia, a tentação do populismo não poupa a esquerda desse contexto responsivo estrutural, não necessariamente programado ou explicitamente padronizado em termos pragmáticos. A resposta à desinformação pode conter armadilhas para os protagonistas em nome da emancipação. Um exemplo?
O discurso da regulação das mídias é importante mas não descarta a cogência de um imaginário político muito desgastado, portanto, passível de intervenções que a pretexto de romper com práticas alienantes, produzam outras similares. A ideia de gado não aproveita somente aos inimigos.
O senso comum seguia (e segue) em grande medida – e cegamente, a um líder capaz de vender um futuro plantado sob ingredientes de crescentes ressentimentos e ódios, desarticulações e repetições. Esse quadro a atinge a todos os protagonistas da ação política. E é um processo um tanto distante do conhecimento da população.
As massas não sabiam da solução final, mas amplos setores de intelectuais, igrejas, corporações (empresas conhecidas quebravam negócios com as características do bode expiatório maior). Na grande indústria o trabalho escravo de judeus impulsionou a Volkswagen, Hugo Boss, BMW, e tantas outras empresas. Hitler saiu na capa da Revista Times como figura mais importante do mundo e Ford apertou as mãos de Hitler na Alemanha, fascinado pela competência do Führer.
Nos projetos autodenominados como progressistas a mudança de dado plano A para plano B, em termos históricos não significa uma evolução definitiva e necessária nos processos de construção alternativos para uma democracia libertário- emancipatória. Na aliança populista Vargas pendia pela Alemanha…Muito antes de Lula ou Bolsonaro quem manda é o poder do dinheiro maior, no caso, o Capital financeiro.
No Brasil o fascínio totalitário sobre o grandes grupos capitalistas é fato. Em Blumenau a Hering e tantos outras empresas conhecidas apoiaram Hitler. Em 1936 um dirigível alemão sobrevoou Blumenau anunciando um novo Reino, sob aplausos gerais.
Já durante a II grande guerra o delírio por Hitler avolumava-se, mormente em SC, a cada vitória da máquina bélica nazista, levando ao gozo coletivo até o basta dado pelo Ocidente graças à Rússia, sem a qual a guerra não seria ganha pelos aliados. Deve-se também a essa extrema direita nazifascista, toda moralista e cheia de patriotismo e apelos à família, a Deus e aos “bons costumes” (sinais do desespero de uma sociedade adoentada e com a autoestima baixa) a vitória de outro totalitarismo, o comunista. Graças ao nazi-fascismo vimos a progressão do império soviético. Derrotamos uma besta e ajudamos a criar outra da qual somos vítimas até hoje.
O sonho de um III Reich permitiu a universalização do comunismo em sua versão totalitária, o stalinismo. Este cresceu assustadoramente no pós-guerra. A expansão do império soviético é uma consequência da fascistização do mundo. Não fossem aquelas “conquistas” do Estado por forças da extrema direita psicopata, não teríamos hoje esse mundo no bojo do qual as clivagens da multipolarização se fazem presentes. A exemplo da guerra por procuração em curso na qual Ucrânia e Rússia são fantoches em face da disputa entre EUA e CHINA. Eis aqui velhos problemas reconfigurados, por inúmeras consequências aleatórias, em “novos” projetos de ilustres assassinos.
Como reconhecer que a violência e o mimetismo nos constituem como seres humanos de maneira a não repetir, catatonicamente, tantos erros e derrotas? Isso seria possível, indo além de um pragmatismo triunfante para o qual vencido o protofascismo a partida continua na boa direção, mesmo sob cultura e acumulação marcadas pelas sementes da regressão?
EDMUNDO LIMA ARRUDA JR ( BLOG OS DIVERGENTES” ( BRASIL)